A Associação Caminhos da Infância lançou recentemente uma campanha de sensibilização para assinalar o Mês Internacional de Prevenção do Mau Trato na Infância, trazendo o tema a debate. Em entrevista ao VER, as promotoras do projecto, Francisca Carneiro e Inês Poeiras, defendem que “quando se trata de tradições e cultura, qualquer impacto tem que ser geracional”. Porque “não há transformações imediatas”
POR MÁRIA POMBO

Para assinalar Abril como o Mês Internacional de Prevenção do Mau Trato na Infância, a Associação Caminhos da Infância lançou, no passado Sábado, a campanha “A infância não se repete, fica para sempre”. O objectivo é alertar a sociedade para todo o tipo de maus tratos às crianças – mesmo aqueles que “não se vêem” ou que são mais facilmente aceites mas que têm uma grande expressão, de que é exemplo a negligência parental –, trazendo o tema a debate, para que “um dia” a sua taxa de incidência seja um problema do passado, em Portugal.

Desenvolvida pelo segundo ano consecutivo, a campanha integra um conjunto de cartazes e vídeos, com algumas figuras públicas, onde foram recriadas fotos da infância das mesmas e recordadas experiências passadas (das férias de Verão, do Natal ou de algum momento especial) ou são contadas histórias infantis. Os cartazes estarão em exposição pelas ruas de Lisboa durante o mês de Abril e os vídeos circulam já nas redes sociais.

Em entrevista ao VER, Francisca Carneiro e Inês Poeiras, membros da direcção desta associação, explicam quais foram as suas motivações para a criação desta associação e quais são as expectativas para esta campanha.

Francisca Carneiro conta que é necessário questionar “as práticas educativas prejudiciais para a criança, que ainda fazem parte das suas tradições e atitudes”. Ao considerar que, tratando-se de tradições e cultura, “qualquer impacto tem que ser geracional”, a licenciada em Política Social diz que o facto de começar a haver discussão significa que “já temos um bom resultado”.

Contrariando a ideia generalizada de que podem existir diversos grupos ou factores que potenciam os maus tratos, Inês Poeiras, licenciada em Direito e mestre em Psicologia Comunitária e Proteção de Menores, esclarece que “aquilo que a investigação nos tem dito é que, quando falamos de negligência, não encontramos grupos de risco”. E é esse o motivo pelo qual “pensar estas acções de prevenção é um grande desafio”.

A campanha está a ser desenvolvida com o apoio do Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS) do ISCTE-IUL e com a colaboração da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR), da Câmara Municipal de Lisboa e da Fundação EDP.

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A Associação Caminhos da Infância nasceu em 2012. Quais são as motivações para a sua criação e os principais marcos da vossa (ainda curta) história?

Inês Poeiras (IP)

A ideia da associação nasceu numa Comunidade de Vida Cristã (CVX), uma comunidade de leigos de espiritualidade comum à Companhia de Jesus. Trata-se de um grupo de pessoas das mais diversas áreas de formação que estava a precisar de mudar alguma coisa na sua vida e encontrou nesta associação uma parte do seu campo de missão.

O primeiro grande marco foi termos ganho a gestão de umas das creches do Programa b.a.bá, num concurso da Câmara Municipal de Lisboa, e termos criado o Centro Infantil Maria de Monserrate. O segundo grande marco foi o lançamento, em Abril de 2014, da campanha “A Infância não se repete, fica para sempre”. Todas as parcerias que estabelecemos traduzem-se também em grandes marcos da nossa história, seja com o ISCTE-IUL, com o Comité Português da UNICEF, este ano com a CNPCJR e com a Fundação EDP.

Este é o segundo ano consecutivo em que a associação Caminhos da Infância lança uma campanha de sensibilização para a prevenção do mau trato na infância. Como avaliam – e em que termos – o impacto da campanha anterior? E que resultados esperam atingir com a actual campanha?

Francisca Carneiro (FC)

O impacto da primeira campanha foi muito bom. Tendo em conta que não éramos ainda muito conhecidos, fomos muito citados na imprensa e nas redes sociais. Foi a pedra de toque para apostarmos nas campanhas de sensibilização, e para concretizarmos a nossa escola de pais.

Este ano pretendemos continuar a sensibilizar. A nossa sociedade precisa de se questionar sobre as práticas educativas prejudiciais para a criança, que ainda fazem parte das suas tradições e atitudes. Se começar a haver esta discussão, já temos um bom resultado. Estamos a preparar uma avaliação sobre esta temática tanto em termos quantitativos como qualitativos. Qualquer impacto, quando se trata de tradições e cultura, tem que ser um impacto geracional. Não há transformações imediatas.

Inês Poeiras e Francisca Carneiro, Associação Caminhos da Infância
Inês Poeiras e Francisca Carneiro, Associação Caminhos da Infância

Combater a negligência parental é o fundamento da escola de pais, criada pela Associação Caminhos da Infância. Como funciona a escola no geral? Que acções são desenvolvidas e a que público-alvo é a mesma dirigida – ou seja, que tipo de pais vos procuram e/ou quais são os mais “elegíveis” para a frequentar?

