Com o aumento das sequelas sociais do último par de anos, os decisores políticos, os líderes de opinião e os executivos questionam agora o enfoque exclusivo no crescimento e na competitividade, começando a reconsiderar o impacto dos incentivos económicos no bem-estar humano e nos resultados ambientais. Por outro lado, a convergência de formas físicas e virtuais da globalização económica já não é um dado adquirido. E será a forma mediante a qual os diferentes centros económicos irão escolher entre integração física e virtual, fragmentação ou isolamento que irá moldar o destino da globalização económica nos anos vindouros
POR HELENA OLIVEIRA

Participamos demasiadas vezes na globalização da indiferença. Que, em vez disso, nos esforcemos por viver a solidariedade global”, Papa Francisco

Apesar da sua longa história e das inúmeras definições que lhe são atribuídas, a globalização significa, em termos gerais, um processo contínuo que integra a convergência económica a nível mundial assente na interdependência de movimentos de capitais, bens, serviços e pessoas. Em paralelo, é também um processo através do qual a distância geográfica, cultural, económica e institucional entre países é, supostamente, abreviada e, tal como o “fenómeno borboleta”, assenta numa interligação sistémica onde um evento num determinado local pode influenciar os demais. Na literatura académica, a globalização é geralmente equacionada a nível económico, cultural e político, e embrulhada de forma promissora como a via para abrir possibilidades sem precedentes para uma redistribuição da riqueza à escala mundial.

Quando, em 2009, Bento XVI publicaria a sua encíclica Caritas in Veritate – prevista para sair em 2007 mas declaradamente adiada para levar em consideração a crise financeira de 2008 – o Papa Emérito escrevia igualmente que se a globalização elimina certas barreiras, é também responsável pela construção de outras: pode unir as pessoas, mas a proximidade espacial e temporal não cria, por si mesma, as condições para uma verdadeira comunhão e para uma paz autêntica. Para Bento XVI, os meios mais eficazes para corrigir a marginalização dos países mais pobres através da globalização só poderão ser encontrados se todas as pessoas se sentirem pessoalmente indignadas pelas injustiças existentes no mundo e pelas violações constantes dos direitos humanos. E, como afirmava também “a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos”.

Mais de uma década passada sobre esta citação, e com vários momentos da História em que se discutiu o declínio, o retrocesso e até a morte da globalização, encontramo-nos novamente perante uma grande incógnita sobre o seu futuro. O mundo parece estar num estranho e perigoso momento de viragem, com a pandemia ainda em curso, a guerra na Ucrânia e os vários realinhamento geopolíticos a contribuir significativamente, entre outros, para a actual volatilidade e incerteza. Complementarmente, estes desafios em rápida evolução estão igualmente “aninhados” no meio de um conjunto de questões globais latentes, de que é exemplo o aumento cada vez mais dramático das desigualdades e uma necessidade urgente de adaptar as sociedades a uma inevitável transição digital e verde. Por outro lado, diferentes “centros” políticos e socioeconómicos globais estão a ser desafiados a demonstrar a legitimidade, eficácia e eficiência das suas instituições para lidar com estas crises epidemiológicas, ambientais e geopolíticas.

Como resultado, a economia global está a sofrer uma transformação fundamental. Num ambiente global cada vez mais incerto, muitos países estão a virar-se para o seu interior e a estudar novas estratégias para aumentar a segurança, a sustentabilidade e resiliência, a par da sua coerência nacional. Antes da pandemia e das mais recentes perturbações geopolíticas, a globalização estava a cumprir um dos seus desígnios, tendo criado oportunidades significativas e retirado vários milhões de pessoas da pobreza, sem, contudo, deixar de criar desigualdades e perturbações económicas significativas. Ao longo de 2022 estima-se, e de acordo com a OXFAM, que mais de 263 milhões de pessoas serão empurradas para a pobreza extrema, o que resulta num total de 860 milhões de seres humanos a viver abaixo do seu limiar (com cerca de 1,7 euros por dia). Em Davos, e num novo relatório desta mesma organização, intitulado “Profiting from Pain”, sobressai o facto de que por cada novo multimilionário criado durante a pandemia – um a cada 30 horas – quase um milhão de pessoas poderá ser empurrado para a pobreza extrema em 2022 a um ritmo quase idêntico.

