Numa cultura de encontro, mobilizando os meios mais adequados, sabemos que o caminho mais profícuo é o que se faz em conjunto, em rede, em complementaridade. O coletivo tem sempre mais alcance que o individual e isolado. Vivemos num tempo em que dispomos de todas as capacidades para combater a pobreza e contribuir para atingir as metas inerentes aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Se não o fizermos, não será por falta de capacidades, ou de conhecimento, mas por pouca disponibilidade, indiferença ou falta de caráter
POR JOÃO PEDRO TAVARES

Definitivamente, as empresas deverão ser, cada vez mais, agentes e motores que contribuem para o desenvolvimento económico e humano nas sociedades. Muito para lá das suas tradicionais fronteiras, mas adotando modelos de desenvolvimento fundados no propósito, na missão e nos valores.

O lucro é um importante meio para a sustentabilidade das organizações, mas não é um fim em si mesmo. É um meio para um fim maior e mais amplo. A criação de valor e a justa distribuição entre todos os stakeholders, o impacto na sociedade, a forma como se servem clientes e se envolvem fornecedores, a remuneração dos acionistas, o respeito e defesa da dignidade das pessoas e o contributo para o seu desenvolvimento e das suas famílias, o respeito pelo nosso planeta enquanto casa-comum numa responsabilidade económica, a promoção de modelos de transparência e de bom governo, a liderança enquanto serviço que promove o bem comum, a conjugação do curto com o médio e longo prazo são alguns dos desafios que tornam mais completo o modelo, mas amplificam de modo significativo o impacto das organizações. As que seguirem estes princípios irão destacar-se significativamente das restantes, seja na captação e retenção dos melhores recursos, no seu reconhecimento e reputação, numa maior projeção e impacto e na consequente obtenção de resultados absolutamente diferenciadores. É no mundo das empresas que mais se investe em inovação, em ciência aplicada às necessidades do mundo, em conjunto com a academia. É no mundo das empresas que se promovem as maiores parcerias, se testam novos modelos, produtos ou serviços, se arrisca em empreender, fazer acontecer com impacto e onde se criam as maiores transformações. São as empresas o verdadeiro motor do desenvolvimento cabendo-lhes, por isso, uma responsabilidade crescente e muito significativa. 

Vivemos numa sociedade que sofre mutações a cada dia, que prospera, que cresce em produto económico e em desenvolvimento, mas que teima em não resolver alguns dos seus problemas de base, como sejam as crescentes desigualdades sociais nos extremos ou a persistência da pobreza. Não é compreensível que o mundo produza o suficiente para erradicar a fome ou diminuir significativamente a pobreza, mas que ainda não tenha tido a arte de o conseguir fazer acontecer. Por que motivo? Cabe-nos, enquanto líderes empresariais, tomarmos esta responsabilidade como um desígnio pessoal e envolvermo-nos numa rede que permita, em conjunto e complementaridade com outras entidades – rede empresarial, rede social ou o próprio Estado, a nível local ou internacional, com instituições como o Banco Mundial, as Nações Unidas ou outras – trabalharmos em conjunto e de forma convergente para atingirmos este propósito maior: a erradicação da pobreza, a par da promoção de um mundo mais justo. Não apenas num modelo assistencialista, de curto prazo, mas num modelo mais amplo e transformador, de compromisso para o médio e longo prazo.

Os dez homens mais ricos do mundo mais do que duplicaram as suas fortunas de 700 mil milhões de dólares para 1,5 biliões – o equivalente a 15 mil dólares por segundo ou 1,3 mil milhões de dólares por dia – durante os primeiros dois anos da pandemia. Em simultâneo, os rendimentos de 99 por cento da população sofrerem uma queda e mais de 160 milhões de pessoas ingressaram na categoria dos “novos pobres”. Um novo multimilionário foi “criado” a cada 26 horas e este fosso de desigualdade contribui para a morte de uma pessoa a cada quatro segundos. Os números são feios e vergonhosos e foram divulgados no habitual relatório da organização Oxfam sobre a desigualdade.

Foi ainda recentemente divulgada a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, que envolveu no seu desenvolvimento múltiplos parceiros de diversos setores e procurou ser, sobretudo, abrangente, específica, convergente e aberta. Nas soluções, no caminho e na convocatória de todos os intervenientes que possam vir a contribuir para a eliminação da chaga da pobreza na nossa sociedade. 

Foram ainda recentemente publicados vários estudos, de enorme abrangência e rigor, complementares na abordagem, mas convergentes nas conclusões. A sociedade portuguesa, na sua origem e antes de ativados todos os apoios, tem uma percentagem elevada de potencial pobreza. Depois de aplicados os apoios sociais, essa percentagem desce drasticamente, mas ainda resulta num número significativo de famílias, com pessoas empregadas, em situação de pobreza. Cabe-nos, por isso, esta responsabilidade pessoal, corporativa, enquanto líderes empresariais e empresas, lidar de frente com estas situações e procurar identificar formas de transformar, de promover a erradicação da pobreza, em particular junto dos que se cruzam connosco nas nossas empresas. 

Reconhecemos que, para além dos que são “considerados pobres”, temos, nas empresas, colaboradores cujas famílias sofrem igualmente de condições de pobreza/escassez, sendo que muitas das circunstâncias que as conduzem a esta pobreza potencial podem e devem ser mapeadas. Importa sinalizar os colaboradores cujas famílias se encontram em situação de potencial pobreza e identificar formas de apoio mas, sobretudo, de devolver e dignidade, a partir da própria família, cabendo-nos mobilizar recursos, de ajuda, de apoio mas e sobretudo, de criar condições para que estas famílias saiam desta condição.

Cabe-nos ainda mobilizar recursos, de ajuda, de apoio, caminhos mais amplos, mas sobretudo, de criar condições para que estas famílias tenham condições para, de per si, saírem das situações de potencial pobreza em que se encontram. Reconhecemos que, para lá dos pobres, temos sobretudo famílias pobres e muitas das circunstâncias que conduzem as famílias à pobreza potencial estão mapeadas. Importa sinalizar os colaboradores cujas famílias se encontram em situação de potencial pobreza e identificar formas de apoio, mas sobretudo, de devolver e dignidade, a partir da própria família.

Neste contexto a ACEGE decidiu lançar o Semáforo como ferramenta de apoio para sinalizar as situações de maior fragilidade, numa avaliação mais ampla que inclui um olhar sobre as condições financeiras e de acesso a rendimentos, a uma habitação condigna, à educação, aos cuidados de saúde ou de higiene, a uma alimentação saudável, aos transportes ou ainda o acesso a uma inserção comunitária da família. Numa primeira fase, pretendemos “tornar visível o invisível”, aquilo que era desconhecido ou ignorado, pretendendo-se identificar (tal como num semáforo, utilizando as cores de verde, amarelo ou vermelho) a situação das famílias de modo a poder-se agir de forma mais direcionada.

Numa fase posterior, pretendemos “tornar possível o impossível”, o que implicará mobilizar os meios necessários que capacitem a família para transformar a sua situação. Mas também dispor de uma rede de proximidade e de apoio que ajude a responder às necessidades específicas identificadas. É em rede, em complementaridade, com os recursos disponíveis bem direcionados que conseguiremos melhores resultados e, sobretudo, ser transformadores. E, por fim, numa fase mais avançada, temos o sonho de democratizar a rede de acesso e de transformação, tornando “acessível a todos o que é de todos”.

É um caminho amplo o que temos pela frente, mobilizando novos agentes, criando caminhos de proximidade e consciencializando os líderes empresariais a serem agentes de mudança como tantas vezes o têm sido. Sendo empreendedores, mobilizadores, poderão vir a dar um contributo significativo, em conjunto com muitos outros agentes. Pretendemos que sejam envolvidas as famílias, apoiando-as e capacitando-as para a transformação das suas situações, devolvendo-lhes a sua devida dignidade. 

As soluções primeiras e mais imediatas poderiam ser efetivadas através de apoios monetários, ou de aumento de salário ou de criar maior acesso ao trabalho, serviços ou cuidados. Mas, numa cultura de encontro, mobilizando os meios mais adequados, sabemos que o caminho mais profícuo é o que se faz em conjunto, em rede, em complementaridade. O coletivo tem sempre mais alcance que o individual e isolado. O tempo, o médio e longo prazo é também superior ao espaço, à tática de curto prazo. Ou, de outra forma, o caminho, mesmo que longo, é mais proficiente do que a solução, muitas vezes temporária e de remedeio. A busca de soluções rápidas não nos conduz, na maioria das vezes, a um caminho que busca um bem que seja maior, mais amplo e mais duradouro.

Na ferramenta do Semáforo cabe-nos identificar focos de pobreza nas famílias, em múltiplas variáveis, como sejam a económica e financeira, a habitação condigna, o acesso a cuidados de saúde condignos ou a uma educação adequada ou a uma nutrição apropriada, entre outros. São, na sua maioria situações de pobreza escondida ou anónima que, ao verem a luz do dia, deverão preservar-se na exposição, mas contribuir para uma tomada de consciência dos líderes, empresariais e políticos, promovendo a sua mobilização e envolvimento.

Cabe às empresas, numa primeira fase, cuidar dos que são mais próximos, destacando-se os seus colaboradores e as famílias mais pobres. E, a partir desta realidade, ensaiar redes de “bem-fazer” com outras entidades para que se possa, posteriormente, chegar a todos e, se possível, aos mais necessitados e em pobreza mais extrema, os que estão excluídos do mercado de trabalho, os não qualificáveis, os descartáveis, os considerados como irrecuperáveis. É um caminho passo-a-passo, mobilizador e em que as boas histórias se poderão propagar de forma mais ampla e abrangente. 

Esta não é uma responsabilidade individual, mas coletiva e se há entidades abertas às parcerias e desenvolvimento conjunto, em complementaridade, são as empresas, os institutos públicos e a economia social.

Cabe ainda às empresas, a promoção do desenvolvimento humano e da dignidade das suas famílias. É nas empresas que mais se investe em desenvolvimento e formação contínua – em conjunto com as universidades – e, nesse sentido, dever-se-á olhar para a formação e desenvolvimento humano de forma mais ampla, incluindo-se, a educação familiar, a literacia financeira, os cuidados de saúde e de higiene, os cuidados na nutrição saudável. Um dos problemas da pobreza tem origem na falta de formação a diversos níveis e que reduz sinais de esperança no futuro para muitos e, com isso, desestrutura as famílias.

Por outro lado, ao conhecer-se de forma mais clara a situação dos que nos são mais próximos podem desenvolver-se caminhos transformadores. Ao nível da segurança familiar e, em particular, da segurança alimentar e adequada nutrição, deverão promover-se mecanismos de partilha e envolvimento de todos. 

É a partir das empresas que se constroem muitas redes de voluntariados e bem-fazer, no exercício responsável de cidadania dos seus colaboradores. Cabe às empresas promover os mecanismos necessários para que estas redes possam ter um impacto mais profícuo e responder às necessidades que lhes são próximas do seu propósito ou responder ao exercício de cidadania dos seus colaboradores, com impacto crescente na sociedade. 

Por fim, ao referenciarmos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações (ODS), são múltiplos os que se encontram ao alcance das empresas, de forma a maximizar o impacto.

O problema da segurança alimentar é enormemente abrangente e amplo e, se não for tratado de forma direcionada, acabará por não sair de intenções e propósitos, perdendo-se em objetividade. Todas as iniciativas assistencialistas servirão para atenuar problemas de curto prazo, mas não produzirão transformações mais amplas e profundas de médio e de longo prazo. Recordo empresas que contribuíram, como parte do seu propósito, para a disponibilização de produtos de muito baixo custo em zonas menos desenvolvidas do globo e, com isso, deram a oportunidade a muitas famílias de acesso a uma alimentação minimamente saudável. Outras ainda disponibilizaram-se a capacitar pequenos empreendedores. Ou ainda recordar o lançamento de produtos de microfinanciamento para as famílias e que permitiram o lançamento de pequenos negócios ou a capacitação para a resolução de problemas específicos.

Existe uma interligação em muitos dos ODS. Erradicar a pobreza (ODS 1) ou eliminar fome e a malnutrição (ODS2) são males com as mesmas raízes, bem como outros como sejam o acesso à saúde (ODS4), à Educação (ODS5), à água potável (ODS6). Ou outros que dizem respeito ao mundo do trabalho, como sejam o do trabalho digno e desenvolvimento sustentável (ODS8), o da indústria, inovação e desenvolvimento (ODS9) ou o da redução de desigualdades (ODS10), em que as empresas se deverão envolver de forma mais direta. Mas em nenhum se pode ignorar o relativo a parcerias sustentáveis, que promove a convergência dos fins e o bom uso dos recursos, em complementaridade (ODS17).

Vivemos num tempo em que dispomos de todas as capacidades para combater a pobreza e contribuir para atingir as metas inerentes a estes objetivos de desenvolvimento sustentável. Se não o fizermos, não será por falta de capacidades, ou de conhecimento, mas por pouca disponibilidade, indiferença ou falta de caráter. Ou ainda por falta de coordenação ou objetividade. A desigualdade, a fome ou uma pobreza com nome toca-nos de perto, envolve-nos, compromete-nos. É esse o caminho. Tudo isto se agravou com a pandemia e a guerra e, por isso mesmo, deve mobilizar-nos mais ainda. Serão mais de 263 milhões de pessoas empurradas para a pobreza extrema ao longo do ano de 2022, o que resulta num total de 860 milhões de pessoas a viver abaixo do seu limiar, com cerca de 1,7 de euros por dia.

No recente congresso da UNIAPAC – Associação mundial dos empresários e empreendedores católicos – o Papa perguntava-nos: “convidaram os pobres? Tenham-nos presentes nos vossos coração e decisões”. Este é o desafio. Às empresas e aos empresários não toca toda a responsabilidade, mas uma parte. E dessa parte não nos devemos demitir nem a olhar com indiferença.

Não falamos de números, mas de pessoas e de famílias, de crianças e jovens. Não são anónimos distantes, mas rostos próximos e visíveis, assim o queiramos ver e envolvermo-nos. Não poderemos passar adiante nem adiar. O tempo urge para cumprimos a nossa missão.

 

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Nota: Artigo publicado originalmente pela Rediteia-EAPN, Revista de Politica Social promovida pela EAPN Portugal. Republicado com permissão.

Presidente da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores