Integridade, solidariedade, serenidade, capacidade para agir, coragem para decidir (ponderadamente) perante a incerteza acrescida e maior exigência de cada um de nós enquanto cidadãos (e da chamada sociedade civil) são algumas das ferramentas dos empresários, gestores e dirigentes das mais diversas organizações nos próximos meses, neste final do ano 2020 que decerto jamais esqueceremos devido à pandemia e seus efeitos na economia, sociedade e, claro, na saúde pública em Portugal e no mundo
POR LUÍS FERREIRA LOPES 

 

Como sublinhei no meu texto que integra o livro de 19 autores “Esperança e Reinvenção – ideias para o Portugal do futuro”, boa parte dos cidadãos com consciência social não precisaria da pandemia covid-19 para descobrir o que é mais relevante na vida. Quem sobrevive a esta terrível doença tem uma oportunidade, que não deve ser desperdiçada, para reflectir sobre os primeiros ensinamentos, as tendências de mudança que vislumbramos e o que deveríamos fazer, enquanto sociedade e como seres vulneráveis que somos, para fortalecer o nosso sistema de saúde pública contra doenças e pestes que julgávamos pertencer a um passado longínquo. 

Ninguém poderia esperar uma “peste negra” de dimensão mundial, com efeitos tão nefastos, na era da globalização da economia, dos avanços médicos e tecnológicos e das promessas de paz e de bem-estar em várias regiões do mundo. Mas temos aprendido a lidar com esta nova realidade desde o início do ano na Europa (e desde março em Portugal) e, apesar de algumas lições que é possível retirar nos sectores público e privado, a verdade é que cientistas e políticos, médicos e empresários, enfermeiros e gestores, académicos e bombeiros, todos os profissionais de todas as áreas da economia e do conhecimento, estão de acordo em afirmar que ainda navegamos à vista perante densos bancos de nevoeiro e, com a proximidade do Outono e Inverno, perante o risco de uma segunda vaga.

Nas primeiras e intensas semanas (que pareciam meses), recebemos notícias impensáveis do número de mortos e de infectados nos cuidados intensivos; das encomendas e reservas canceladas no turismo e na indústria; das duras decisões de gestão e das novas vivências dos trabalhadores em regime de lay off ; ou dos empresários sem protecção social (sócios-gerentes de micro e pequenas empresas, em particular), quando vários governos, em todos os continentes, tomaram medidas de confinamento para nos protegermos e para que evitássemos a propagação da covid-19, pelo contágio involuntário.

Em 2020, o que temos como certo é a incerteza. Um dia de cada vez, vamos aprendendo a lidar com a pandemia e com o medo, mas é necessário retomar / manter actividades económicas e lectivas essenciais para que a vida em sociedade continue, esperando pela descoberta de uma vacina. Sabemos apenas que falta uma resposta imediata da Ciência perante tantas interrogações e que é vital cada cidadão não desleixar nos cuidados de proteção e higienização. Sabemos apenas que lutamos contra um inimigo invisível que ataca de forma transversal, pois pode matar pessoas de todas as classes socioeconómicas e não olha a género ou religião, nem a culturas ou continentes, nem mesmo a idades, apesar da maior probabilidade de sobrevivência dos mais novos. 

Este inimigo poderá ser derrotado, não por armamento militar, mas sim pela investigação da ciência, pelo trabalho árduo dos profissionais de saúde e de todas as áreas da economia, assim como pelas atitudes cívicas de cada um de nós – nas empresas e em todas as organizações – porque são pequenos grandes gestos que nos podem salvar a vida. Esta nova percepção da força de uma comunidade, através do cuidado com o Outro (nomeadamente com os mais velhos) e das múltiplas e inesquecíveis acções de cooperação e solidariedade por parte da chamada sociedade civil, em Portugal e noutros países onde milhões e milhões de pessoas uniram as mãos sem se tocar, dá-nos hoje esperança na redescoberta dos valores essenciais da Vida – para os católicos e pessoas de outros credos – e dos valores da cidadania da Polis e da verdade (e não a projeção ou a sombra da realidade) que Platão descreveu na célebre “Alegoria da Caverna” de A República, no século IV antes de Cristo.