FC

Como já referiu, a associação é efectivamente muito recente. Constituímo-nos em 2012 mas só iniciámos a nossa actividade em 2014, quase dois anos depois. E o que fomos fazendo, antes de avançar para qualquer modelo de formação parental, foi estudar as necessidades, avaliar o mercado e os grupos alvo.

Fizemos um levantamento das necessidades dos pais no Centro Infantil Maria de Monserrate, do qual resultou uma lista de temas que resolvemos abordar em pequenos artigos para divulgação na internet. Não se trata de artigos de opinião, mas de sugestões que retirámos da investigação e que, por isso, nos parecem diferenciadores.

Que respostas e apoios consideram prioritários para que diminua a negligência parental?

FC

A verdade é que ainda não sabemos. Ainda! Mas continuaremos a trabalhar com o CIS-IUL para que essa resposta seja concretizada. A negligência, por ser a ausência de uma acção, é difícil de trabalhar.

Existe a ideia generalizada de que são os agregados com condições socioeconómicas mais vulneráveis (que incluem fenómenos como o desemprego, baixos níveis de literacia, alcoolismo, drogas, etc.) que maiores riscos colocam à idoneidade física e psicológica dos menores. Pode esta ser considerada uma “verdade” absoluta, uma meia-verdade? Tendo em conta a vossa experiência, como respondem a este “estereótipo”?

IP

Com a sua pergunta descreveu grupos de risco. E aquilo que a investigação nos tem dito é que, quando falamos de negligência, não encontramos grupos de risco e, por isso, pensar estas acções de prevenção é um grande desafio.

Podemos tentar chegar lá com exemplos. Estão enraizadas na educação dos pais e educadores expressões como “não se fazem queixinhas”, “resolvam isso entre vocês”, desmotivando qualquer criança a manifestar o seu desagrado sobre uma situação. Do nosso ponto de vista, o educador tem que explicar o que é uma queixinha e, mais do que isso, tem que perceber se a queixa é importante para aquela criança em concreto, naquele momento. As vítimas de bullying nunca contam nada a ninguém. Porque será? Foi incentivada a cultura do diálogo na sua infância ou, pelo contrário, a criança terá sempre ouvido o “não me chateies com essas coisas”? Estas (más) práticas educativas são transversais à população e ninguém se dá conta que podem estar a prejudicar o bem-estar da criança.

Podemos ainda pensar na mãe que manda a empregada doméstica para a substituir na escola, no Dia da Mãe. Estes exemplos parecem ser de agregados com condições socioeconómicas vulneráveis? Temos também os tribunais de família e menores cheios de processos de divórcio, em que o pai e a mãe não só não se entendem em relação à guarda, como usam os filhos como joguete. Também estes casos não são exclusivos de determinados grupos sociais.

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Em que moldes é feita a vossa parceria com o Centro de Investigação e Intervenção Social do ISCTE-IUL?

IP

A parceria começou com o mestrado em Psicologia Comunitária e Protecção de Menores que fiz nesta faculdade. Durante o período de pesquisa para a tese li imensa informação que fui partilhando com a Francisca. Por exemplo, alguns estudos sobre estratégias que resultam melhor e pior na prevenção do mau trato. Houve um, em particular, sobre a ausência de mau trato na Suécia nos últimos anos que me chamou mais a atenção. Abordámos a professora Manuela Calheiros (minha orientadora) e explicámos as nossas ideias (estávamos em Janeiro de 2014). Em Março do mesmo ano a primeira campanha estava pronta. O que conseguimos com a parceria com o CIS-IUL é que o trabalho desenvolvido pela Caminhos da Infância não seja só um trabalho bem intencionado. É preciso pensar nos resultados, prestar contas, avaliar as nossas acções. A parceria permite tudo isto. É um aval muito importante.

Qual o retrato que traçam, em termos gerais, da situação dos abusos na infância em Portugal? Existem estatísticas actualizadas? Se sim, o que nos dizem os números?

IP

Os dados de que dispomos são os publicados nos relatórios de avaliação de actividade e estatística, que anualmente a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco publica. Às vezes é complicado fazer estas leituras, porque as tipologias apresentadas não correspondem às tipologias referidas pela literatura e que lemos recorrentemente em estudos nacionais e internacionais. Mas os números estão lá para serem interpretados.

Uma coisa é certa: o mau trato físico, que tem uma relevância aparatosa na opinião pública, é a problemática que aparece com menor incidência no relatório de 2013 (dentro das cinco mais reportadas).

Mas há ainda  a questão de sabermos se todos os casos de abuso são reportados às comissões, ou se não haverá uma camada da população que, por não estar sob a “alçada” dos serviços sociais, também não será sinalizada… É uma hipótese para um próximo trabalho.

Que perspectivas tem a vossa associação a médio e longo prazo?

FC

Gostávamos de ver a escola de pais crescer com mais artigos publicados e, quem sabe, até com uma pequena rubrica num programa de televisão. Mas o nosso grande objectivo é mesmo alargar a campanha a nível nacional. A longo prazo queremos contribuir para melhorar os números.

Jornalista