Ou seja, a convergência dos eventos já referidos, em conjunto com as suas consequências, já inverteu duas décadas de progresso na luta contra a pobreza, deitando por terra uma das finalidades da globalização.

Em paralelo e com as economias e sociedades globais a passarem grande parte dos últimos dois anos a tentar isolar-se das perturbações epidemiológicas, ambientais e geopolíticas que emanaram do espaço físico, foram igualmente obrigadas a optar pelo trabalho remoto, a reconfigurar as cadeias de abastecimento e a tentar governar os fluxos de informação digital.

Com o aumento das sequelas sociais do último par de anos, os decisores políticos, os líderes de opinião e os executivos questionam agora o enfoque exclusivo no crescimento e na competitividade, começando a reconsiderar o impacto dos incentivos económicos no bem-estar humano e nos resultados ambientais. Por outro lado, a convergência de formas físicas e virtuais da globalização económica já não é um dado adquirido. E será a forma mediante a qual os diferentes centros económicos irão escolher entre integração física e virtual, fragmentação ou isolamento que irão moldar o destino da globalização económica nos anos vindouros.

Como os motores tradicionais da globalização a atingirem um momento crítico, estamos no início de uma nova fase de crescente volatilidade económica e de redefinição estrutural do sistema global. A digitalização cada vez mais acelerada das economias e sociedades, no entanto, significa que a rivalidade entre os centros globais de poder está a expandir-se rapidamente do espaço físico para o virtual. A competição sobre os factores físicos de produção e a geografia que moldou as anteriores ondas de globalização estão assim a ser espelhadas e integradas pela crescente competição no que respeita ao controlo da tecnologia e das redes de informação. O mais recente relatório do Fórum Económico Mundial sobre as “Perspectivas dos Economistas” sugere uma mudança para uma nova fase de alta volatilidade e polarização da economia global, com forte consenso entre os inquiridos no que respeita a uma maior fragmentação entre bens, tecnologia e mercados de trabalho. Com a crescente politização da tecnologia, é igualmente provável que novos alinhamentos estratégicos sejam moldados pela convergência de valores, bem como pela interoperabilidade económica e digital, e não apenas pela geografia.

Depois de dois anos de interrupção por causa da pandemia, a encruzilhada assumida em que se encontra a globalização foi tema de discussão no primeiro encontro presencial dos líderes mundiais em Davos e teve como base a publicação de um estudo pelo Fórum Económico Mundial que se concentra em quatro cenários possíveis para a economia global nos próximos cinco anos. Para os responsáveis do estudo, o mais provável é que o seu futuro seja uma mistura destas quatro probabilidades.

Vejamos cada um deles.

Cenário 1 – Globalização 5.0: integração física e virtual

A primeira trajectória, “Globalização 5.0: Reconexão”, baseia-se no ideal de prosperidade partilhada, prevendo uma maior integração, tanto em termos económicos como tecnológicos. Alianças regionais e globais reforçadas resultarão em cadeias de abastecimento diversificadas, numa elevada mobilidade laboral, numa maior flexibilidade dos empregos e em mais inovação. Haverá também uma maior adopção de energias renováveis e investimentos no crescimento sustentável a longo prazo, partilhados de forma mais equitativa entre economias avançadas e em desenvolvimento. Estas tendências serão sustentadas por uma forte resiliência económica e social local, incluindo maiores investimentos em redes de segurança social através de uma tributação mais elevada.

Cenário 2: Redes analógicas, nacionalismo virtual – Integração física, fragmentação virtual

No cenário “Nacionalismo Virtual”, a integração física entre países é reavivada, com os governos a apostarem nos benefícios do multilateralismo em termos de combustíveis, alimentos e outros bens acessíveis.

