Quem o afirma é Joana Marques Vidal na análise que faz, e no âmbito do ciclo de conferências “Construir a Esperança na Crise”, à proposta de lei para introduzir medidas preventivas e repressivas da corrupção e que está em debate parlamentar esta semana. Centrando a sua apresentação, em particular, nas matérias que mais interesse suscitam ao sector privado, a ex-procuradora-geral da República critica a fraca ambição da estratégia em causa, nomeadamente no que respeita às questões mais sensíveis desta luta que parece não dar tréguas e que, mais uma vez, deixa de fora uma resposta que se queria abrangente, global e integrada
POR HELENA OLIVEIRA

Joana Marques Vidal foi a mais recente convidada do ciclo de conferências “Construir a Esperança na Crise”, promovido pela ACEGE, no qual apresentou a sua reflexão, em particular, sobre a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC). Depois de, em Dezembro de 2019, o Conselho de Ministros ter aprovado a criação de um grupo de trabalho para definir uma “estratégia nacional, global e integrada de combate à corrupção”, na dependência directa da ministra da Justiça e envolvendo diferentes entidades e profissionais, o balanço final foi apresentado em Novembro de 2020 e a proposta de debate chegou ao Parlamento esta semana. A ENCC tem vindo a suscitar muitas críticas, nomeadamente por deixar de fora áreas críticas da corrupção como as funções políticas, o branqueamento de capitais e, em particular, o enriquecimento ilícito e foi caracterizada, nesta mesma conferência, pela ex-procuradora-geral da República, como “um bom começo, mas muito pouco ambiciosa”.

Referindo que esta “luta contra a corrupção” é discutida há tanto tempo e que, por vezes, ainda é questionado se será necessário continuar a falar sobre a mesma, Joana Marques Vidal sublinha que, e infelizmente, “existe uma profunda necessidade de continuarmos a abordar o tema, a reflectir e a questionar não só a nossas concepções, como também as respostas que, em termos comunitários e da sociedade, lhe vamos dando”.

Recordando que esta luta está ligada a enormes prejuízos, “por colocar em causa os fundamentos do Estado e pela profunda desconfiança que provoca relativamente ao funcionamento de todas as suas instituições, designadamente da Justiça”, a magistrada portuguesa sublinhou igualmente as profundas desigualdades que, em termos muito genéricos, derivam “do desvio de fundos públicos ou privados, utilizando-se uma situação de poder, tanto no Estado como no sector privado, para obter benefícios em troca de pagamentos, sejam eles em dinheiro ou mediante quaisquer outras formas” e não esquecendo igualmente que “o desvio de fundos públicos tem efeitos directos na educação, na saúde e em todas as áreas que são fundamentais para a nossa sociedade”. A seu ver, o que lhe parece igualmente essencial é que “não estamos só a falar da distribuição de bens, ou de dinheiro, mas sim da construção de sociedades mais justas, mais humanas e mais equitativas”.

Joana Marques Vida salientou igualmente uma ideia que diz ser muito comum, mas também muito esquecida, que é o facto de a corrupção não ser uma questão essencialmente do foro do funcionamento dos tribunais ou da legislação da repressão. Ou seja e na verdade, “envolve toda a comunidade, na qual todos nós temos um papel a desempenhar e em que a prevenção tem um papel fundamental”. Apesar de as pessoas ansiarem, e justamente, por modos de acção imediatos, a aposta na prevenção e também na educação, é um caminho moroso e difícil de trilhar, mas não existem dúvidas que há que “apostar forte numa cultura de integridade e transparência, quer no sector público, quer no privado” e constituindo esta aposta uma das sete prioridades inerentes à ENCC (v. Caixa).

Neste sentido, a ex-procuradora-geral da República destaca a importância dos códigos de ética em todas as instituições, públicas e privadas, a par dos mecanismos que possam ser utilizados na concretização desses mesmos códigos. Relembrando que, em algumas instituições, e mesmo em termos internacionais, estes têm alguma equivalência com os denominados códigos de boas práticas ou de boa conduta, há que não esquecer que os primeiros são documentos de abrangência mais elevada ao nível da conservação de princípios e que, apesar de serem ainda recentes em Portugal, têm adquirido uma maior relevância nos últimos tempos, gerando momentos, nas instituições e organizações que os elaboram, de reflexão sobre os princípios e práticas éticas que estas se obrigam a cumprir.

