A opção pela hegemonia da economia sobre as pessoas e o ambiente será a opção pelo extermínio da galinha dos ovos de ouro. O Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) foi desenhado para manter um paradigma ultrapassado: o crescimento económico sem limites à custa da dignidade humana. Mais uma vez se penhoram direitos a troco de um punhado de dólares. A Iniciativa de Cidadãos Europeus (ICE) visa instar a revogação do mandato de negociação relativo a este Acordo
POR PEDRO KRUPENSKI*

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*Director de Desenvolvimento da Oikos
– Cooperação e Desenvolvimento
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Foi registada na Comissão Europeia (CE), no passado dia 15 de Julho, uma nova Iniciativa de Cidadãos Europeus (ICE), um dispositivo criado pelo Tratado de Lisboa que, promovendo a democracia participativa, permite aos cidadãos europeus recolher um milhão de assinaturas para vincular a CE, no âmbito das suas competências, a tomar decisões no sentido pugnado pela ICE. Um grupo de sete cidadãos europeus formou uma Comissão de Cidadãos, angariou o apoio (para já) de mais de 150 organizações de 18 Estados da União Europeia, redigiu o pedido à CE e registou-o [agora a Comissão Europeia tem cerca de dois meses para aprovar a ICE e, se o fizer, será aberta por um ano a recolha de assinaturas por toda a europa comunitária].

Esta iniciativa visa instar a CE a recomendar ao Conselho Europeu a revogação do mandato de negociação relativo ao Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP).

A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento é o nome de um acordo de comércio que está a ser negociado entre a União Europeia (UE) e os Estados Unidos da América (EUA). As negociações têm como objetivo a supressão dos obstáculos comerciais (direitos, regulamentações desnecessárias, restrições ao investimento, etc.) numa vasta gama de sectores económicos, por forma a facilitar a compra e venda de bens e serviços entre a UE e os EUA. A UE e os EUA querem igualmente tornar mais fácil para as suas empresas o investimento económico recíproco.

Nada contra. Antes pelo contrário. Numa Europa e num mundo globalizado em que persistem os efeitos da crise económica, é imperativo encontrar soluções para remover todos os obstáculos ao fluxo de capitais, de bens e de serviços, com vista a uma distribuição mais justa e equitativa dos recursos.

Contudo, não é isso que está – aliás com algum secretismo – sobre as mesas das negociações. O que está sim em causa, entre outras, são:

  • Sérias ameaças à Democracia e ao Estado de Direito, na medida em que este Acordo possibilita às empresas multinacionais processar os Estados em acções de arbitragem “à porta fechada”, para exigir o pagamento de ressarcimentos punitivos, caso os Estados aprovem legislação que possa levar a uma redução dos seus lucros.
  • Sérias ameaças à liberdade individual dos cidadãos, uma vez que o Acordo abre o caminho a um controlo e vigilância ainda maior dos utilizadores da Internet e prevê direitos de autor excessivos que restringem o acesso à cultura, à educação e à ciência.
  • Sérias ameaças às garantias, para todos, das condições de acesso de bens e serviços de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, já que este Acordo abre portas a privatizações de bens essenciais, pois facilita às multinacionais a obtenção de lucros através da prestação de serviços sociais básicos como, por exemplo, fornecimento de água, saúde e educação.
  • Sérias ameaças para a saúde e para o ambiente, ao estabelecer que aquilo que é permitido nos EUA e no Canadá passe também a ser legal na UE, abrindo assim caminho para práticas nocivas como, por exemplo, a fractura hidráulica (ou ‘fracking’, que consiste no processo de perfuração e injecção em elevada pressão no solo de fluidos, que incluem cerca de 600 produtos químicos, alguns dos quais tóxicos como é o caso de metanol, mercúrio e urânio, com vista a fracturar as rochas de modo a libertar o gás natural que contenham), a produção e importação de alimentos geneticamente modificados e a carne com hormonas e desinfectantes.
  • Sérias ameaças à já frágil agricultura de pequena escala e às normas de maneio e tratamento dos animais, reforçando o poder da agroindústria.

Todas estas ameaças são dificilmente reversíveis, já que, uma vez firmados, os acordos não podem ser alterados por decisores políticos democraticamente eleitos nos seus respectivos países, pois cada alteração tem que ser aceite por todas as partes subscritoras do Acordo. Nenhum Estado membro da UE poderá rescindir o Acordo unilateralmente, na medida em que é celebrado pela UE como um todo. Se ousar fazê-lo, será processado em tribunal arbitral pelas empresas multinacionais que, devido a tal rescisão, vejam reduzido o seu espaço de obtenção de lucro.

São identificadas enormes vantagens económicas para ambas as partes e a CE garante que não está em questão reduzir os níveis de protecção dos direitos dos cidadãos europeus, nem do ambiente, face às normas equivalentes (mas menos exigentes) dos EUA. Não está a mentir. Não está, porém, a ir ao fundo da questão.

Com efeito, não será necessária revisão legislativa a nível europeu para que tal redução de protecção dos direitos se verifique na prática. Basta que uma empresa multinacional europeia registe o seu produto nos EUA de acordo com as normas deste país, e que o venda livremente e de forma competitiva (sem barreiras alfandegárias) no mercado europeu. Passará a haver mais oferta e consequentemente os preços baixarão. Eis o isco.

Contudo, entre os bens disponíveis estarão produtos nocivos, segundo os critérios europeus, à saúde pública e ao ambiente. Pior. Se algum decisor político, democraticamente eleito, de um Estado membro da UE quiser legislar no sentido de proteger a saúde dos seus concidadãos, condicionando o acesso e consumo destes produtos que não são concebidos de acordo com os critérios europeus, será processado pela empresa num tribunal arbitral. Um golpe fatal na já débil democracia europeia.

Este Acordo poderá até ser vantajoso do ponto de vista económico. Mas nem tudo é economia. Se há lição que se pode assacar com clareza da crise financeira e económica global que nos assola e da consequente falência dos modelos em que assentam as suas causas, é precisamente isso: que nem tudo é economia.

É por nem tudo ser (nem dever ser) economia que, na actual construção da agenda de desenvolvimento pós-2015, se produz consenso em torno do paradigma do desenvolvimento sustentável segundo o qual, para haver desenvolvimento, as suas três dimensões (a económica, a social e ambiental) têm de ser abordadas, em perfeito equilíbrio, de forma horizontal e integrada, ao mesmo nível e com a mesma importância.

A opção pela hegemonia da economia sobre as pessoas (seus direitos e dignidade) e o ambiente (como bem comum) será a opção pelo extermínio da galinha dos ovos de ouro. Para manter esta galinha viva e fecunda, a economia tem pois que estar ao serviço das pessoas e não estas ao seu serviço. A urgente abordagem e este vital modelo de sociedade assente no desenvolvimento tridimensional e não no crescimento unidimensional não se compadece com um acordo desenhado para manter ligado à máquina um paradigma ultrapassado: o crescimento económico sem limites à custa da dignidade humana.

Somos cidadãos europeus. Aqueles que nos representam a este nível (o das negociações deste Acordo) não estão a lutar pela salvaguarda dos interesses e direitos de todos nós. Tiremos, pois, proveito destes instrumentos ao serviço da democracia participativa (como é o ICE) e assinemos sob o nosso ponto de vista. A partir de Setembro, a iniciativa estará disponível para esse efeito.

Presidente da Direcção da Plataforma Portuguesa das ONGD e Director de Desenvolvimento da Oikos - Cooperação e Desenvolvimento