Desde 2007 que Michael Puett, professor em Harvard, foi obrigado a mudar as suas aulas para o maior anfiteatro do campus universitário, que alberga, este ano lectivo, 700 atentos alunos. Não, Puett não é professor de Empreendedorismo, Inovação ou Engenharia informática. Ensina, sim, Ética e Filosofia a partir dos ensinamentos milenares de pensadores como Confúcio e vários dos seus seguidores
POR HELENA OLIVEIRA

Não bastava já a ascensão meteórica do gigante chinês no que respeita à influência política e económica global, como também o Ocidente está a apostar na “importação” da filosofia e da ética chinesas. Se não acredita, saiba que na mais americana das universidades, onde os alunos chegam com planos de carreira bem definidos, na sua maior parte assentes em racionalidades inabaláveis, a cadeira de Teoria Política e Ética Chinesa Clássica é a que reúne maior número de alunos inscritos, só suplantada pelas Introduções à Economia e à Ciência Informática. Sim, estamos a falar de Harvard e de como um professor, Michael Puett, foi obrigado a mudar de anfiteatro – para o maior do famoso campus universitário – para poder albergar todos os alunos que, em particular desde 2007 (o 2º ano em que cadeira foi ministrada), procuram resolutamente a sua aula.

Se para esta popularidade conta a promessa do professor quando apresenta a sua aula – de que esta irá mudar a vida dos estudantes – não sabemos, mas a verdade é que são já muitos os licenciados que corroboram a premissa (e a promessa) de Puett.

Mas o que está a levar tantos estudantes, principalmente numa era em que o narcisismo e o egocentrismo são reis – a propósito, a palavra do ano é “selfie” – a querer aprender e reflectir sobre o que os pensadores chineses pregavam há milhares de anos? De acordo com citações de estudantes publicadas num artigo da revista The Atlantic, Puett utiliza a filosofia chinesa para oferecer aos universitários ideias concretas, contraditórias e revolucionárias as quais os ensinam a viver uma vida melhor. Como afirma Elizabeth Malkin, uma das estudantes entrevistada pela revista norte-americana, “a cadeira alterou absolutamente a perspectiva que tinha de mim própria, dos meus pares e a forma como eu via o mundo”.

O segredo de Puett parece residir na introdução de ingredientes frescos numa receita antiga. O professor pede aos alunos que leiam os textos originais de Confúcio, como o famoso Analectos, também conhecido como Diálogos de Confúcio ou o Mencius, da autoria do filósofo chinês com o mesmo nome (julga-se) ou ainda o Dao de Jing, comummente traduzido como” O Livro do Caminho e da Virtude” (uma das mais conhecidas e importantes obras da literatura chinesa), confrontando-os depois com questões similares às que seguramente devem ter dado cabo da cabeça dos eruditos chineses há vários séculos. Mas não só. De seguida, Puett sugere aos seus alunos que ponham em prática, nas suas próprias vidas, os ensinamentos apreendidos.

Ainda de acordo com a revista The Atlantic, Puett consegue que os conteúdos programáticos utilizados nas suas aulas sejam contextualizados na América contemporânea, por estes jovens adultos que, com 18 ou 19 anos, parecem estar à procura de um significado “maior” para as suas vidas ou, mais concretamente, um “lugar” no mundo no qual possam ser pessoas “mais inteiras” e contribuir para a criação de uma sociedade melhor.

Numa recente entrevista que concedeu ao Korean Times, o professor, que esteve em Seul para dar uma palestra sobre “A Ascensão da China e o Confucionismo”, sumarizou da seguinte forma os objectivos que elege, para os seus estudantes, a partir da cadeira que ministra: “que tentem abrir as suas mentes, que repensem tudo, da filosofia à história mundial, que fiquem preparados para questionar qualquer que seja o tema que lhes é ensinado e, mais importante que tudo, que se tornem parte de uma geração que pode ter um papel crucial no mundo vindouro”.

Contrariar a visão ocidental de que mente e coração são “entidades” separadas
Se sempre nos ensinaram que nós, humanos, enquanto criaturas racionais que somos, tomamos decisões lógicas utilizando o cérebro, a verdade é que os últimos avanços na área das neurociências têm vindo a colocar em causa este pressuposto. E, ao que parece, os filósofos milenares chineses há muito que o sabiam. Aliás, na grafia chinesa “coração” e “mente” são representados por uma única palavra (tal como acontece com a dupla “risco e  oportunidade”).

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E, seguindo esta linha de pensamento, um dos conceitos que a filosofia chinesa está a oferecer aos estudantes de Harvard é a ideia de que o coração e a mente, maioritariamente separados na visão do mundo por parte dos ocidentais, estão profundamente relacionados entre si e que não podem ser encarados isoladamente. Na verdade, é isso mesmo que Puett faz questão de transmitir aos seus alunos: ao estarem indissociavelmente ligados, não podendo um existir sem o outro, sempre que tomamos decisões, desde as mais simples às mais complexas, seremos melhores a decidir quando aceitamos a integração do coração e da mente e deixarmos que os nossos lados racional e emocional se unam num só. De acordo com os escritos do filósofo taoísta Zhuangzi, devemos treinar-nos a nós mesmos para que nos tornemos espontâneos (pese embora a contradição) no dia-a-dia, em vez de nos fecharmos em algo que acreditamos ser uma tomada de decisão com base na racionalidade.

E é neste caso em particular que as pesquisas em neurociência parecem confirmar que os filósofos chineses tinham razão. Os scans cerebrais têm vindo a revelar que é a nossa “consciência inconsciente” das emoções e dos fenómenos que nos rodeiam que são responsáveis pelas decisões que tomamos, as quais acreditamos serem um produto da nossa racionalidade lógica.

Dado que a sabedoria milenar chinesa não é, de todo, fácil de interpretar ou traduzir, poder-se-ia intuir que as aulas ministradas por Puett se dedicam às grandes questões da existência. Mas a ideia é exactamente a oposta. Tanto Confúcio, como Mencius e muitos outros pensadores chineses (que se multiplicam em várias escolas de pensamento) sempre defenderam que são os actos mais simples – e mais mundanos – que ramificações mais profundas provocam, dando origem a oque é denominado como “efeito cascata”. Desta forma, Puett começa por ensinar aos seus alunos que devem estar atentos – e praticar – actos do quotidiano tão simples como sorrir a um vizinho, segurar num porta para outra pessoa passar ou dizer bom dia aos companheiros de elevador. Do ponto de vista da filosofia chinesa, estas pequenas experiências diárias oferecem oportunidades intermináveis para nos compreendermos a nós mesmos. Quando nos apercebemos do que nos faz realmente reagir, sentir prazer ou raiva, felicidade ou angústia, conseguimos desenvolver uma melhor percepção de quem somos, a qual nos ajuda a abordar novas situações. E, em especial para o filósofo Mencius (seguidor de Confúcio no século IV antes de Cristo), cultivar a nossa melhor natureza através destes pequenos actos pode-nos transformar em pessoas extraordinárias, com uma influência enorme, capaz de alterar as nossas vidas e as vidas dos que nos rodeiam.

Mas tudo isto continua a parecer a busca desenfreada do “lado zen” da vida, realmente em voga no Ocidente, a par dos inúmeros livros de auto-ajuda que continuam a vender-se como pãezinhos quentes. O que torna, afinal, as aulas de Puett tão irresistíveis?

Uma visão cultural diferente e um conjunto de ferramentas distinto
De acordo com as palavras do próprio Puett, e nas declarações que deu à The Atlantic, o professor afirma que, face há 20 anos – quando começou a dar aulas – os alunos da actualidade sentem-se “esmagados” por um caminho específico que têm de percorrer no sentido de objectivos de carreira muito concretos, sendo que estes, na maioria das vezes, resultam de imposições externas (seja da pressão dos pais, por exemplo, ou mesmo da sociedade que predetermina que cursos é que “estão a dar”).

E são vários os estudos e relatórios que confirmam uma tendência cada vez maior – não só nos Estados Unidos, como também na Europa – para os estudos em Humanidades ou Ciências Sociais estarem num profundo declínio. A título de exemplo, a carreira em Finanças continua a ser a mais apetecida pela esmagadora maioria de estudantes em Harvard. O que Puett observa é que, cada vez mais, os estudantes orientam todo o seu percurso escolar, e até as suas actividades extracurriculares, de acordo com planos e objectivos de carreira predefinidos e “demasiado” programados.

Desta forma, Puett tenta transmitir aos estudantes que ser calculista e tomar decisões “demasiado” racionais é exactamente o caminho que estes não devem trilhar. Os escritos chineses que os alunos lêem e sobre os quais devem reflectir ensinam exactamente que este tipo de estratégia torna muito mais difícil manterem-se abertos a outras possibilidades que, à partida, não se coadunam com os planos estabelecidos. Os estudantes que optam por este caminho “não estão a prestar a atenção necessária aos sinais diários que realmente os revigoram e inspiram, e dos quais poderá provir uma vida que os preencha e que faça sentido”. Ou, por outras palavras, se existem coisas que realmente “mexem” com os jovens em causa e que não correspondem ao que estes decidiram ser o melhor para eles, a grande probabilidade é que fiquem presos numa armadilha perpétua, a qual se encontra presente num caminho mal orientado, que terá início com uma carreira que não corresponderá, de todo, a um futuro “com significado” e que devidamente os preencha.

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Na palestra que proferiu em Seul, Puett defendeu que a filosofia oriental constitui uma alternativa para desafiar as percepções de “modernidade” que têm apenas como base o pensamento ocidental. Para o professor de Harvard, “muitas destas ideias filosóficas podem ser significativamente produtivas e poderosas para as visões da prosperidade humana”, acrescentando que a “burocracia meritocrática” praticada no sudeste da Ásia constitui a forma mais efectiva de governo, devido ao objectivo que tem em “divorciar o poder político da riqueza”. E acredita também que ao expor aos estudantes os ensinamentos da filosofia e ética chinesas milenares está a contribuir para que esta nova geração “pense em grande”, com base no “cultivar de si mesmos” e no “auto-treino” para se tornarem em pessoas melhores.

É que um dos valores sublinhados pela ética e filosofia chinesas – com eco igualmente na filosofia aristotélica – é a ideia de “sermos aquilo que repetidamente fazemos”.

Puett assegura que o seu objectivo não é, de todo, oferecer grandes conselhos aos estudantes sobre a forma como estes devem seguir a sua vida, mas antes mostrar-lhes o que podem fazer, numa base diária, para transformarem a forma como vivem. E muitas das suas aulas são transformadas em debates, significativamente participativos por parte dos estudantes, sobre como é viver de acordo com as regras, aparentemente simples, dos escritos chineses que têm de ler e interiorizar (e também praticar, como os pequenos actos acima descritos).

A partir do momento em que os estudantes começam a ter uma percepção mais fidedigna de si próprios, descobrindo o que realmente os apaixona, devem, seguidamente, trabalhar para se tornarem “peritos” nessas mesmas actividades através de muita prática e do “auto-cultivo”. Este “cultivar de nós mesmos” está relacionado com outro conceito clássico da sabedoria milenar chinesa: a de que é o esforço que mais conta, mais do que o talento ou as aptidões de cada um.

Trabalho árduo, capacidades ilimitadas
Esta visão tem vindo a ser defendida por vários autores ocidentais e está também em linha com a neurociência: a título de exemplo, o conhecido autor do best-seller Outliers: The Story of Success, Malcolm Gladwell, deu a conhecer ao mundo a famosa regra das 10 mil horas: este princípio afirma que em qualquer campo cognitivo complexo, seja jogar xadrez ou praticar neurocirurgia, são necessárias 10 mil horas de trabalho até que se consiga ser mesmo bom. Isso equivale a 10 anos, se estivermos a falar de quatro horas de prática por dia. A mesma linha foi seguida por Daniel Coyle, no livro  The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How, o qual comprova a ideia – com fundamentos científicos –  defendida por muitos outros autores, de variados áreas de conhecimento, de que a liderança – ou o talento – não é um traço de carácter com o qual nascemos, mas uma competência que pode ser construída, através de uma série de decisões que vamos tomando à medida que a vida nos apresenta desafios específicos que temos de ultrapassar.

E algo muito similar ensina Puett nas suas aulas: não estamos limitados aos nossos talentos inatos e todos possuímos um enorme potencial para expandir as nossas capacidades se as cultivarmos (através da prática). “Não é saudável ficarmos limitados relativamente ao que somos bons – temos de estar atentos ao que realmente amamos e prosseguir a partir daí”, exorta o professor.

As várias escolas de sabedoria chinesa concordam que, se prestarmos a atenção devida aos pequenos sinais do quotidiano, “ficamos prontos para mudarmos literalmente tudo o que queremos ser enquanto seres humanos”.

Este tipo de pensamento não se coaduna, de todo, com a vida frenética que caracteriza a modernidade. E talvez seja por isso que o Ocidente procure, quase com voracidade, uma visão alternativa à imediaticidade, à pressa e ao prazer fácil mas efémero que caracteriza a sociedade actual.

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O artigo da revista The Atlantic termina com a história de um aluno, Adam Mitchell, absolutamente genial em Matemática e Ciências, que decidiu ir para Harvard estudar Economia. Como o próprio recorda, “todos esperam que pensemos no nosso futuro da seguinte forma racional: pesar os prós e os contras e depois tomar uma decisão”, diz. O que nos leva de volta à ideia de que devemos seguir “aquilo em que somos bons” – uma estrada com poucos riscos, mas também com recompensa menos estimulantes. Todavia, e depois de ter sido aluno de Puett, e de ter começado a trabalhar arduamente em outras actividades que realmente gostava, mas que não se coadunavam com o “plano”, Mitchell começou a ter uma maior consciência de si mesmo, dos que o rodeavam e de como as suas acções o afectavam a si e também aos outros. O genial aluno de Matemática resolveu deixar o “plano lógico da Economia”, optando por estudar Línguas Estrangeiras, sentido agora que os seus relacionamentos com os outros se aprofundaram trabalhando arduamente no seu mestrado em Estudos Regionais. E, como o próprio afirma, “os ensinamentos de Puett mudaram, realmente, a minha vida”.

Assim sendo, a famosa citação que é atribuída a Confúcio – “Escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida” – faz todo o sentido.

Editora Executiva