Na civilização de matriz britânica, a palavra «love» funciona muitas vezes como um superlativo substituto para «like». Assim, «I like my cat» será o modo normal de se «gostar» de um gato, sendo «I love my cat» a referência a um modo especial, superlativo, de se gostar do bichano. «Love the cat» é uma forma muito mais poderosa de «like the cat».
POR AMÉRICO PEREIRA

Vivemos num mundo, melhor, constituímos um mundo humano em que, cada vez mais, as palavras perdem sentido próprio, impedindo o acesso necessário e devido aos termos que supostamente devem veicular. Não só as palavras se tornaram caoticamente ambíguas, como, por falta de real experiência da parte de quem com elas contacta, se tornaram assignificativas. Se é verdade que, a novas ou recuperadas realidades, correspondem palavras novas, assim buscando significar a realidade que vai surgindo, também é verdade que muitas palavras se perdem porque já a nada correspondem na vida das pessoas.

Não há palavras que sejam apenas sons. Se não correspondem a algo que as transcende, não são palavras. É por tal que um grito de sentida dor pode e deve ser assimilado a uma palavra, ao passo que palavras desusadas, por causa desse mesmo desuso, já nem palavras são, são apenas ruído. Neste sentido, no dicionário não há propriamente palavras, mas letras, mais ou menos bem alinhadas, algumas com significado para quem as lê, sendo, assim, realmente palavras; outras, sem significado, são apenas matéria, papel e tinta.

Ora, quer a palavra «amizade» quer a palavra que, como veremos, lhe dá o seu pleno sentido, «amor», são daquelas que mais têm sofrido quer com o processo de equivocação de sentido quer com a ausência de sentido por falta de experiência com que se relacione.

O que a amizade não é

Nos dias que correm, a palavra «amizade» é usada para procurar dizer muitos sentidos que não corresponde ao que, em si mesma, a amizade é. Ora, a amizade não é uma ‘coisa qualquer’, não é o que se quiser; tem uma realidade antropológica, ética e política própria, estudada e estabelecida com critérios científicos há mais de dois milénios. A amizade não é o ‘friendismo’ do «facebook»; não é uma relação inter-humana superficial; não é um afecto; não é uma emoção; não é um sentimento; não é uma paixão; não é uma relação social. É diversa de tudo isto.

Por outro lado, a amizade não pode ser um acto puramente individual, pois é sempre uma relação que implica actos inter-relacionados de pelo menos duas pessoas.

Por fim, a amizade é exclusiva apenas dos e para os seres humanos: posso amar o meu eventual gato, posso por ele ter uma paixão vulcânica, todavia não posso ser amigo do gato, pois, para que haja amizade, tem de haver correspondência a um nível semelhante, algo impossível para qualquer gato ou qualquer outro ser não-humano. No nosso mundo, e sem entrar em mitos, a amizade é acto exclusivamente humano.

O que a amizade é

A amizade é da ordem do acto. Não é, assim, uma paixão, embora uma paixão possa estar na origem cronológica e mundana da mesma. A amizade é o acto recíproco de amor1 entre pelo menos dois seres humanos.

Que quer dizer «acto de amor»?

As considerações prévias que se fizeram relativamente à palavra e termo «amizade» podem ser aqui invocadas: há uma realidade própria do acto de amor, que não deve ser confundida com muito do que a palavra amor procura veicular em modos comuns, modos que se referem a outras realidades que não são amor.

Por exemplo – que contaminou já o falar e o pensar em Português europeu –, na civilização de matriz britânica, a palavra «love» funciona muitas vezes como um superlativo substituto para «like». Assim, «I like my cat» será o modo normal de se «gostar» de um gato, sendo «I love my cat» a referência a um modo especial, superlativo, de se gostar do bichano. «Love the cat» é uma forma muito mais poderosa de «like the cat».

Na verdade, em muitos casos, o que se passará é que mesmo quem diz que gosta do gato, na verdade está a dizer que ama o gato, porque, de facto, ao cuidar dele, promove o bem do gato. Tal é objectivo, independentemente de outros factores.

