A matemática, os computadores e os génios dos “algos” (diminutivo de algoritmos) estão a condenar à extinção os corretores de suspensórios e os investidores tradicionais. Estes “algos”, estudando dados e estatísticas, dão ordens de compra e venda aos mercados em milésimas de segundo e provocam oscilações violentas mesmo antes do olhar humano mais sagaz as conseguir identificar. E aumentaram o risco sistémico nos mercados financeiros
POR JORGE NASCIMENTO RODRIGUES*

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A negociação eletrónica de alta frequência nos mercados financeiros, conhecida pelo seu acrónimo em inglês HFT (high-frequency trading), já chegou aos mercados de commodities, alerta um relatório da United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), da autoria de Nicolas Maystre, que vai ser publicado em breve em Genebra.

O estudo refere que, desde o pico da crise financeira de 2008, que os mercados de futuros das commodities descolaram cada vez mais dos factores fundamentais ligados às leis da procura e da oferta das matérias-primas e que o que é comummente designado por especulação tem um papel cada vez maior. No entanto, a financeirização dos mercados de matérias-primas deriva cada vez menos da acção dos protagonistas tradicionais do investimento especulativo. Estamos a assistir à entrada progressiva dos “algos”, diminutivo de algoritmos, nas negociações diárias nestes mercados.

O relatório da UNCTAD examinou em detalhe os contratos para a variedade do crude WTI norte-americana no NYMEX, bem como do açúcar, do trigo, do milho, do gado vivo e de rebentos de soja, e os movimentos de preço ao milésimo do segundo, conhecidos por ticks entre 1996 e 2011. O peso dos “algos” afirma-se e isso vai significar, sublinha o relatório, que estes mercados vão estar cada vez mais sensíveis a efeitos desestabilizadores externos. O seu risco sistémico aumentou e, por isso, bolhas e derrocadas poderão ser mais regulares.

Parece ficção científica
Os mercados financeiros estão, na realidade, a ser dominados pela ficção científica. Não por seres verdes vindos de outras galáxias através de algum portal do tempo, mas pelos “algos”. Estes “algos”, estudando dados e estatísticas, dão ordens de compra e venda aos mercados em milésimas de segundo – sim, leu bem, em fracções pequeníssimas do segundo. Provocam oscilações violentas mesmo antes do olhar humano mais sagaz – o de um mestre de xadrez – as conseguir identificar. E fazem dinheiro nessa arbitragem invisível ao olhar humano.

A matemática substitui, em ritmo acelerado, os corretores gesticulando, em momentos de euforia ou de pânico, apanhados pelos fotógrafos, dando azo à sua “alma animal”, como alcunhava Keynes. Um dia destes tais cenas humanizadas dos booms e das derrocadas financeiras só mesmo em películas da memória do cinema.

Os crânios da matemática e da computação assaltaram estas profissões e estão fora dos olhares dos cidadãos em 400 firmas num universo de 20.000 que trabalham nos mercados bolsistas, segundo dados do AITE Group. Esta revolução deu-se em virtude do salto na digitalização da última década.

A desmaterialização dos processos no sector financeiro permitiu esta substituição progressiva dos corretores de carne e osso pelos corretores automáticos invisíveis. O pontapé de saída foi dado pela autorização de funcionamento de plataformas de negociação eletrónica por parte da Securities and Exchange Comission (SEC) norte-americana em 1998. “Primeiro, os mercados tornaram-se electrónicos e automáticos. Depois, os participantes nos mercados automatizaram as suas estratégias de negociação. A HFT acabou por ter um crescimento significativo desde meados da primeira década do século XXI”, refere-nos o especialista Albert J. Menkveld, da Escola de Finanças Duisenberg, em Amesterdão.

