Lembro-me de um campo de trabalho voluntário que ajudei a organizar há vários anos, em que várias empresas doaram tijolos, cimento e muito outro material de construção, assim como transportes para tudo isto, sem que tal fosse conhecido por mais alguém senão os próprios decisores das empresas e por quem nos entregou os materiais.
POR ANTÓNIO FONTES

A Carlsberg lançou recentemente uma campanha com o mote «Fazer melhor cerveja torna o mundo melhor? Provavelmente». Ao ver o outdoor imaginei logo o António Guterres a ligar ao Putin e dizendo-lhe «tenho aqui umas cervejolas geladinhas; não queres vir cá a casa ver o jogo e beber umas?», e ele, o Putin, sem programa para aquele fim de tarde, lá alinhava. Viam o jogo, bebiam umas cervejas, o clube do Putin até ganhava, e no fim, estando todos contentes, aparecia o Zelenzky, e o Guterres atirava «olha, também vieste? Ainda bem, há cerveja fresca para ti. Já agora, tenho aqui um acordo de paz que acho que vão ambos adorar!»

Tenho dúvidas de que a Carlsberg queira mudar assim tanto o mundo. Aliás, no seu site, a empresa deixa bem claras as suas aspirações. Mas chega de publicidade não encomendada. O que achei curioso foi ver cartazes de uma empresa lucrativa de bebidas a levantar de forma tão directa a hipótese de tornar o mundo melhor. Inevitavelmente, alarguei o âmbito: a actividade de uma empresa – qualquer empresa – pode tornar o mundo melhor? Como?

Bem, para começar, uma empresa torna o mundo melhor porque paga salários, o que não é coisa pouca. Sempre achei muito bonita a ideia de que uma empresa não só paga o ordenado a 50 pessoas, como também contribui para a subsistência de 50 famílias. Esta visão alargada do benefício do salário é salutar e necessária, nomeadamente no momento de tomar decisões difíceis.

Se a empresa for lucrativa, para além de pagar salários, paga também impostos (será que a Uber, que soma prejuízos atrás de prejuízos, nunca vai pagar impostos?). Pagar impostos é contribuir para o bem comum. O administrador de um banco africano com quem trabalhei dizia que deveríamos estar orgulhosos por fazer parte da instituição privada que mais contribuía com impostos para aquele país. Não estou com isto a defender a carga de impostos que as empresas pagam actualmente; estou apenas a salientar que as empresas financeiramente saudáveis fazem necessariamente uma contribuição positiva para a sociedade.

Há também o contributo voluntário que tantas empresas dão. As empresas grandes chegam mesmo a constituir fundações com impacto significativo em áreas tão distintas como cultura, educação, preservação do património ou apoio social, mas há muitas formas de contribuição: dispensar tempo e talento dos seus trabalhadores, doar bens e serviços ou mesmo dinheiro (a generosidade de tantas empresas com o início da guerra na Ucrânia foi impressionante e tocante).

A mim também me marca especialmente o contributo silencioso; o que nem é publicitado. Lembro-me de um campo de trabalho voluntário que ajudei a organizar há vários anos, em que várias empresas doaram tijolos, cimento e muito outro material de construção, assim como transportes para tudo isto, sem que tal fosse conhecido por mais alguém senão os próprios decisores das empresas e por quem nos entregou os materiais. É gratuidade pura. E o impacto das pequenas doações é enorme.

Mas quanto mais penso, leio e discuto sobre este tema, mais me convenço de que o maior contributo que as empresas podem trazer ao mundo é fazer bem aquilo para o qual foram criadas. Ou seja, a sua melhor contribuição consiste em cumprir a sua «vocação» (embora, em linguagem empresarial, talvez seja mais ajustado dizer: concretizar a sua visão e cumprir a sua missão, respeitando os seus valores). Se assim for, o melhor contributo que a Carlsberg tem a dar ao mundo será mesmo fazer melhor cerveja. Este “melhor” é que é o ponto nevrálgico; é ele que nos deve – a nós, trabalhadores e gestores de empresas – fazer questionar: como é que a minha empresa pode fazer melhor aquilo que faz, gerando (cada vez mais) impacto positivo para a sociedade?

A resposta pode desdobrar-se em múltiplas dimensões: o cuidado pelos próprios trabalhadores das empresas e respetivas famílias; a sustentabilidade social e ambiental das cadeias de produção, distribuição e comercialização de bens e serviços; um investimento na inovação que conduza a produtos e soluções de cada vez maior valor acrescentado para os clientes; o posicionamento num mercado concorrencial de forma honesta e franca, evitando competições destrutivas; o respeito pelos fornecedores, nomeadamente pagando a tempo e horas; o tratamento correto e respeitoso dos clientes, com transparência e cuidado e – não menos importante – o assegurar a rentabilidade da empresa, que garante o justo pagamento aos donos, que por sua vez garantem que a empresa continua a funcionar, a pagar salários e impostos, a investir na inovação, etc.

A provocação será, então, esta: em vez de se focar na maximização do lucro, como é que cada empresa pode, de forma rentável e sustentável, maximizar o seu impacto na sociedade?

António Fontes

António Fontes é Director de Inovação no Activo Bank e membro da ACEGE Next