“A justiça foi feita”, declarou Obama ao país, e ao mundo, no passado Domingo, depois da operação das forças especiais norte-americanas ter morto Osama Bin Laden. Os festejos que se seguiram encheram as ruas da América que, 10 anos depois, pôde gozar a vingança há tanto esperada. Mas existe uma diferença entre alívio e euforia. E, na verdade, o que se está a celebrar não é o fim da violência, mas o seu exercício
POR HELENA OLIVEIRA

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O terrorista mais procurado do mundo foi morto no passado Domingo por tropas especiais norte-americanas. E muito pouco tempo foi necessário para que, nas imediações da Casa Branca, no Ground Zero e em outros locais dos Estados Unidos, enormes ajuntamentos humanos dessem início às celebrações da sua morte. Por seu turno, líderes de vários quadrantes da sociedade receberam a notícia com satisfação. Finalmente, o monstro tinha sido abatido.

Em declarações à Rádio Renascença, o novo presidente da Conferência Episcopal Portugal, D. José Policarpo, criticava a forma como foi noticiada a morte de Osama Bin Laden e alertou que “a violência gera sempre violência”. O mesmo tom utilizado na reacção do Vaticano, pelo seu porta-voz, o padre Federico Lombardi, quando afirmou que o líder dos terroristas, apesar da “grandíssima responsabilidade de difundir divisão e ódio entre os povos” e de ter procurado “instrumentalizar a religião para este fim”, não devia ser motivo para um cristão se alegrar diante da morte de um homem, mas sim para “reflectir sobre as graves responsabilidades de cada um diante de Deus e dos homens”. Líderes religiosos de outras partes do mundo insurgiram-se igualmente contra o celebrar de uma morte de uma pessoa, mesmo que esta seja culpada dos mais ignominiosos crimes. Afinal, “não matarás” é um dos 10 Mandamentos.

E a ambivalência moral começa a instalar-se. Será que a morte de alguém, mesmo de um inimigo brutal, não significa, em termos éticos, que o mundo se está a reger pelos mesmos padrões amorais que caracterizavam o ex-líder da Al-Qaeda? E as crianças? Como é possível não transmitir a imagem de que é um comportamento justificado matar quem matou outros? E o que pensar da forma como a Administração Americana tem comunicado a sua operação? Sim, a “justiça foi feita”, como afirmou o Presidente Obama no seu discurso no passado Domingo à noite. Mas, primeiro, foi noticiado que Bin Laden foi abatido por ter resistido. Depois que não tinha havido resistência. Afinal, a ordem era de captura ou de morte? E os direitos humanos? E as convenções internacionais? E os inúmeros países que são contra a pena de morte, incluindo Portugal? E não teria sido um castigo maior para o terrorista ser julgado e condenado? E o regresso da temática da tortura em todo este processo? E as implicações deste acto para os que o continuarão a seguir (ainda mais) cegamente? As questões são inúmeras e, na comunicação social, começam a surgir respostas sociológicas e psicológicas que tentam explicar os que se regozijaram, sem sombra de remorso, e aqueles que, por mais alívio que sintam, sentem uma ambivalência sobre a vingança alcançada.

O VER foi à procura de algumas destas respostas.

Sim, a vingança é um sentimento humano
Em declarações à CNN, o psiquiatra Jeffery Lieberman, da Columbia University, afirmou que, no que respeita à “psicologia” colectiva americana, faz todo o sentido que este seja um momento de celebração. A nação tem vivido uma “doença” emocional, com uma economia em movimento lento, sentindo, pela primeira vez, que o país poderá estar a perder o seu estatuto de “1º do mundo” e há uma década que vive sob a angústia da ameaça terrorista. Mas, apesar de Bin Laden ter reclamado a responsabilidade da destruição das Torres Gémeas e da morte de milhares de pessoas, existe uma diferença entre alívio e euforia. E é esta diferença que começa a ser debatida, pois, na verdade, não estamos a celebrar o fim da violência, mas o seu exercício.

A palavra alemã “Schadenfreude”, que significa qualquer coisa como nos alegrarmos com o sofrimento ou a morte de outrem – pode constituir um vício perigoso. Mas e obviamente, é muito menos indutor de culpa ou remorso quando a vítima é um inimigo como Osama Bin Laden que apenas teve o que mereceu. Maia Szalavitz, editora da secção de saúde da revista Time, afirma que existem boas razões evolucionárias para o gosto humano pela vingança: por mais estranho que possa parecer, as nossas melhores qualidades como o altruísmo e a cooperação, provavelmente não teriam hipótese de sobreviver na natureza sem a existência da vingança. De acordo com cientistas neuronais, o acto de penalizar os violadores de regras foi cunhado como “castigo altruísta”. E é assim chamado, como explica a editora da Time, na medida em que o “altruísmo”, neste contexto, significa que a pessoa que perpetra o castigo arca com o risco de ser, ela própria, castigada por lei, ao mesmo tempo que beneficia a sociedade enquanto um todo.

Obviamente que esta situação não se aplica às forças especiais que mataram Bin Laden e que se limitaram a cumprir ordens. Mas a verdade é que, segundo o Pew Research Institute, logo imediatamente ao 11 de Setembro, um número significativo de americanos afirmou que pagaria uma boa quantia de dinheiro, de muito boa vontade, para matar Bin Laden com as suas próprias mãos. E foram também muitos os homens e mulheres que se juntaram às forças armadas, imediatamente a seguir aos ataques de 2001, sabendo que poderiam vir a sacrificar as suas próprias vidas para proteger (ou vingar) o seu país. Regressando aos estudos efectuados pela neurociência e dos dados revelados através das imagens ao cérebro, quando alguém se envolve neste tipo de actos altruístas, as regiões do cérebro ligadas ao prazer “iluminam-se”. O que, no caso dos americanos e do sofrimento extremo que os vitimou, deve, com certeza, ter acontecido no passado Domingo.

O triunfo do bem sobre o mal?
Nadine Kaslow é psicóloga na Emory University e resume da seguinte forma a sua leitura relativamente à euforia norte-americana depois da morte do seu inimigo número 1: “para alguns, Bin Laden representa mais uma ideia do que uma pessoa que viveu e morreu”, diz. O que significa que mais do que a morte de um ser humano, este acontecimento termina com a vida de um símbolo poderoso do terrorismo e da destruição. Para a psicóloga, “a morte de Bin Laden está muito mais próxima dos norte-americanos do que a captura e execução de Saddam Hussein, pois o ditador iraquiano não atacou directamente o solo americano”, afirma, acrescentando ainda que as pessoas pensam que o líder terrorista teve o que merecia, pois foi a sua “família” – no sentido nacionalista – que foi brutalmente atacada. Mas e mais uma vez, existe uma diferença a sublinhar: as pessoas que festejaram a morte do fundamentalista, não estavam a celebrar, por exemplo, o final de uma guerra, mas sim uma vingança. O que nos obriga a reflectir.

A psicóloga de Yale, Susan Nolen-Hoeksema, em conjunto com o já citado Lieberman, alertou, também na CNN, para uma reacção inversa que poderá ter consequências nefastas para os americanos: o reviver da tragédia e o regresso a situações pós-traumáticas. Mas Nolen-Hoeksema sublinha também a forma, aparentemente aceitável, que muita gente está a conferir à morte de Bin Laden: o triunfo do bem sobre o mal, principalmente entre os mais jovens. O que, quando colocado nesta perspectiva, tem contornos mais “morais” do que o simples festejar da morte de um ser humano. O que se afigura mais surpreendente, nos vários artigos de opinião que o VER teve acesso na sua pesquisa sobre esta temática, é o facto de os psicólogos americanos, na sua maioria, aconselharem os pais a explicarem, preto no branco, aos seus filhos, os motivos que os levam a festejar a morte de outro ser humano, por menos humano que este pudesse parecer. O que, pedagogicamente, gera um enorme contra-senso.

Mas se Osama Bin Laden foi morto por ter assassinado três mil americanos, também surgiram, na pesquisa do VER, várias opiniões que acusam os Estados Unidos de terem assassinado muito mais muçulmanos – cerca de 110 mil mortes de civis no Iraque e nove mil no Afeganistão. Ora, tal como escrevemos na parte inicial deste artigo, a forma como a morte do terrorista mais procurado do mundo foi perpetrada e comunicada pode vir a ter consequências perigosas que ninguém desejará celebrar.

E, como afirmou Robert Frazier, um doutorado em Filosofia no Christ Church College da Universidade de Oxford, há que se fazer a distinção entre receber “bem” uma morte e celebrá-la.

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Excessos perigosos
É um comportamento tipicamente americano: ganhar uns dólares sempre que possível e sem perder tempo. À venda estão já t-shirts e um sem número de peças de merchandising que também “celebram” a morte do terrorista. O que pode ser mais uma acha para a fogueira dos membros da Al-Qaeda.

Mas, pior do que isso, foi um vídeo que, na segunda-feira, começou a circular na Internet, feito por uma empresa do Taiwan, chamada Next Media, especializada em ilustrações gráficas. O vídeo, intitulado “Bin Laden morto: animação em vídeo dos momentos finais do líder do terrorismo”, representava o momento em que Bin Laden foi morto, seguido da celebração por parte das tropas americanas, que urinavam sobre o corpo, numa alusão aos rituais fúnebres dos muçulmanos. O vídeo prosseguia depois com os primeiros momentos além-morte de Bin Laden onde, em vez de se encontrar com anjos, era recebido por um diabo e conduzido a uma porta onde por ele esperavam 72 porcos, em substituição das 72 virgens [a religião islâmica mais fundamentalista ‘assegura’ 72 virgens aos que morrem em nome de Alá]. O vídeo terminava com uma tareia perpetrada por um dos porcos num acto de verdadeira bestialidade.

Se para alguns o vídeo era engraçado, e para outros apenas de mau gosto, o que está em questão é que este não se dirigia apenas a Bin Laden, mas ao povo islâmico. Não é possível desrespeitar as crenças de um povo, nem que seja pela promessa não compreendida pelos ocidentais do presente das “virgens no além” e, muito menos, pelo desprezo das suas cerimónias fúnebres.

Bin Laden foi, incontestavelmente, um monstro que afirmava que “odiava mais os seus inimigos do que amava a sua família”. Merecia, sem dúvida, ser severamente castigado. Mas celebrar – e marcar festas para novos festejos, até com celebridades, como está já a acontecer nos Estados Unidos – não servirá decerto para apagar a dor dos que por causa dele sofreram mas, muito provavelmente, para inflamar outros tão cruéis e fundamentalistas como ele. E as consequências são, neste momento, absolutamente imprevisíveis.

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