Na transição para a terceira década do século XXI, não nos devemos deixar acorrentar na escuridão pela projecção de imagens que julgamos reais, temendo a cegueira, se decidirmos enfrentar a luz do mundo real. Este é o tempo para ter a mente aberta para sair da caverna; isto é, para investigar, saber mais, inovar e promover a “ideia do bem”, sendo mais exigentes connosco próprios e com os que nos rodeiam, em busca da verdade. Empiricamente, sabemos que só encontramos soluções e inovamos perante uma necessidade. E a questão, quase sempre, é a de saber se essa inovação é incremental, gradual, reformista ou se é disruptiva e causadora de profundas transformações. Será o momento para redesenhar modelos que temos como certos e pensar e agir de forma diferente? 

Visão sistémica e tempo de perguntar

A visão sistémica da Polis permite-nos olhar em perspectiva, se quisermos mesmo pegar no lápis e redesenhar ou reinventar modelos de negócio e de trabalho nas empresas e no Estado, na escola ou no planeamento das cidades. Será que já percebemos, por exemplo, que assegurar reservas de alimentos e água e o bom funcionamento de energia, comunicações, tecnologia é uma questão de segurança e soberania nacionais? Que lições podemos aprender com os profissionais de saúde, em atitude de combate na linha da frente? Que exemplos de inspiração militar foram replicados por trabalhadores, gestores, empresários de todos os sectores da economia, nas fábricas ou nos campos, nos escritórios ou em teletrabalho? 

Em síntese, apontaria algumas variáveis-chave para a sobrevivência em 2020 que serão decerto úteis para 2021: 

  • alinhamento da liderança e da equipa; 
  • proactividade com espírito de missão e de serviço; 
  • saber planear e contar sempre com planos de contingência;
  • testar e nunca facilitar ou descurar riscos (exemplo: saúde, proteção civil, conflitos sociais ou laborais, em momentos de elevado stress); 
  • agir rapidamente e comunicar com eficácia e transparência em todas as situações de gestão de crise;
  • regressar à linha da frente (mesmo após ter sido ferido em combate) e não deixar ninguém para trás, como se aprende no serviço militar; 
  • ter noção do impacto das decisões (certas ou erradas) e do adiamento ou não-decisão na hora H; 
  • fomentar solidariedade e cooperação a nível social e político-institucional. 

Tudo isto parece óbvio, em teoria, mas não é fácil de aplicar na prática. Este é o tempo também para perguntar e imaginar o que poderá mudar. Manteremos a tendência do teletrabalho, nas empresas e na administração pública? Se sim, que implicações haverá no sector imobiliário de uso para escritórios ou na (menor) necessidade de viagens de negócio e nos voos comerciais? Haverá, realmente, maior investimento e melhor gestão dos recursos na saúde e na educação? Aproveitaremos para acelerar a transformação digital e transição energética, reduzindo a poluição, cuidando mais da Natureza e gerindo melhor os recursos dos Oceanos – ou ficaremos pelos discursos politicamente correctos da sustentabilidade? 

Teremos capacidade para questionar, de forma construtiva e cívica, sem demagogia e populismos fáceis, como construir um país bem melhor e um mundo mais justo, com maior regulação e verdadeira interdependência económica e geopolítica? Quando passar a pandemia, continuará o espírito de solidariedade e a valorização do que é realmente essencial, quando se trata de sobreviver e de dar sem esperar receber? Voltaremos a práticas egoístas e hedonistas ou teremos maior disponibilidade para ouvir, saber escutar, olhar e ajudar o Outro e valorizar as diferenças, procurando entendimentos e construir pontes de diálogo entre pessoas, culturas e civilizações, como os portugueses têm sabido fazer ao longo de séculos?

