São duras as críticas que a Oxfam dirige aos governantes e aos milionários que enriquecem à custa da exploração dos trabalhadores mais fragilizados. No seu mais recente relatório internacional sobre a desigualdade, a organização sublinha que a pobreza extrema só acaba quando acabar a riqueza extrema. No documento, também são dadas diversas recomendações para que, de uma vez por todas, se promova o trabalho digno, se combata a escravatura e se construa um mundo onde todos os cidadãos têm os mesmos deveres e as mesmas oportunidades
POR
MÁRIA POMBO

O mundo continua desigual, desequilibrado e díspar. O tempo passa, as iniciativas surgem mas continuamos a viver num planeta que desprotege os mais pobres e vulneráveis, privilegiando os mais poderosos. Quem o diz é a Oxfam (uma organização internacional que luta pelo fim da pobreza e pela promoção dos direitos de todos os cidadãos), no seu mais recente relatório sobre a desigualdade, apresentado em Davos, em Janeiro último.

Denominado “Reward work, not wealth” (que, em tradução livre, significa “Premiar o trabalho, não a riqueza”), o documento contou com a participação de 70 mil pessoas de dez países e assume-se como um manifesto contra o aumento da pobreza, o qual é resultado de um inexplicável maior número de milionários, a nível mundial. Os seus autores revelam que é difícil encontrar, hoje em dia, um líder – empresarial ou de governo – que não revele estar preocupado com as desigualdades, mas que são muito poucos os que têm a coragem de passar à acção, fazendo algo para melhorar esta situação.

Para além dos números (que são incompreensíveis), este documento apresenta diversas recomendações, dirigidas essencialmente às empresas, às organizações internacionais e aos governos, para que estes possam tornar o mundo mais justo, equilibrado e ético, dando a todos as mesmas oportunidades e cuidando dos mais desfavorecidos, de modo a evitar que fiquem em situações ainda mais vulneráveis.

As percentagens não deixam margem para dúvidas: mais de três quartos dos inquiridos consideram que existe uma grande diferença entre os ricos e os pobres, nos seus países, sendo que a Holanda é o país que tem a menor percentagem (58%) de cidadãos com esta opinião e a Nigéria é a nação onde mais pessoas (92%) a partilham. Complementarmente, cerca de dois terços dos inquiridos afirmam que o gap entre os ricos e os pobres deveria deixar de existir urgentemente, e 60% atribuem aos governos a responsabilidade da redução desta discrepância. Grave também é o facto de 75% dos inquiridos afirmarem que preferiam ter níveis mais baixos de desigualdade no seu país.

Como se estes números não fossem suficientemente alarmantes, a Oxfam adianta que aqueles que se encontram no grupo de 1% dos mais ricos do mundo continuam a ganhar mais do que os restantes habitantes do planeta, e que a quase totalidade (82%) de toda a riqueza global do último ano foi auferida por estes 1% de poderosos. A titulo de exemplo, só na Nigéria os homens mais ricos têm capacidade financeira para retirar dois milhões de pessoas da pobreza extrema, na Indonésia os quatro homens mais influentes ganham mais do que os 100 milhões de cidadãos mais pobres, e nos Estados Unidos as três pessoas mais ricas recebem mais do que a metade mais pobre da população daquele país.

[quote_center]É necessária uma nova visão da globalização, na qual os Estados são chamados a intervir, promovendo a igual distribuição da riqueza por todos os cidadãos[/quote_center]

Uns com tanto e outros com tão pouco

Em termos gerais, a Oxfam calcula que aproximadamente dois terços da riqueza dos milionários é conseguida através de heranças, monopólios e compadrio, e que até aqueles que conseguiram obter a sua fortuna em mercados competitivos têm tendência para lutar pela diminuição dos salários dos seus trabalhadores, dando pouca importância às suas condições laborais.