O que defrontamos hoje é “um sistema de máquinas em que vemos o declínio da capacidade humana para influenciar os movimentos de preços em escalas de tempo cada vez mais pequenas. Já não se trata mais de um sistema misto homem-máquina como nos anos 1990 com o corretor de suspensórios olhando os ecrãs de computador”, diz-nos o físico norte-americano Neil Johnson, do Departamento de Física da Universidade de Miami, que recentemente fez uma demonstração científica de como funcionam estes “algos”.

Cresceu treze vezes
Segundo a consultora TABB Group, a HFT domina hoje mais de 70% da negociação, em volume, nos mercados bolsistas dos Estados Unidos, o país onde esta inovação nos processos financeiros nasceu e cresceu mais rapidamente. Em 2003, representaria apenas 5% em volume de ordens e em 2009 não ultrapassava os 25%, segundo um estudo do AITE Group de há dois anos. Em menos de dez anos cresceu treze vezes.

E se a crise financeira poderia deitar um balde de água fria sobre esta actividade, foi justamente o contrário que sucedeu, diz o britânico Paul Wilmott, um doutorado de Oxford em matemática, especialista em derivados e risco, um dos expoentes das finanças quantitativas: “Decididamente, a HFT está a crescer a olhos vistos, e agora fora dos Estados Unidos”. O holandês Menkveld, por seu lado, considera que a HFT beneficiou o crescimento do Chi-X Europe (hoje BATS Chi-X Europe), actualmente a maior em volume e a mais rápida plataforma multilateral no mercado europeu de ações.

Na Europa, a evolução é brutal nos últimos quatro anos: os corretores dominavam 67% das ordens em 2008 e este ano estima-se que o seu papel desça para 42%. “A marcha da automatização contínua e a negociação na base de algoritmos vai dominar a Europa. Subiu de 21% em 2008 para 37% em 2011, e estima-se que chegue aos 39% este ano. Se lhe somarmos as redes cruzadas, essa percentagem subirá para 45%”, diz-nos Rebecca Healey, analista sénior da TABB em Londres. Ainda segundo dados desta consultora, a taxa anual composta de retorno de um investimento realizado através do HFT será de 17% entre 2008 e 2012 contra uma taxa negativa de 11% para as ordens dadas pelos corretores de carne e osso. Mas a vaga do HFT já não se fica pelas bolsas de valores. Ela salpica transversalmente outras “classes” de activos, como as mercadorias (a que nos referimos acima), as divisas, os títulos e os derivados, refere Menkveld. No mercado dos câmbios, as firmas de HFT localizam-se em Chicago, Nova Iorque e Londres.

Estas ferramentas criaram um fosso dentro dos agentes deste mercado financeiro. “Os grandes ganhadores são os fundos de alto risco [hedge funds], como o Renaissance Technologies ou o Citadel Group, que colocaram os seus computadores a trinta metros dos computadores que executam operações. Muita arraia-miúda nunca será capaz de o fazer nem mesmo de aprender. Não conseguirão investir em doutorados em ciência acabadinhos de sair das escolas que desenvolvem estes algoritmos”, sublinha-nos o consultor financeiro e tecnológico Peter Cohan, em Boston.

As primeiras “derrocadas instantâneas”
As primeiras amostras de surpresas desagradáveis provenientes da volatilidade insana da HFT, bem visíveis nas bolsas norte-americanas, ocorreram, pela primeira vez, em 2010 no que ficou conhecido como “derrocadas instantâneas” (flash crash). A primeira deu-se a 6 de maio (a mais conhecida) e terá havido outra a 1 de setembro, que não foi investigada oficialmente.

A derrocada de 6 de maio foi acompanhada, com estupefacção, em todo o mundo quase em direto durante os trinta minutos que decorreu. O índice norte-americano Dow Jones Industrial Average caiu 998,5 pontos, a mais colossal queda intra-diária jamais registada, levando à evaporação de quase um bilião de dólares de capitalização, para, de seguida, recuperar meteoricamente, com a segunda maior subida de 1010,14 pontos. Também nos futuros ocorreu o mesmo padrão: o índice do E-mini S&P 500 (uma plataforma eletrónica de futuros no Chicago Mercantile Exchange) colapsou 5% em quinze minutos.

Por sorte, o evento ocorreu a meio da tarde nos Estados Unidos. Se a derrocada tivesse acontecido no fecho, sem recuperação possível, teria desencadeado um cenário de pesadelo que contagiaria a reabertura dos mercados na Ásia e, depois, na Europa no dia seguinte. O mistério do evento levou os governos americano e britânico a estudar o assunto como questão de segurança e muitos cientistas, sobretudo os ligados à corrente da teoria da complexidade, a mergulharem nesta “prenda” dada pelos mercados financeiros. A SEC não considerou que a culpa fosse da HFT. Estas ferramentas apenas “exacerbaram” a derrocada, concluiu. A explicação principal, segundo o regulador, derivou de “factores conjunturais”.

Entretanto, já se registaram três eventos deste tipo fora do sector bolsista. A 17 de março de 2011, ocorreu uma mini-derrocada instantânea no mercado cambial do iene e a 31 de março do mesmo ano no mercado de negociação de fundos de investimento no Nasdaq e no NYSE/Euronext. A 8 de junho do mesmo ano, deu-se um fenómeno similar no mercado do gás natural nos EUA, que foi atribuído a um “algoritmo malicioso”.

Risco sistémico aumentou
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O risco sistémico que esta dimensão invisível da negociação trouxe é hoje reconhecido. A hipótese de instabilidade congénita do sistema financeiro moderno apresentada pelo economista Hyman Minsky desde os anos 1970 é hoje maior: “O ponto de vista de Minsky é demasiado económico e demasiado longo no tempo. Hoje há carradas de razões para a instabilidade provocada pelos algoritmos. A volatilidade disparou”, ironiza Paul Wilmott. O holandês Menkveld acrescenta: “A hipótese de Minsky pertence à macroeconomia. Estas derrocadas instantâneas pertencem à microestrutura. Os mercados intermediados por computadores podem ser ainda mais vulneráveis aos choques”. “Como a HFT é a ultima interacção de um jogo de negociação em que todos os jogadores podem beneficiar se a dívida sobe, como agora estamos a viver um período de queda da dívida, torna-se um jogo ainda pior do que a soma nula e a dado passo colapsará”, prevê o australiano Steve Keen, autor de “Debunking Economics” (Desmascarando a Economia).

O problema preocupa, por isso, os governos e, no Reino Unido, por exemplo, o departamento de Ciência do governo de Sua Majestade mandou estudar o problema a uma equipa dirigida por Dave Cliff, da Universidade de Bristol. O estudo, recentemente publicado, concluiu: “O comportamento de conjunto deste sistema pode ser difícil ou impossível de predizer. Os mercados financeiros globais são hoje um sistema complexo adaptativo. Grandes falhas podem hoje ocorrer a uma velocidade super-humana, como aconteceu com a derrocada instantânea de 6 de maio de 2010. Eventos deste tipo podem tornar-se correntes no futuro”.

As vozes contra os “algos” têm, por isso, subido de tom. Na Europa, a Deutsche Bourse e a Borsa italiana estão a planear penalizar as firmas que usam a HFT. “Todos os fluxos de ordens, e não só a HFT, têm o potencial de ser entendidos como tóxicos – depende do tipo de ordem que é dada e das condições de mercado na altura. Contudo, se as firmas que usam a HFT forem obrigadas a sair do mercado, as eficiências que geraram poderão desaparecer e os mercados europeus correm o risco de ficarem substancialmente menos competitivos”, adverte Rebecca Healey.

Jorge Nascimento Rodrigues é editor de www.gurusonline.tv, www.janelanaweb.com e geoscopio.tv. É igualmente Editor Executivo da Revista Portuguesa e Brasileira de Gestão e colaborador do semanário Expresso.

Adaptado de artigo publicado na edição impressa do Expresso de 10 de março de 2012.

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