Permitam-me uma nota pessoal / familiar. A minha filha Rita celebrou a entrada na maioridade em confinamento, em Maio, e a preparar-se para a entrada na universidade, e o festejo foi circunscrito ao núcleo familiar, apesar de muitas mensagens de vídeo das amigas e dos amigos e demais familiares – tal como sucedera ao irmão, um mês antes. O meu filho Miguel decerto imaginaria uma festa dos 15 anos bem diferente desta celebrada em 2020, um ano inesquecível para todas as gerações e a população do mundo inteiro. Os jovens estudantes demonstraram uma notável maturidade perante as medidas drásticas de contenção da pandemia e uma total adaptação às alterações das aulas pela internet ou depois às aulas presenciais nas disciplinas para exame de acesso à universidade.

Quem organizou ou festejou aniversários nestes tempos estranhos do “novo normal”, em estado de emergência ou em estado de calamidade ou já no Verão (sem descurar as regras de segurança), e, na maior parte dos casos, em ambiente familiar de corte significativo de rendimento, compreenderá melhor esta partilha mais pessoal que serve apenas para agradecer a todos os jovens e crianças por terem gerido bem esta alteração brusca das suas vidas. Contiveram os abraços e beijos aos avós para proteger os mais velhos, nos momentos mais perigosos do contágio. Seguramente, anseiam que saibamos todos construir um mundo melhor, durante ou após a pandemia. Esse é o desafio de todos nós, portugueses e cidadãos do mundo.

Tempo de solidariedade e de decisões difíceis

Num momento duro, mas igualmente desafiante para Portugal, não precisaríamos de uma nova crise para descobrirmos o que é realmente importante na nossa vida enquanto nobre povo de uma Nação valente, una e europeia, nascida em 1143, que já enfrentou tanta crise, peste, invasão, perda de soberania, bancarrota, inveja, pobreza, risco da aventura, descoberta de glória vã e sabe – pelo som das ondas do oceano ou dos gemidos de uma guitarra – o que é choro, bravura, luto, alegria, resiliência e coragem. Este é, pois, um tempo de Esperança e de Reinvenção.

Este é um tempo de Esperança, ou seja, de pensamento estratégico e visão sistémica. É tempo de contribuir civicamente para soluções concretas, sem qualquer agenda ideológica ou política, com a experiência e o optimismo realista de empresários, gestores e académicos de pensamento independente como os que aceitaram o desafio que lancei enquanto cidadão e autor ou co-autor de outros livros. 

É tempo de Reinvenção de modelos de negócio, da organização do trabalho, da liderança e gestão das pessoas, das sociedades ou das nações ou de cada um de nós. É tempo de agir cívica e colectivamente. Seria decerto mais fácil para todos os autores desta obra continuarem focados e submersos em trabalho nas suas organizações, após semanas que parecem meses, em vez de investir tempo e energia a partilhar ideias num livro que procura ser uma reflexão sobre como enfrentar o cenário muito nublado que temos pela frente e um testemunho de esperança em dias melhores.  

É o tempo de reflectirmos sobre o contributo acrescido e o papel decisivo das tecnologias e telecomunicações; da agricultura e da indústria transformadora; do comércio, serviços e turismo; da energia, água, transportes e ambiente; do financiamento e sustentabilidade das empresas, da economia real e dos Estados; das lideranças e formas de gestão dos recursos; da competitividade e da internacionalização das empresas; da reputação das marcas e de organizações ou países. Temos ainda muito caminho pela frente nos próximos anos para reerguer a economia, tentar reduzir desigualdades sociais e contribuir para melhores políticas públicas e privadas, num País pelo qual vale a pena lutar.

É tempo de ser ainda mais solidário. Por isso, a proposta de doar a totalidade da receita de direitos de autor a uma instituição social que apoie as pessoas que perderam rendimentos e precisam de comida para sobreviver acolheu a adesão de todos os co-autores. Foi selecionado o Banco Alimentar contra a Fome, entidade que se entendeu ser a que mais rápida e eficazmente chegará a mais portugueses, pela sua rede de âmbito nacional e provas dadas de solidariedade e seriedade – sem prejuízo de todos nós conhecermos várias instituições sociais e projectos solidários que fazem um trabalho extraordinário em várias cidades ou regiões. De Junho até final de Agosto, já conseguimos angariar cerca de 7000 euros de receita de direitos de autor, mas havemos de conseguir mais porque as necessidades serão decerto maiores nos próximos tempos.  

