Procuramos estrutura e esquadria. Por vezes estão mais presente do que supomos, de um tal modo que quando construímos os nossos templos não desdenhámos coisa alguma; como era no princípio, agora e sempre.
POR PEDRO COTRIM

Roma, de Cuarón, foi realizado em 2018 e vitoriado em 2019. Foi filmado num preto e branco inesquecível, tal como A Lista de Schindler vinte e cinco anos antes. Quem viu sabe que o filme é extraordinário; quem não viu fica com a sugestão.

Numa das cenas mais emblemáticas, vemos uma multidão de jovens aprendizes de artes marciais num grande campo de jogos de terra batida. Ao longe e ao alto passam os boeing da Pan Am, na altura novinhos em folha e em rota de aterragem para o aeroporto da Cidade do México. O mestre que os ensina faz uma pausa nas instruções de combate. Ouve-se solenemente:

«Un acto. Este acto requiere una absoluta concentración física y mental. Solamente los lamas y los grandes maestros de las artes marciales, y algunos grandes atletas, han podido realizá-la.»

Após estas palavras expelidas numa calma tremenda, pede a um dos presentes que lhe vende os olhos. De seguida levanta devagar os braços com indicadores e dedos médios esticados e junta-os acima da cabeça. Levanta depois o pé esquerdo e encosta a sola à perna direita. Os impetuosos bruces lees ficam abesbílicos e começam a rir, pensando que o mestre goza com eles. Ainda por cima a sua indumentária, entre a fatiota de super-herói e a de lutador de wrestling, parece dar uma achega de farsa a tudo.

O mestre ouve as gargalhadas. Impassível e sem se desequilibrar, pergunta:

«¿Qué? ¿Decepcionados? ¿Y que esperaban? ¿Que levitara o levantará un jet? Lo que están viendo es una proeza. ¿No me creen, verdad? ¿Por qué no lo intentan? Pero con los ojos cerrados.»

Todos tentam, mas não se aguentam. A única conseguir manter a posição é Cleo, uma espantosa heroína. E claro que os espectadores que desconhecem a façanha a irão tentar, quase invariavelmente sem sucesso. Admira-se e quase se inveja o mestre. Equilíbrio, uma das qualidades mais admiradas. Nas artes, nos ofícios e nos nossos próprios organismos, e que procuramos quando não temos.

Procuramos estrutura e esquadria. Por vezes estão mais presente do que supomos, de um tal modo que quando construímos os nossos templos não desdenhámos coisa alguma; como era no princípio, agora e sempre.

E neste momento, e antes de começar esta exposição, faça-se uma sugestão ao leitor: em vez de abrir o Google Maps para verificar itinerários, queira antes dar uma espreitadela às igrejas mais notáveis que conhece. Irá reparar que a maioria está orientada na direcção nascente. Não é uma coincidência.

Poderá advir de passagens bíblicas, incluindo a localização do Jardim das Delícias na parte leste do Éden no livro de Génesis, 2:8. Existe igualmente a associação de Jesus, «a luz que ilumina o mundo», ao Sol nascente. A origem deste costume, contudo, não pode ser consagrada por uma passagem ou por uma fonte de autoridade. As viagens iniciavam-se de manhã, as jornadas também e este hábito de orientação dos templos pode muito bem ter uma origem pagã.

Na generalidade, as igrejas medievais e os seus solos funerários mostram uma clara orientação leste/oeste. As origens permanecem um mistério, mas parecem alicerçadas numa tradição de reza na direcção leste praticada pelos primeiros cristãos. Uma das menções mais antigas a esta prática chegou até nós por Tertuliano, um autor cristão, em cerca de 200 d. C.: Cum ad orationem stamus, convertimus ad orientem. Traduz-se aproximadamente como «Quando nos erguemos para rezar, voltamo-nos para leste».

Conforme sugeriu Tertuliano, se os cristãos rezam para leste devido à tradição, a orientação das igrejas estaria em conformidade. Não parece ser o caso nas igrejas mais antigas que se conhecem: muitas foram construídas nos alicerces das antigas basílicas romanas. No começo da Idade Média, a orientação para leste surgiu como costume e persistiu até à Reforma Protestante, tendo-se mantido posteriormente. As naves das igrejas da época estavam orientadas, de forma aproximada, de oeste para leste, culminando num altar no ponto cardeal.

Os cemitérios das igrejas tinham igualmente a mesma orientação, mas com as entradas voltadas para poente, e os corpos eram depositados com os pés voltados para nascente. Estes alinhamentos não eram perfeitos ou universais; muitas vezes a topografia local, com colinas ou caminhos, forçava outras disposições, mas esta prática, mesmo assim, parece ter sido comum.

Assumindo que a orientação das igrejas para o leste foi difundida a partir do século VIII, podemos perguntar-nos: «Como puderam os arquitectos e mestres-de-obras medievais determinar o oriente na construção de igrejas?» Sem uma bússola, o único meio disponível de orientação era o Sol. No nosso país, que temos como meridional, mas que não será tanto como se supõe no senso comum, o sítio no horizonte Sol nascente depende muito da época do ano, com uma variação anual superior a sessenta graus.

Significa isto que se tivermos um horizonte leste desimpedido durante o ano inteiro e que se fizermos marcações nos solstícios ao nascer do sol, a distância entre os pontos de Junho e Dezembro será superior a três palmos com o braço esticado: é muito e bem sabemos que o trajecto solar difere ao longo do ano, sendo, pela conta anterior, que o Sol nasce aproximadamente 30 graus a norte do leste geográfico no solstício de Verão e 30 graus a sul do mesmo ponto cardeal no solstício de Inverno. É uma diferença enorme que aumenta para norte. Nos equinócios da Primavera e do Outono, o Sol nasce exactamente a leste. Se um arquitecto estivesse determinado a elaborar um alinhamento perfeito este/oeste, a posição do Sol nascente num dos equinócios seria a melhor solução. Sucede que o nosso país não está tanto a sul como supomos e já ficou mencionado. Aliás, se fizermos as contas, verificamos que mais de 80% da superfície do planeta está a sul de Lisboa. O mestre de Roma poderia perguntar «¿Sorprendido?».

De qualquer modo, e atendendo à latitude do país, vemos que as igrejas se encaixam nesta variação de Leste mais ou menos trinta graus. Vemos que a Sé da Guarda, a da fotografia, está orientada para Este/Sudeste, que a Sé de Viseu se vira para Sudeste e que a Sé Velha de Coimbra se aponta para Leste. O Mosteiro dos Jerónimos vira-se para Este/Nordeste e a Sé de Lisboa quase para Leste, mas um pouco para cima do exacto ponto cardeal. A de Santo António, um pouco atrás da Sé, também para Leste, mas um pouco abaixo. A Igreja dos Clérigos para Este/Nordeste e a Sé do Porto perfeitamente para Leste.

E porque queremos caminhar sempre com os nossos leitores, este conteúdo terá continuação na próxima semana. Os dois editores do VER, Helena Oliveira e Pedro Cotrim, vão dar início a duas novas secções. Ensaiamos passos novos e tentaremos VER de outra forma a espantosa realidade dos dias.

Referências:

Tertullian, Apologeticus, c. xvi, citado por Francis Bond, An Introduction to English Church Architecture from the Eleventh to the Sixteenth Century (Londres: Oxford University Press, 1913), 959

Pedro Cotrim

Editor