E no mesmo planeta onde poucos ganham fortunas, muitos estão condenados a viver na pobreza. As raparigas são as que mais sofrem com esta diferença, considerando que são ainda muitas as que abandonam a escola precocemente, não tendo acesso a condições básicas de saúde nem sequer de higiene.

De acordo com o documento – e não sendo isto uma novidade – o trabalho é a forma mais importante de ganhar dinheiro e sair da pobreza e a via mais eficaz para impulsionar a igualdade. O problema é que, para muitos, os rendimentos provêem de produção de alimentos em pequena escala e, para tantos outros, de salários tão baixos que mal chegam para sobreviver. Neste sentido, e recorrendo à Organização Internacional do Trabalho (OIT), os autores do documento alertam para aquilo que é considerado, actualmente, a “escravatura moderna”, explicando que ter trabalho não significa obrigatoriamente escapar à pobreza.

É o facto de os mais ricos terem mais poder e de os que estão na base terem menos regalias que causa esta diferença tão acentuada. Nos últimos tempos, os trabalhadores têm visto diminuídos os seus direitos, e os sindicatos estão enfraquecidos e têm menos poder. Complementarmente, as empresas estão a passar por uma enorme pressão para devolver aos seus accionistas um maior retorno do investimento que estes fizeram – o qual é, muitas vezes, conseguido à custa da exploração dos colaboradores e da diminuição das suas regalias. A automação dá, igualmente, mais poder aos donos das empresas, aumentando a pressão dos trabalhadores, que vêem ameaçados os seus locais de trabalho caso não correspondam às expectativas.

E como é que se inverte esta tendência de aumento da pobreza e exploração dos trabalhadores? De acordo com a Oxfam, os mercados e a integração económica podem ser um importante motor para o crescimento e para a prosperidade. Contudo, precisam de regulação e de uma gestão cuidadosa dos interesses de todos, de modo a que a riqueza seja distribuída de forma justa e equilibrada. Um bom exemplo de que a regulação é fundamental é a crise económica mundial, que foi sentida por todos e cujos efeitos ainda se sentem actualmente: os mercados globais funcionavam livremente, fazendo aumentar as desigualdades, o risco e a instabilidade, e foi necessário recorrer à intervenção do Fundo Monetário Internacional para que este desequilíbrio não continuasse a crescer e a afectar um número ainda maior de cidadãos, a nível mundial.

E o documento é claro: “é necessária uma nova visão da globalização”, na qual os Estados são chamados a intervir e a criar regras e barreiras, diminuindo a insegurança e promovendo a igual distribuição da riqueza por todos os cidadãos. Os governos e as instituições internacionais precisam de aceitar o impacto negativo do modelo económico neoliberal junto da população desfavorecida, devendo desenvolver economias mais humanas, para as quais alcançar a igualdade é o principal objectivo.


É urgente promover a dignidade humana

Para além de revelar que a pobreza continua a existir, o documento da Oxfam deixa também algumas recomendações aos governos e às organizações para que estes possam promover a igualdade entre os mais ricos e os mais pobres, evitando a existência de situações extremas, quer para o lado dos poderosos, quer – principalmente – para o lado dos mais vulneráveis.

A primeira medida que os governos devem adoptar é impedir que o rendimento dos 10% mais ricos seja superior ao dos 40% mais pobres – o que irá ajudar a alcançar a meta 10 dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a qual diz respeito precisamente à redução das desigualdades. E se “a pobreza extrema só acaba quando acabar a riqueza extrema”, os governos devem criar taxas para reduzir drasticamente os rendimentos dos milionários (aumentando assim os rendimentos dos mais necessitados), limitando também a sua influência nas decisões políticas. Importa reforçar que esta “revolução pela igualdade” deve ser feita em conjunto pelos governos de todas as nações, e que cada país deve reunir, anualmente, dados sobre o rendimento dos seus habitantes, focando-se nos grupos que se encontram nas extremidades e que são os mais preocupantes.

Paralelamente, devem implementar políticas para lidar com as variadas formas de discriminação, promover normas sociais positivas (nomeadamente como forma de promover a diversidade e a paridade de género) e criar condições para que os cidadãos e as variadas organizações se sintam livres para defender os direitos de todos, dando-se uma especial atenção aos grupos marginalizados.

[quote_center]As multinacionais podem privilegiar o bem-estar dos trabalhadores com menores salários através da diminuição da distribuição da riqueza junto dos seus accionistas[/quote_center]

Para além da promoção da igualdade, de uma perspectiva mais lata, importa desenhar uma economia justa. Incentivar as organizações a criarem modelos de negócio que se baseiem em retornos justos, limitando os rendimentos auferidos pelos accionistas (os quais não devem ser 20 vezes superiores ao salário médio dos trabalhadores), é outra das medidas sugeridas pela Oxfam. Forçar as empresas a pagar ordenados dignos aos colaboradores, eliminando a escravatura e diminuindo os níveis de pobreza, é outra norma que deve ser implementada. Neste sentido, os ordenados mínimos nacionais devem ser estabelecidos com base nos custos de vida de cada país, assegurando-se assim que o trabalho precário é eliminado e garantindo que são respeitados os direitos dos trabalhadores. Os governos devem garantir que são igualmente respeitados os direitos dos trabalhadores domésticos e informais, e também os dos migrantes.

A Oxfam também considera que os dinheiros públicos devem ser utilizados para garantir o acesso generalizado a variados serviços públicos, como segurança social. Complementarmente, os governos devem criar boas condições de educação e devem garantir cuidados de saúde adequados para todos (mesmo que, para isso, seja necessário recorrer ao sector privado, através de bolsas e fundos que podem ser utilizados por quem não pode pagar tratamentos mais dispendiosos). Os impostos são outra forma de reduzir as desigualdades: o pagamento de taxas por parte dos mais poderosos – o qual deve ser utilizado para apoiar os mais carenciados – é uma ferramenta que permite que os mais frágeis possam ter uma vida melhor, sendo esta outra via para alcançar os ODS.

Para além dos governos, a Oxfam considera que as organizações podem ter um papel importante na construção de uma economia mais humana. As empresas multinacionais podem privilegiar o bem-estar dos trabalhadores com menores salários através da diminuição da distribuição da riqueza junto dos seus accionistas, a qual poderá ser, em parte, repartida pelos colaboradores. As empresas podem, igualmente, partilhar o produto das suas vendas com os trabalhadores mais mal pagos das suas cadeias de distribuição (os quais, muitas vezes, laboram em condições desumanas).

Dar voz aos trabalhadores, criando grupos que os representem na direcção das organizações, é outra forma de lhes aumentar os direitos e diminuir os níveis de desigualdade entre estes e os accionistas, tendo em conta que todos podem saber quais são, na primeira pessoa, as verdadeiras necessidades e expectativas dos diversos colaboradores, tornando as empresas mais humanas e menos preocupadas unicamente com os lucros. A promoção da igualdade de género é outra forma clara de acabar com as desigualdades, dando a homens e a mulheres as mesmas oportunidades.

No fundo, existe a necessidade de acabar com a tendência crescente de não dar condições dignas aos trabalhadores e aos cidadãos, e a Oxfam não poupa nas críticas que faz aos governos e às organizações por permitirem que esta situação ainda seja real em pleno século XXI. A mesma organização afirma que “o trabalho infantil e a escravatura não podem ser moralmente aceites e deviam ser eliminados”, tal como “os níveis de pobreza e de trabalho precário e perigoso” e “o tratamento diferenciado entre homens e mulheres no local de trabalho”. Exigir que todas as empresas sejam responsáveis pelo bom funcionamento das suas cadeias de distribuição é uma outra medida que todas as organizações devem adoptar.

Por fim, e em jeito de conclusão, os autores do documento sublinham que “nenhuma organização ou governo deve poder aumentar os seus lucros através do pagamento, aos colaboradores, de salários tão baixos que não lhes permitem viver condignamente”.

Jornalista

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