Salvar vidas, sem matar a economia

O surto do vírus covid-19 em Portugal, na Europa e no mundo veio salientar a importância da interdependência económica e social, o primado da interdisciplinaridade do conhecimento e o papel crucial de diversas profissões no ecossistema social. O médico desempenha uma função crítica, mas sem enfermeiros, auxiliares, técnicos de diagnóstico, profissionais dos serviços de higiene e limpeza ou do apoio administrativo, obviamente é mais difícil alcançar bons resultados em equipa. De igual modo, logo nos primeiros dias do estado de emergência, em Portugal e noutros Estados europeus, percebeu-se a importância dos agricultores na produção de bens alimentares, em situação de emergência e encerramento de fronteiras, mercados e lojas; do retalho / distribuição no abastecimento alimentar e de bens essenciais; das telecomunicações, tecnologias de informação e dos media para o contacto em confinamento com o exterior e para o teletrabalho; da energia, da água e dos serviços de limpeza municipal para garantir condições básicas de funcionamento da sociedade; da indústria e dos serviços que continuaram a laborar, quando o objectivo primordial das entidades públicas em Portugal e em vários países europeus era o de salvar as pessoas, mas sem matar a economia. 

No final de Agosto, é possível ir antevendo o elevado custo económico, financeiro e social decorrente das medidas públicas de prevenção do contágio e da quase paragem do comércio internacional e seus efeitos no transporte aéreo, no turismo, no desemprego em todos os sectores ou nos primeiros esboços orçamentais do rombo nas contas públicas dos Estados. Perante o número de mortes e de pessoas infectadas, nós, os que sobrevivemos, bem podemos valorizar mais o dom da Vida, sabendo que haverá um custo financeiro e social sem comparação, se excluirmos as guerras mundiais no século XX. 

Este é o tempo para reflexão sobre a economia comportamental – ou o comportamento dos agentes económicos na gestão de crises –, como já alguns tinham percebido na crise financeira de 2008/09 (que alastrou até 2014, em Portugal). O que devemos reter destes tempos desafiantes? É inesquecível, por exemplo, a acção dos cidadãos anónimos que criaram correntes solidárias ou costuraram máscaras e batas e ofereceram aos profissionais de saúde (pois não havia em quantidade face à expansão do surto) ou animaram os vizinhos com cânticos, desenhos ou palmas à janela ou à varanda. É inesquecível a rapidez de tantos empresários e empreendedores na reinvenção dos seus negócios, no ímpeto inicial de ajudar e oferecer equipamentos aos hospitais e fazer contas à vida a seguir, enquanto se (des)esperava por moratórias, linhas de crédito ou alguns apoios financeiros nacionais ou europeus. É inesquecível a nobreza de valores e de atitudes do ser humano perante situações extremas, quando vivíamos há muito numa cultura do supérfluo e da aparência, esquecendo, por vezes, o primado da Ética e do respeito pelo Outro.

Este é também o tempo de compreendermos, de uma vez por todas, a utilidade e relevância de uma visão sistémica com coragem para inovar, da interligação de ciências e saberes, da interdependência das pessoas e dos países, da solidariedade e da bondade, do espírito humanista que une (e não divide) pessoas de todas as idades, condições sociais e financeiras e todos os credos. Quem entender que esta é apenas uma crise de saúde pública e económica – certamente, geradora de mais desemprego, de novos pobres e de uma fatura financeira (insustentável?) para Portugal e vários Estados da Europa e do mundo – terá, provavelmente, uma visão redutora deste estranho ano de 2020, apesar da incontestável dimensão da recessão. Não sabemos se ela será em V, U, W ou L, mas sabemos que a recessão brutal está aí e, para enfrentá-la, precisamos de nervos de aço, pensamento estratégico e visão sistémica. 

Coordenador e co-autor do livro “Esperança e Reinvenção – ideias para o Portugal do futuro” e assessor do Presidente da República para Empresas e Inovação