Depois dos desafios, as grandes questões: o Fórum Económico Mundial falou com vários dos membros pertencentes ao Global Agenda Council sobre (outros) grandes temas que dominarão o mundo no futuro próximo. A biotecnologia, a democracia, a vigilância e as multinacionais estão entre as temáticas eleitas pelo VER como as que mais tinta irão fazer correr
POR HELENA OLIVEIRA

Meio século passado sobre a morte de Aldous Huxley e o futuro hipotético criado pelo célebre autor inglês no livro “Brave New World” (publicado em 1932) não está assim tão desfasado face à nossa actual realidade. Huxley imaginava um mundo no qual as pessoas seriam pré-condicionadas biológica e psicologicamente, sem ética religiosa ou valores morais e uma sociedade que recusava o conceito de família. Felizmente, as suas hipóteses não se transformaram em realidades absolutas, mas é impossível não o citar quando olhamos para as múltiplas possibilidades originadas pelos progressos científicos e tecnológicos, uma das grandes tendências identificadas pelo painel de especialistas do FEM.

Adicionalmente, parece que quis o destino que Huxley se cruzasse com Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudónimo de George Orwell, autor do célebre “1984”, a quem deu aulas por um curto período de tempo. Na obra de Orwell, o mais do que conhecido conceito “Big Brother” remete-nos igualmente para os dias de hoje e também para uma das tendências eleitas pelo FEM para 2014 e para o futuro próximo: a vigilância a que, crescentemente, estamos todos sujeitos.

Seguem-se, abaixo, quatro grandes questões identificadas pelo FEM como cruciais para o nosso futuro. E sem Huxley ou Orwell, a verdade é que o futuro parece, em alguns casos, chegar cedo demais.

O futuro da biotecnologia
O que é necessário acontecer para a biotecnologia alcançar o seu maior potencial?
“Os avanços na biologia e nas ciências biomédicas aumentam a necessidade de se evitar a sua exploração para utilizações maliciosas ou hostis e para reforçar as suas intenções positivas. A curto prazo, são doenças novas e fatais que estão a dominar as nossas preocupações: a longo prazo, será a nossa capacidade para manipular o genoma humano que saltará para o topo das preocupações”.
Jeanne Guilemin, investigadora do Programa de Armas Químicas e Biológicas Harvard Sussex, da Universidade de Sussex

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Sir Leszek Borysiewic,vice-chanceler da Universidade de Cambridge e membro do Global Agenda Council sobre o Futuro das Universidades escreve, em tom optimista, sobre os progressos da biotecnologia que, a seu ver, irão ajudar a erradicar doenças, ao mesmo tempo que os avanços na ciência botânica contribuirão para alimentar a futura população global de nove mil milhões de pessoas. Todavia, é igualmente necessário, alerta, estar ciente dos dilemas éticos, e dos constrangimentos legais, que envolvem estes progressos.

O poder da genética, a capacidade de se modificar organismos geneticamente, desde as bactérias, passando pelas plantas e sem esquecer os mamíferos constituem, como seria de esperar, um dilema de gigantescas proporções. Se por um lado, este progresso permite a criação de organismos mais fortes, “melhores” e mais eficazes, torna-se óbvio que levanta uma questão ética e moral: tem o homem o direito de manipular a vida? Adicionalmente, uma das áreas que está a apresentar maiores desenvolvimentos é a das bases de dados massificadas que os cientistas têm à sua disposição. Se, por um lado, estas permitem a criação de um perfil com dados importantíssimos de um determinado paciente – aumentando a compreensão da doença em causa e dando lugar a novas descobertas – , por outro, estas mesmas bases de dados tocam na questão da privacidade.