Em Português, dizer-se que se ama o gato pode parecer estranho; todavia, para quem quer o bem do seu animal de estimação, na verdade, a expressão correcta é mesmo «amo o meu gato».

Precisamente porquê? Porque a definição de amor é «acto no sentido do bem de algo». Para os cristãos, é fácil perceber tal: Deus ama a criatura de tal modo que a sua vontade de bem para a criatura é o acto que a põe no ser a partir do nada, o mesmo é dizer, mas melhor, que a põe a partir do seu acto de amor. É neste sentido que o amor é criador: cria, porque, cada acto que põe, põe o bem do ser a que se destina.

Isto é amor. Todas as outras referências referem-se a outras realidades, incorrectamente denominadas.

Ora, a amizade é, então, este recíproco acto de amor, isto é, recíproco acto em que os que se amam realizam o bem do outro.

Quem teve a intuição primeira teórica desta relação foi o velho Platão, sobretudo na sua obra Banquete, em que chega mesmo a intuir o sentido agápico do amor, amor como absoluto dom, sendo dele a expressão segundo a qual só ama verdadeiramente esse que dá a vida pelo amado. Este é o ponto mais elevado do amor, da amizade, se for em modo recíproco. Sendo assim, este é o ponto mais elevado da vida humana.

Todavia, compete a Aristóteles, discípulo de Platão, o enquadramento teórico pormenorizado da amizade. Brevemente, podemos dizer que, a partir da observação da realidade, Aristóteles percebeu que há três tipos possíveis e reais de amizade.

O nível mais básico, o que serve de sustentáculo de toda a vida política (da humanidade como sociedade, possível comunidade), é o da amizade segundo o interesse, evidentemente mútuo, sem o que seria imediatamente escravatura e não amizade. Neste nível, os amigos amam os amigos pelo interesse próprio na relação: eu amo-te porque tal amor me é favorável; e reciprocamente. Podemos chamar-lhe um amor comercial de mútuo benefício próprio. Neste nível, então, a relação centra-se no bem do próprio sujeito, na forma do seu interesse. Relembra-se que não pode haver sociedade sem este amor básico.

O segundo nível, mais elevado antropologicamente, é o nível da amizade prazenteira ou por prazer: cada um dos amigos ama o outro porque tal amor lhe dá prazer; reciprocamente. Neste nível, a relação centra-se na própria relação, pois esta confunde-se com o prazer haurido. Enquanto o primeiro tipo de relação manifesta esta última como tendencialmente estável e duradoura, pois, sem ela, não é possível haver sociedade, logo, humanidade, o segundo nível, porque depende do prazer, que depende da qualidade da relação com o objecto, que depende da qualidade deste, tende a ser instável e efémero, pois a mutação da qualidade do objecto pode implicar a mutação da qualidade da relação, logo, pode alterar negativamente o prazer recebido.

Pense-se no que é uma relação de amizade prazenteira que se baseie na simples beleza física dos dois amigos: quando tal beleza fenece não fenecerá o prazer e a amizade? Se não fenecerem este último, ainda estaremos apenas numa relação de amizade prazenteira, não será já outra realidade?

A resposta é, logicamente, não. Já se está numa outra realidade. Certamente evoluiu-se ou para uma relação de primeiro tipo, assegurada pelas razões já estudadas, ou evoluiu-se para uma relação de terceiro tipo, que se designa como «amizade verdadeira», «amizade em si», ou, simplesmente, «amizade», sem adjectivos.

O que constitui o cerne deste acto de mútuo amor é o facto de tal acto ter como centro da relação o bem do outro, o bem de esse a quem se ama, sem que o bem do que ama tenha qualquer importância. O amor de terceiro tipo, que sustenta o nível de amizade respectivo, é necessariamente um amor oblativo. Tal não significa que tenha de ser um ‘amor de sacrifício’; pode ser tal, mas tal não é necessário.

O maior ou menor bem do que ama não interessa; interessa apenas o maior bem do que é amado. Pode perguntar-se pertinentemente se esse que ama não pode beneficiar do amor que dedica ao amado. Pode beneficiar, mas não tem de beneficiar. Todavia, o benefício próprio não é directo: querer o bem de alguém e fazer o bem de alguém é, sempre, bom para quem o faz. No entanto, isso que faz é feito não para que tal bem próprio aconteça, mas apenas para que aconteça o bem do outro. Numa alegre ironia, ao fazer tal bem sobre o outro, faz bem a si próprio. Como diria, já não Aristóteles, mas Cristo, ‘já tem a sua recompensa’.

Origem ética da amizade

A origem da amizade é ética porque é na interioridade espiritual de cada ser humano que a decisão de amar alguém acontece, é tomada. Nada substitui ou pode substituir esta origem da acção humana. Ninguém pode decidir por mim amar seja quem for; ninguém me pode obrigar a não amar seja quem for. Posso ter de pagar esta absoluta liberdade com a própria vida. Todavia, este preço é a garantia da minha liberdade, que pode negar todo e qualquer poder externo que me queira obrigar a realizar o que não quero. É por tal que é possível amar o inimigo, mesmo o que se detesta. No entanto, o amor ao inimigo nunca pode constituir amizade, pois, querendo, por definição, o inimigo aniquilar-me, não só não me ama, como age contraditoriamente a esse amor, ao querer não o meu bem, mas o meu mal. De notar que não se trata aqui de qualquer forma de ‘morte piedosa ou misericordiosa’, mas de morte por inimizade.

Sendo assim, a amizade é um acto ético duplo, no sentido em que, havendo acto de amor recíproco, os actos pessoais que o constituem são ambos gerados na interioridade de cada um dos amigos, são ambos éticos em sua origem mais profunda.

Realidade como acto político

Ora, o que distingue fundamentalmente a amizade não é ser um acto de amor, logo, uma realidade ética, mas ser um acto de amor recíproco, o que implica que o factor que a distingue não seja ético, mas político. A amizade tem de ser uma relação política de reciprocidade e semelhança.

É por ser necessariamente política que a amizade é, como Aristóteles percebeu na sequência de Platão, comparável a algo como ‘o cimento da cidade’. Pode dizer-se esta relação de outro modo, mais claro e forte: a amizade é o que cria a comunidade. A palavra «comunidade» também tem sido tornada equívoca, chamando-se comunidade a realidades que não o são; algumas são mesmo suas antíteses. Só falta falar-se em algo como a ‘comunidade dos mafiosos’.

A comunidade é o acto político universal em que o bem-comum impera, isto é, em que todos cuidam do bem de todos. Ora, é, agora, fácil perceber-se que tal realidade corresponde exactamente ao que é a amizade em acto, nos seus três níveis, mas em que é o nível mais elevado que, empregue-se em metáfora o termo exacto: governa.

Tal governo não é algo de utópico, antes corresponde ao que santo Agostinho intuiu como «cidade de Deus», que, não sendo o metafísico «Reino de Deus», é a sua possível concretização mundana, desde que, precisamente, impere a amizade. Para o cristão, a prova de que tal possibilidade não é utópica é uma realidade, a da sagrada Família, concretização plena da amizade, do bem-comum, logo, da cidade de Deus ainda em tempos terrenos. É esta a grandeza antropológica, ética e política da amizade.

O sentido judaico de amizade com Deus – Job

Segundo o modo de pensar grego, não era possível algo como a amizade entre «o divino» e o humano. Logo, algo como o que se passa na narração do drama de Job não seria possível, pois toda a obra pode ser lida e também manifesta o que é uma relação de amizade entre Deus e um Homem, Job.

Do princípio, ao fim da obra, mesmo quando não parece superficialmente, Deus deseja o bem de Job, sem interferir nele, menos no que diz respeito às ordens para que o martirizado não seja morto. Do princípio ao fim da obra, Job ama Deus por amor ao bem que Deus é. Mesmo afastados superficialmente durante quase toda a extensão da provação, Deus e Job mantêm-se como actos de amor um pelo outro. No fim, há um encontro mundano entre os dois em que o seu mútuo amor é reconhecido, já sem véu, já sem entrave.

No início do Génesis, no seio dos campos paradisíacos, Deus e os seres humanos conviviam como família, no respeito pelo bem de todos, até que alguém desrespeitou algo. Ainda assim, o mútuo amor não desapareceu, apenas se tornou dissemelhante, significando a saída do paraíso um interregno numa perfeita amizade anterior. No entanto, tal amizade poderia ser reatada e a vinda de Cristo ao mundo forneceu o meio de tal reaproximação de mútuo amor, carne humana de Homem e carne humana de Deus.

O sentido cristão de amizade em carne com Deus: a perfeição de Job – Cristo

Ora, é Cristo o paradigma definitivo do amor humano. Note-se bem que não se disse do amor divino, pois esse sempre esteve presente e patente. É mesmo do amor humano que Cristo é paradigma. Este amor é um amor de bem-querer, de bem-agir, em que a dimensão política da amizade não pode ser dispensada: o ser humano, não apenas o cristão, mas todo o ser humano, tem na figura de Cristo o modelo perfeito – paradigma – do que é a acção humana segundo o bem do outro, de todos os outros, também como exemplo e apelo a uma universal e constante reciprocidade.

Cristo é, assim, o paradigma do possível Amigo, na sua relação política com todos os que com ele se cruzaram. A resposta a esta possibilidade não depende de Cristo, mas, livremente, de esse que com ele se cruza, em cada cruz da vida, isto é, em cada possibilidade de acto.

A cruz de Cristo não é símbolo apenas de um especial sacrifício, mas representa e simboliza todos os instantes da humana vida em que cada ser humano tem de escolher, sob pena de deixar de existir. Em cada um destes momentos, escolho-me como ser de amizade, isto é, pelo bem do outro e de todos os outros, segundo o meu poder, ou escolho-me como tirano, que quer o bem todo só para si?

No limite da amizade, encontramos a cidade de Deus agostiniana; no limite da não-amizade, encontramos a inimizade e, no fim desta, a aniquilação da humanidade. Só a nós compete escolher.

1 Dada a equivocidade quer da palavra quer do termo «amor», define-se este, como o acto que tem com fim objectivo o bem de alguém (ou de algo, pois, neste sentido, pode amar-se entes que não sejam humanos). O elemento subjectivo, presente, por exemplo, no gosto, não está aqui presente. O amor é sempre objectivo e não tenho de gostar de alguém para amar esse alguém; tenho é de querer e realizar tal bem. Ora, esta definição implica, lógica e imediatamente, que se defina o que é o «bem», porque tal palavra e tal termo enfermam do mesmo mal de equivocidade. Bem é a realidade ontológica própria de qualquer ente. Por outras palavras é a riqueza de ser, de acto, que constitui esse ente, que o ‘ergue do nada’, ‘contra’ o nada. Neste sentido, todo o ser é bem e bom, precisamente porque, segundo o ser, não é nada, mas algo; é neste sentido que, no início do Génesis, Deus quando acaba de criar cada dia o proclama como bom. O bem é, assim, objectivo. Nada diz respeito a qualquer juízo, não é confundível com o valor, que depende sempre de um juízo, sendo, assim, sempre subjectivo. Querer o bem de alguém é, assim, querer o melhor possível, próprio e inalienável, para esse alguém. Em absoluto, apenas Deus sabe que bem possível é esse. Ao ser humano, compete sempre proceder com a necessária prudência, de modo a ir percebendo que possa tal objectivo bem ser, sabendo que pode sempre errar. As virtudes fundamentais – temperança, coragem, sabedoria e justiça – existem precisamente para que a acção humana seja tal que se possa procurar e realizar sempre o melhor bem objectivamente possível. Esta realização é o amor em acto, de que a acção de Cristo é o paradigma, também objectivo. Trata-se de ética e de política, não de psicologia.

Américo Pereira

Coordenador da Área Científica de Filosofia da FCH (UCP), de 2103 a 2015. Membro investigador e vogal da Direcção do Centro de Filosofia (CEFi) da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa).