De acordo com o Índice de Pobreza Humana das Nações Unidas, o mundo tem, presentemente, 1,2 mil milhões de pobres. Mas, de acordo com um novo relatório publicado pela Oxford University – composto por novas métricas -, a estes juntam-se mais 400 milhões. Pensar que no século XXI existem 1,6 mil milhões de pobres, obriga-nos a reflectir sobre a (in)eficácia das políticas globais que prometem reduzir este flagelo
POR HELENA OLIVEIRA

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Há mais de uma década que o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas tem vindo a medir a pobreza mundial com base no seu Índice de Pobreza Humana (IPH), o qual define um pobre como alguém que ganha menos de 1,25 dólares por dia, utilizando a métrica desenvolvida pelo Banco Mundial, também conhecida como “pobreza extrema”.

Pelas contas deste índice, existem no mundo cerca de 1,2 mil milhões de pessoas pobres, um número verdadeiramente chocante, principalmente se o contextualizarmos em termos do total da população mundial – estimada em pouco mais de 7 mil milhões de indivíduos. Todavia, as más notícias não se ficam por aqui. De acordo com o mais recente relatório divulgado pela Oxford University, às Nações Unidas falta-lhes incluir, neste número vergonhoso, mais 400 milhões de pessoas, o que significa que o mundo do século XXI conta com 1, 6 mil milhões de pobres.

Mas por que motivo é que existe esta discrepância significativa? De acordo com a Universidade de Oxford, a pobreza não pode apenas ser contabilizada tendo em conta a ausência de dinheiro. Escassez de alimentos, de educação, de cuidados de saúde e de abrigo são, igualmente, indicadores substanciais de estados de pobreza. Ou seja, o IPH das Nações Unidas falha, basicamente em duas grandes áreas: a primeira diz respeito ao facto de considerar os países como uma “massa total”, incapaz de diferenciar os graus de pobreza no seu interior e de identificar as mais graves “bolsas” de pobreza; em segundo, porque coloca todo o seu escrutínio com base em apenas um indicador – o rendimento – não considerando outros, como já referidos, como o acesso à educação ou à saúde.

Foi por estes motivos que a Universidade de Oxford apresentou, em 2010, um novo Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), o qual cobre 104 países em desenvolvimento – que representam 78% da população mundial – utilizando, como complemento do indicador “rendimento”, um subconjunto de outros dados, aferidos através de inquéritos aos agregados dos países em causa.

Assim e a 16 de Junho último, a Oxford Poverty & Human Development Initiative (OPHI, na sigla em inglês) lançou a 4ª edição do seu Índice, o qual analisa a natureza e a intensidade da pobreza a um nível individual, através de uma avaliação directa das várias privações sobrepostas que os pobres vivem em simultâneo. Considerado, neste momento, como o mais rigoroso e preciso índice da pobreza mundial, o relatório oferece uma fotografia com contornos bem definidos de como e onde é vivida a pobreza, no interior dos países (e comparando-os), nas regiões e no mundo, oferecendo aos decisores políticos um conjunto de recursos preciosos que, caso exista vontade, poderá ajudar a definir as áreas de intervenção mais urgentes e a abordar os muitos aspectos distintos da pobreza.

A OPHI considera, assim, a pobreza, a partir de um novo ângulo de análise – com base na abordagem das diferentes “privações” – o qual inclui três grandes áreas: Saúde, Educação e Condições de Vida. O ainda recente Índice de Pobreza Multidimensional Global recolhe, de seguida, dados muito completos sobre 10 necessidades básicas incluídas nas três grandes áreas acima descritas: nutrição e mortalidade infantil; anos de escolaridade e de frequência escolar; combustível para cozinhar, sistemas de saneamento básico, acesso a água potável, acesso à electricidade, condições do abrigo/casa (se tem telhado, por exemplo, ou que tipo de pavimento a reveste, entre outros). Se uma pessoa sofrer de privação de um terço ou mais destes indicadores, entra para as estatísticas do Índice de Pobreza Multidimensional, e é considerada pobre.

Extremamente interactivo e com um conjunto de recursos variados, este Índice está disponível para todos os que o quiserem analisar e, consequentemente, utilizar os dados preciosos que oferece para estabelecer políticas que mitiguem estes diferentes estados de pobreza. O VER resume apenas os principais resultados do relatório de 2014 agora divulgado, sintetizando-os também no final do artigo (v. Caixa).

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As diferentes dimensões da pobreza
Sabine Alkine é directora da Iniciativa de Desenvolvimento Humano e Pobreza da Universidade de Oxford, tendo sido igualmente uma das principais responsáveis pela criação desta nova metodologia de análise. Em entrevista ao Voice of America, Alkine define a pobreza multidimensional como “ uma pessoa cuja vida tem várias coisas erradas em simultâneo”, acrescentando que “[estas pessoas] podem não ter muitos activos e sofrerem de má nutrição; ou que podem não ter mais do que cinco anos de escolaridade – o que significa que são multidimensionalmente pobres”.O Índice de Pobreza Multidimensional 2014 (IPM) cobriu 108 países, nos quais vivem 78% da população mundial; destes, 1,6 mil milhões são considerados como multidimensionalmente pobres, sendo que a sua esmagadora maioria vive em áreas rurais.

Em termos gerais, o IPM 2014 pode ser dividido em quatro grandes áreas. Em termos dinâmicos, o relatório analisa de que forma a pobreza multidimensional sofreu alterações em 34 países, nos quais vivem 2,5 mil milhões de pessoas, documentando as principais tendências da pobreza e da “destituição” [um novo conceito difícil de traduzir] e, no interior destes países em particular, os diferentes tipos de privação sofridos pelas suas populações. O país que mais progressos está a fazer no interior deste grupo em particular é o Nepal, mas é possível saber muito mais sobre estas dinâmicas; o Índice inclui igualmente comparações úteis entre a pobreza vivida nas cidades e a que grassa nos meios rurais. Esta análise conclui que dos 1,6 mil milhões de pessoas identificadas como pobres multidimensionais, 85% vivem em zonas rurais – um valor significativamente mais elevado do que as habituais estimativas de pobreza com base nos rendimentos (70-75%).

O índice analisa igualmente as mudanças ocorridas ao longo do tempo nas regiões urbanas e rurais, de acordo com os 10 indicadores já citados; no que respeita à desigualdade, a qual, no mundo “desenvolvido” está a aumentar a olhos vistos, a secção do relatório que a aborda detalhadamente, chama a atenção para o facto de a mesma ter de ser criteriosamente avaliada também entre os pobres, ou seja, na medida em que existem também vários sub-níveis de pobreza. Ainda sobre esta dimensão, o Índice sublinha que a redução da pobreza não é necessariamente uniforme entre todas as pessoas de um mesmo país ou entre subgrupos populacionais, sendo que aquilo que pode ser considerado como uma melhoria “geral” poderá deixar os mais pobres entre os pobres ainda mais para trás.

Nesta edição de 2014, foi utilizada uma nova métrica para analisar a desigualdade entre as pessoas pobres em 90 países, sendo que os níveis mais elevados de pobreza são encontrados em 15 países da África subsaariana, no Paquistão, Índia e Afeganistão, e também no Iémen e na Somália; por fim, o Índice sublinha que, no relatório de 2014, foram utilizados indicadores de IPM mais extremos para lançar alguma luz sobre as centenas de milhões de pessoas que, todos os dias, enfrentam dificuldades dificilmente imagináveis para cada um de nós: os destituídos (ou, em tradução alternativa, os mais miseráveis, indigentes ou necessitados) ou os mais pobres entre os pobres. Em 49 países até agora criteriosamente analisados, metade das pessoas que sofrem de pobreza multidimensional são consideradas “destituídas” , sendo que o seu número ascende a 638 milhões.

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Ser mais pobre que os pobres
Definir a pobreza extrema consiste num dos tópicos mais quentes à medida que se intensificam as discussões sobre o que irá acontecer aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio pós-2015. Como sabemos, a data de “cumprimento” destes objectivos instituídos pelas Nações Unidas – que incluem questões como a pobreza, a fome, a má nutrição, a educação, entre outros – termina no final do ano. E, de acordo com Sabine Alkine, este novo Índice da Pobreza Multidimensional poderá ajudar, e muito, na criação de uma política “substituta” dos ODM, na medida em que oferece uma fotografia com contornos bem definidos sobre a(s) verdadeira(s) pobreza(s).

Mas afinal como se define alguém que pertence a esta “classe dos destituídos” ou dos mais pobres entre os pobres?

De acordo com o Índice, se os pobres analisados não tiverem acesso a pelo menos um terço dos 10 indicadores identificados, são já considerados como “pertencentes” a esta categoria. Por exemplo, um “destituído” pode não ter acesso a qualquer tipo de activo, seja um rádio ou um telemóvel, pelo menos um membro do seu agregado pode sofrer de má nutrição ou o acesso a água potável pode traduzir-se numa viagem de pelo menos 45 minutos. Como já mencionado anteriormente, em 49 dos países analisados, metade das pessoas que são consideradas multidimensionalmente pobres são, em simultâneo, “destituídas”. De acordo com o relatório, este facto possui implicações óbvias para o objectivo de eliminação da pobreza extrema, sendo que, de acordo com os autores deste relatório, seria um sucesso muito relativo [dos ODM] se, em conjunto com a redução da pobreza de rendimentos a nível global, este tipo de privações não fosse igualmente erradicado.

Aqueles identificados como “destituídos” – em 49 países, 683 milhões de pessoas – pelo IPM 2014 sofrem de um conjunto de necessidades inimagináveis. Mais de 41% já perderam dois ou mais filhos; cerca de 67% têm pelo menos um membro no seu agregado que sofre de má nutrição severa; mais de 46% não têm qualquer membro do seu agregado que tenha completado pelo menos um ano de escolaridade e, em 36% do total, todas as crianças em idade escolar não frequentam nenhum estabelecimento de ensino. Adicionalmente, mais de 71% destes “destituídos” não têm acesso à electricidade e uma proporção similar não possui o mais básico dos activos – nem uma bicicleta, um rádio, um telefone ou um telemóvel, um frigorífico, um televisor e, obviamente, nenhum carro ou camioneta. Cerca de 90% fazem as suas necessidades fisiológicas ao ar livre, com todos os sentimentos de vergonha, medo, insegurança e humilhação que tal representa. Adicionalmente, quase 40% não têm acesso a água potável; mais de 83% dos pobres identificados como destituídos nestes 49 países vivem em casas não pavimentadas e quase 98% cozinha os seus alimentos com combustíveis sólidos.

O relatório indica ainda que dos pobres identificados como destituídos nestes 49 países, quase três quartos (72,8%) sofrem igualmente de pobreza multidimensional severa ou, por outras palavras, são privados em pelos menos metade dos indicadores de IPM e, em simultâneo, de um terço dos indicadores que medem a “destituição”.

Em termos geográficos, a Índia é, de longe, o país que mais “pobres destituídos” tem, com 28,8% da sua população a caber nesta categoria, ou seja, 340 milhões de pessoas. O relatório inclui igualmente outros países do sul da Ásia, para os quais tem dados pormenorizados – Afeganistão, Bangladeche, Nepal e Paquistão, o que significa que pelo menos 420 milhões de cidadãos do sul deste continente são “destituídos”. Na África subsaariana e apesar de o Índice conter apenas dados para 24 dos seus países, o número de destituídos chega aos 200 milhões.

Todavia, nem tudo são más notícias. De acordo com os dados recolhidos para o relatório, quase metade dos países analisados está a reduzir progressivamente esta “destituição”, a um ritmo mais acelerado comparativamente ao da pobreza multidimensional.

Para os autores do estudo, o sucesso relativo em reduzir o estado de destituição em alguns dos países mais pobres do mundo aumenta a esperança de novos progressos, bem como a ideia de que os esforços concertados pós-2015 possam mesmo resultar no lema que acompanhou os ODM: o de que “ninguém pode ser deixado para trás”.

Principais conclusões do IPM 2014
  • O IPM 2014 cobre 108 países, os quais albergam 78% da população mundial. Destes, 30% – 1,6 mil milhões de pessoas – vivem uma pobreza multidimensional;
  • Dos 1,6 mil milhões de pessoas, a maioria vive no sul da Ásia (52%), seguida pela África subsaariana (29%). A maioria dos pobres identificados no índice de Pobreza Multidimensional  (71%) vive em países de rendimentos médios;
  • Dos 1,6 mil milhões considerados como pobres multidimensionais, 85% vivem em zonas rurais;
  • Quase todos os países que reduziram, de alguma forma, a sua pobreza multidimensional, atenuaram, igualmente, a desigualdade entre os pobres;
  • Dos 34 países em que foram analisadas mudanças ao longo de determinado período de tempo, 30 reduziram significativamente a sua pobreza multidimensional.

Um subconjunto de pobres incluído no Índice de Pobreza Multidimensional são “destituídos”

  • Em 2014, o IPM inaugurou uma nova métrica de destituição. Uma pessoa é considerada “destituída” se sofrer de pelos menos um terço das privações do conjunto de indicadores analisados, mas de acordo com critérios mais extremos do que os utilizados para identificar os que “cabem” no IPM, como o facto de se ter perdido dois filhos ou não ter nenhum que frequente pelo menos um ano de escolaridade;
  • Nos 49 países analisados com mais detalhe, metade de todos os pobres identificados como pertencentes ao IPM são também “destituídos”;
  • Dois terços destes têm pelo menos uma pessoa no seu agregado que sofre de má nutrição severa;
  • A Índia alberga 343,5 milhões de pessoas “destituídas” ou 28,5% da sua população.
  • Em todo o sul da Ásia, mais de 420 milhões de pessoas incluem-se na categoria dos destituídos;
  • A Nigéria é recordista em número de “destituídos”: 69,8% da sua população.

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