“Os constrangimentos éticos existem, tanto no interior da comunidade científica, como no público em geral”, afirma Borysiewic . E os comités de ética têm de aprovar as pesquisas científicas que estão a ter lugar, ao mesmo tempo que os cientistas têm de ser responsáveis no que respeita ao seu trabalho e ao dos seus pares. Borysiewic  admite ainda que “apesar de não ser possível controlar o que um cientista ou um país faz individualmente”, a comunidade científica tem de estar aberta ao escrutínio público e envolver-se nos debates levados a cabo pela sociedade no geral, explicando os benefícios potenciais das suas pesquisas mas antecipando, igualmente, prejuízos potenciais.

O futuro da democracia
Estaremos a testemunhar o princípio do fim da democracia?
“Os governos têm de abordar as frustrações e o descontentamento crescentes de largos segmentos da população, especialmente no que diz respeito aos jovens, os quais estão a ser particularmente afectados por um aumento significativo do desemprego, em algumas regiões desenvolvidas – como a União Europeia – bem como em muitas economias emergentes”.
Anne Miroux, Directora da Divisão de Tecnologia e Logística e membro do Global Agenda Council para a Logística e Sistemas da Cadeia de Abastecimento

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Para o Professor Joseph Nye, da Harvard Kennedy School e membro do Global Agenda Council para o Futuro do Governo, esta ideia [do fim da democracia] é demasiado pessimista. Sim, a democracia tem os seus problemas, afirma, mas sempre os teve, mesmo na Grécia Antiga. O professor recorda igualmente o período da Grande Depressão, nos anos de 1930, no qual existia uma crença disseminada de que a democracia tinha chegado ao seu fim enquanto forma de governo e que o fascismo e o comunismo iriam prevalecer. Todavia, Nye considera ser muito prematuro pensar-se, sequer, no fim da democracia.

Todavia, o professor reconheceu que o inquérito levado a cabo pelo Global Agenda assinalou uma mudança das expectativas por parte dos cidadãos relativamente aos seus governos. Os dados recolhidos ligam os fracassos da democracia a um falhanço mais alargado das instituições que governam a vida política, económica e social. E, de forma interessante, sublinha o professor, o inquérito aponta igualmente para o aumento visível do envolvimento dos cidadãos como um factor de risco para essa mesma democracia.

“Estamos a testemunhar um declínio de longo prazo no que respeita à confiança nas instituições, incluindo as empresas, os governos e as organizações religiosas, mas uma das grandes tendências do século XXI é a difusão do poder do Estado para agentes não estatais”, escreve, relembrando que a Internet conferiu, a uma quantidade significativa da população, o acesso a mais informação e a um menor custo, fenómeno nunca antes visto. O que significa “que os governos e as hierarquias tradicionais lutam com dificuldades crescentes para ‘fazer as coisas’, a não ser que se adaptem a procedimentos mais interligados e a estruturas mais horizontais”, conclui.

Todavia e como defende, “temos de nos lembrar que não estamos a falar de máquinas – as instituições políticas e sociais não mantêm o mesmo ritmo da Lei de Moore nem o desenvolvimento acelerado dos computadores – o que significa que existe uma dialéctica entre os agentes com novos poderes e as instituições tradicionais”. E é por isso, afirma,” que podemos ver os manifestantes a reunirem-se na Praça de Tahir utilizando os media sociais para exigirem uma mudança e, apenas alguns meses mais tarde, assistirmos a um golpe militar, no mesmo local, que derruba um líder democraticamente eleito”.

Joseph Nye alerta também para o facto de ser necessário olhar para esta questão com uma visão de longo prazo, sublinhando que até o termo “Primavera Árabe” sugere algum tipo de sazonalidade. Para o professor e na verdade, o mais correcto seria estarmos a falar de uma “Revolução Árabe”, sendo que as revoluções levam décadas a “amadurecerem”, acrescenta. Dando o exemplo da Revolução Francesa, que começou em 1789 e só teve o seu fim no Congresso de Viena em 1815, Joseph Nye relembra que, mesmo nesse caso em particular, o resultado foi uma reafirmação da autoridade tradicional. Assim, enquanto a Revolução Francesa despoletou um conjunto de ideias poderosas que acabaram por se disseminar por toda a Europa, é necessário uma perspectiva de cerca de 100 anos para se garantir que uma dita “revolução” prevaleceu.

O futuro da vigilância
De que forma a vigilância digital se encaixa num mundo de transparência crescente?
“Será que a democracia e o capitalismo se encontram em risco devido à proliferação da vigilância e da agregação de dados? Será a privacidade uma coisa do passado? Será que os grandes vencedores dos “Big Data” se transformarão em monopólios?”
James Stewart, presidente de Infra-estruturas Globais da KPMG e membro do Global Agenda Council para as Infra-estruturas.

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A emergência dos “Big Data” – traduzido livremente por gigantescos volumes de dados – alterou fundamentalmente o nosso relacionamento com a informação e fez emergir a questão das nossas expectativas face à privacidade. Tal como explica Nigel Inkster, Director do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos sobre Riscos Políticos e Ameaças Transnacionais, e membro do Global Agenda Council para o Terrorismo, a nossa informação pessoal, em conjunto com os comportamentos online, tornaram-se numa commodity a ser analisada e comercializada de uma forma pouco apreciada pela esmagadora maioria dos utilizadores e praticamente sem qualquer tipo de controlo.

Enquanto anterior membro dos serviços secretos, Inkster admite não ser estranho à vigilância electrónica, ao mesmo tempo que compreende que os cidadãos “normais” se sintam desconfortáveis com este fenómeno. Como afirma, “vivemos agora num mundo de Big Data e, ao contrário do que acontecia no passado, as tecnologias que possibilitam esta realidade estão quase exclusivamente nas mãos do sector privado”.

Assim, defende, não pode ser encarado como surpreendente o facto de os governos tentarem acompanhar o ritmo destes desenvolvimentos para assegurar a segurança nacional ou para ganharam uma vantagem nacional: “existem muitos actores malévolos que utilizam a internet e outros meios electrónicos para propósitos nefastos como a criminalidade, a sabotagem e o terrorismo, sendo que os governos precisam de ser capazes de combater essas actividades”. Todavia, o especialista em terrorismo afirma também que é necessário existir clareza no que respeita às razões devido às quais os governos acedem a estes Big Data – não concordando com as formas como o estão a fazer – bem como processos transparentes e verificáveis para assegurar que esse tipo de acesso não se transforma em abuso. Todavia, é o próprio a questionar-se se os seus anteriores colegas – pertencentes à comunidade dos serviços de informação – sentiriam algum problema de consciência face a estas proposições.

E, talvez por isso mesmo, Nigel Inkster não acredita que seja possível existir “aspirações conciliatórias perfeitas entre a transparência e a necessidade de segurança”. Para o ex-agente secreto, terá que existir um cálculo pragmático impulsionado pelas percepções de ameaça e risco, sendo que a própria história sugere que a maioria das populações aceita alguns constrangimentos à sua liberdade em troca de um sentimento de segurança.

Inkster também não tem grandes dúvidas no que respeita a qualquer alteração no que respeita à utilização dos meios electrónicos para a espionagem entre estados, na medida”em que esta é, simplesmente, uma função da condição humana que muito dificilmente sofrerá alterações”. E é por isso que, sem falsas ingenuidades, defende que os estados que se sentem em desvantagem terão apenas que adoptar uma segurança mais eficaz nas suas comunicações e, talvez, investir mais recursos nos seus próprios serviços de intelligence.

Todavia, o responsável pela área de terrorismo do Global Agenda Council afirma também que as preocupações sobre segurança e privacidade não devem obscurecer os benefícios muito reais inerentes à Internet. No que diz respeito a toda a polémica actual sobre ameaças e riscos – sem falar nos abusos declarados à privacidade – o especialista recorda que, até agora, nada demasiado grave aconteceu no ciber-domínio. Todavia, acrescenta, “o ritmo do desenvolvimento apanhou-nos a todos de surpresa e está na altura de começarmos a pensar sobre as implicações de vivermos de uma forma cada vez mais sistémica… e mais democrática”.

O futuro das multinacionais
De que forma a economia global será afectada pela ascensão das multinacionais provenientes dos mercados emergentes?
“Até 2020, espera-se que os BRICS sejam responsáveis por quase 50% do crescimento global do PIB. Assegurar uma base operacional forte nestes países será crucial para os investidores que procuram crescimento”.
Neeraj Bharadwaj, Director Geral da Carlyle India Advisers e membro do Global Agenda Council para a Índia

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À medida que as multinacionais dos mercados emergentes se transformam em players globais por excelência, as suas actividades de negócio irão significativamente estimular a integração e a cooperação entre mercados desenvolvidos e emergentes e contribuir, substancialmente, para o dinamismo e crescimento da economia global. Esta é a opinião de Liu Jiren, Presidente e CEO da Neusoft Corporation e membro do Global Agenda Council para as Multinacionais Emergentes. Com vantagens em termos de eficiência de custos e de dinâmica na inovação, as futuras multinacionais globais irão acelerar a tendência de uma “inovação invertida”, que dará lugar a soluções mais acessíveis e eficazes para o mundo. Para Liu Jiren, a cooperação conjunta entre mercados desenvolvidos e emergentes em Inovação & Desenvolvimento, no sector da produção  e em muitos outros sectores será igualmente crescente, contribuindo para estimular o crescimento económico e para ajudar a resolver muitos dos problemas globais sistémicos com os quais nos confrontamos.

Em tom optimista, Liu Jiren acredita ainda que estas multinacionais irão aumentar a sua produtividade e terão a oportunidade de adquirir as melhores práticas por parte dos mercados desenvolvidos. Os seus mercados domésticos ganharão uma nova maturidade e a capacidade de inovação e de operações de negócios das multinacionais acusará igualmente uma substancial melhoria, beneficiando de um desenvolvimento sustentável de longo prazo proveniente destes mesmos mercados.

O responsável pela área das Multinacionais Emergentes do Global Agenda Council assegura que esta altura é crucial para os mercados emergentes que pretendem competir a nível global. “Testemunhámos já as tentativas de empresas da Índia, China ou Rússia para fazerem essa mudança. O custo de fazer negócio é sempre um factor, na medida em que quando as empresas globais entram nos mercados emergentes, os seus custos são menores relativamente aos que são praticados nos seus mercados doméstico”, escreve. Todavia, “se estas empresas pretendem operar e contratar num mercado mais desenvolvido, os custos acabam por ser muito mais elevados”, acrescenta.

O especialista afirma também que as empresas chinesas, em específico, possuem pontos mais fortes a seu favor. “Conseguimo-nos mover mais rapidamente, sermos mais flexíveis e tomar decisões de forma mais célere”, diz. “O problema é que a maioria dos nossos líderes de negócios não tem a experiência necessária para compreender o mundo fora da China”, admite, acrescentando que “estes não estão prontos para serem globais pois não percebem a cultura, os sistemas legais ou a mentalidade” que existe para além das suas próprias fronteiras.

E este é, de acordo com Liu Jiren, o maior desafio com que se defrontam estas empresas. Adicionalmente, precisam ainda de construir as suas vantagens competitivas “soft”, trabalhar em áreas importantes como a responsabilidade social e aprender a empregar pessoas fora dos seus países de origem. “Quando olhamos para o Japão ou para a Coreia, vemos empresas bem-sucedidas a vender carros, telefones móveis ou televisores, o que significa que podemos vender produtos a nível global”, diz. Mas a verdade é que “temos de pensar de ‘pessoas para pessoas’ e não apenas de ‘produtos para pessoas’, o que é uma mentalidade significativamente diferente”, remata.

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