É desconcertante e paradoxal que vivendo num mundo com muito mais possibilidades do que as gerações e sociedades anteriores, vivamos mais infelizes e mais débeis
POR MARTA LINCE DE FARIA

Há uns meses, encontrei um livro de um filósofo coreano, Byung-Chul Han, que me deu luzes em relação a uma característica da nossa sociedade: a livre autoexploração dos indivíduos por eles mesmos.

A quantidade assustadora de burnouts e depressões leves a que assistimos ou da qual até nós mesmos já fomos vítimas, faz-nos pensar no que possa ser a causa destes fenómenos. O trabalho parece ser sempre mais exigente do ponto de vista físico, intelectual e psíquico e muitas pessoas saudáveis acabam por se ver afetadas por episódios depressivos.

É comum pensar que são os empregadores e as lideranças que exigem que as pessoas trabalhem acima de níveis considerados razoáveis. Embora possa ser verdade que um ou outro gestor exija demasiado dos seus trabalhadores, corresponde muito mais à minha experiência o facto de os líderes estarem preocupadas com estes fenómenos, mas não conseguirem mudar os seus comportamentos e os das equipas que coordenam. E qual seria a causa?

A interpretação de Byung-Chul Han é que estamos num momento em que os próprios indivíduos se constituíram em exploradores de si próprios: “se posso mais, devo mais!” As motivações podem ser muitas: a incerteza de um mundo em constante mudança, o contacto permanente com todos os países que nos faz querer pertencer ao grupo dos melhores ou que nos faz sentir responsáveis por todos os desastres do planeta, o prazer de nos sentirmos reconhecidos… É difícil encontrar uma só motivação, são muitas e subtis, de tal modo que o indivíduo continua a explorar-se e a sentir-se livre.

Explica Byung-Chul Han “o excesso de trabalho e de produção conduz, a um nível mais elevado, à autoexploração. Esta é mais eficaz do que a exploração por terceiros, uma vez que vem associada a um sentimento de liberdade. O ser explorado é simultaneamente o que explora – agente e vítima já não se distinguem entre si.

Esta autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercivas que lhe são intrínsecas, se converte em violência. As doenças psíquicas da sociedade da produção nada mais são do que manifestações patológicas desta liberdade paradoxal.”[1]

Se a hipótese de Byung-Chul Han é verdadeira, só será possível devolver à sociedade e a cada indivíduo um estilo de vida que promova uma liberdade autêntica, através de um esforço concertado por mudar hábitos, formas específicas de educação e características culturais. As organizações poderão e deverão alertar para este facto, aumentando o nível de awareness, e criando políticas promotoras do equilíbrio dos indivíduos e da sua saúde mental, mas apenas isto não será suficiente.

É desconcertante e paradoxal que vivendo num mundo com muito mais possibilidades do que as gerações e sociedades anteriores, vivamos mais infelizes e mais débeis. Convido a todos a tomar uma atitude resoluta e audaz: não podemos dar-nos ao luxo de assumir que as pessoas são mais fracas do que noutras épocas. Parece-me importante iniciar uma plataforma de reflexão e debate que seja capaz de chegar a perceber o modo mais humano e equilibrado de gerir a informação e as possibilidades a que temos acesso.

Byung-Chul Han diz que a nossa sociedade tem “excesso de positividade” – que pode ser excesso de possibilidades, excesso de estímulos, excesso de responsabilidade – e que o perigo do excesso de positividade em relação ao excesso de negatividade é não termos anticorpos ou mecanismos de defesa que reajam a um elemento agressor. É mais difícil combater um inimigo sem rosto, mas eu diria que é urgente, sob pena de perecermos no âmbito de tanta positividade.

[1] Han, Byung-Chul (2015), A Sociedade do Cansaço, p. 23. Lisboa, Relógio d’Água

(artigo publicado originalmente no Observador – 30/01/2022 – e reproduzido com permissão da autora)

Professora de Comportamento Humano e Macroeconomia da AESE Business School
Cátedra de Ética na Empresa e na Sociedade AESE/EDP