No entanto, este sentimento não é replicado a nível digital. As rivalidades políticas exacerbadas e as preocupações com a cibersegurança levam os países a procurar um maior controlo sobre o domínio digital. Isto resultará numa fragmentação da regulamentação tecnológica, governação e interoperabilidade. Em vez de uma Internet global, haverá várias “splinternets”, dificultando os serviços financeiros digitais e o comércio internacional.

A inovação tecnológica, a mobilidade laboral e a transição energética deverão estagnar sob este cenário. As economias em desenvolvimento irão sofrer desproporcionalmente devido à sua falta de capacidades digitais avançadas.

Cenário 3: Domínio digital, plataformas ágeis: integração virtual, fragmentação física

Este cenário é contrário ao anterior: o que acontecerá se a integração digital prevalecer à medida que a cooperação internacional se inverter? O resultado provável será um maior proteccionismo económico com a produção altamente localizada e as cadeias de valor à mercê das rivalidades políticas.

Contudo, e a par destas probabilidades, prevê-se que as grandes economias se alinhem na tributação e governação dos serviços digitais, o que levará a um aumento do trabalho e da cooperação tecnológica, compensando parte do impacto da fragmentação física.

Apesar da crescente procura de trabalhadores altamente qualificados, o seu movimento transfronteiriço poderá enfrentar restrições dependendo da sua localização, criando um mercado de trabalho a duas velocidades. A transição energética iria provavelmente sofrer, uma vez que as medidas proteccionistas limitam o acesso aos recursos naturais e às matérias-primas.

Cenário 4: Mundo autónomo, fragmentação sistémica

A turbulência geopolítica e o impacto da COVID-19 voltaram a atenção dos países para o interior das suas fronteiras. No quarto cenário, esse enfoque torna-se permanente, resultando em medidas proteccionistas que atrasam o comércio, o investimento e as oportunidades de emprego transfronteiriço.

A cooperação e as cadeias de abastecimento tornam-se regionalizadas ou localizadas, enquanto uma degradação do fabrico e repetidos choques de abastecimento ameaçam a segurança alimentar e sanitária.

Na esfera digital, os governos exercem maior controlo, resultando num aumento da censura e vigilância, bem como da desinformação.

O impacto global é a estagnação económica em larga escala. O ambiente sofrerá face ao declínio da cooperação e das normas internacionais, e a probabilidade para um aumento da utilização de combustíveis fósseis é muito real.

Nenhum destes cenários é o ideal

Como concluem os autores do relatório, nenhum dos cenários representa uma configuração ideal para o futuro da economia global.

E, de acordo com a sua visão, estimam como mais provável um futuro em que a cooperação global e o nacionalismo económico possam coexistir através do mundo físico e digital., recomendando a superação de uma narrativa desactualizada da globalização e o enfoque numa nova abordagem centrada nos resultados sociais e ambientais.

Esta breve exploração de cenários potenciais mostra que os motores tradicionais da globalização atingiram um momento crítico. Se nenhum dos cenários se afigura como o ideal, alguns são susceptíveis de conduzir a melhores resultados económicos e sociais, desde que os decisores políticos e os líderes empresariais assumam uma atitude pró-activa para assegurar que a globalização não é um fim em si mesmo, mas um meio para atingir um fim.

Assim e nos próximos anos, o resultado mais provável será uma combinação complexa dos quatro cenários a jogar em diferentes áreas e mercados; alguns mercados e áreas políticas serão locais, outros regionais e outros globais. A elevada probabilidade de tanto a cooperação global como o nacionalismo económico ocorrerem em simultâneo num futuro próximo exige assim que se ultrapasse a narrativa simplista e ideologicamente orientada da globalização versus a “desglobalização” e moldar proactivamente um futuro que optimize os resultados sociais e ambientais.

Editora Executiva