Como esclarece, a ENCC, agora de uma forma mais operacional, confere uma maior importância aos programas de compliance – que foram traduzidos para “cumprimento normativo” e que se estendem tanto ao sector público como ao privado, mas sublinha, contudo, que “os planos de prevenção da corrupção que já existem em muitos organismos da função pública, não são mais do que um conjunto de regras, emoldurado ou esquecido numa gaveta”, ou seja, tiveram importância no seu momento de elaboração, mas depois não são tidos em atenção nos próprios departamentos do Estado, em particular no que respeita aos planos de prevenção, os quais, e com esta nova estratégia, se pretende que venham a ter uma efectiva aplicação, a par de sanções para a sua não aplicação ou para a sua não existência.

Relativamente ao sector privado, o que se vem agora propor é o estabelecimento da obrigatoriedade de existência de elaboração de programas de cumprimento normativo para as empresas de média e grande dimensão, os quais devem ser incluídos num regulamento geral de prevenção da corrupção – apesar de não existir ainda uma proposta concreta neste sentido – mas cuja existência possa ter relevância não só na possibilidade de existirem punições com contra-ordenações, mas também serem tidos em atenção quando exista uma responsabilização penal das empresas. Como diz também, “a responsabilidade da intervenção do sector privado nestas matérias teve o seu reflexo em muitas propostas de alteração que estão em discussão na Assembleia da República, quanto à uniformidade das penas e das sanções que definem a responsabilidade penal da pessoas colectivas, uma área que já estava prevista na lei, mas que não tinha uma regulamentação muito clara, dando origem a aplicações por vezes contraditórias por parte dos tribunais”.

Joana Marques Vidal faz também saber que estão previstas alterações aos ilícitos penais que vêm previstos no código das sociedades comerciais, “precisamente para uma punição mais uniforme, e também mais gravosa, dos crimes de aquisição ilícita de quotas ou de acções, de escrituração fraudulenta ou de informações falsas [dessas mesmas sociedades] ”.

Tendo em conta a audiência de gestores e empresários a assistir a esta conferência, a ex-procuradora-geral da República chamou particular atenção para o facto de esta estratégia conferir uma importância clara e efectiva ao que deve ser o comprometimento do sector privado, bem como o seu envolvimento e responsabilidade, no que respeita à prevenção e detecção das práticas de corrupção.

Adicionalmente, e como refere, a ENCC avança igualmente “em alguma previsão das consequências relativamente a quem infringe a lei poder vir a ser condenado, com pena acessória ou sanção e não poder concorrer, por exemplo, a procedimentos concursais durante um determinado período de tempo”. Estas previsões são importantes por algumas das razões já referidas, diz, mas em particular pela responsabilização e maior exigência no funcionamento de todas as estruturas, designadamente também da estrutura do próprio Estado”, tendo como objectivo ir ao encontro da necessária cultura de integridade e transparência em todas as instituições.

Apesar de ter realçado alguns dos pontos que considera positivos desta Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, a magistrada voltou a sublinhar a ideia de que a mesma “poderia e deveria ir muito mais longe”. Não só porque deixa de fora ou toca muito debilmente “as matérias relativas à transparência do exercício dos cargos públicos, à fiscalização do financiamento dos partidos políticos, à contratação pública, ao lobbying e a sectores já hoje identificados como de risco, como, por exemplo, as autarquias locais, bem como outras igualmente sensíveis como as áreas de regime financeiro”, mas também no que respeita “à inexistência de uma cultura de avaliação do documento”. Ou seja e a seu ver, existem falhas na ausência de estabelecimento de prazos de execução da própria estratégia, bem como na avaliação dos indicadores da sua aplicação.

Mais ainda, refere, “o que fica também por promover é uma efectiva prática da transparência e da exigência de prestação de contas por parte dos responsáveis, não só políticos, mas também dos detentores de altos cargos públicos”, o que abrange também os altos cargos públicos da magistratura, algo que precisa de ser ultrapassado com os meios e recursos necessários para a efectiva aplicação da lei.

Joana Marques Vidal confessa ainda uma mágoa face à sua “guerra pessoal”. Afirmando que Portugal tem, em alguns casos, um quadro legislativo bastante completo – “e por vezes, em termos europeus, exemplar”, o problema reside no facto de este não ser efectivamente aplicado. Como declara, “às vezes, mais importante que alterar uma lei – apesar de considerar que estas devem ser alteradas quando é preciso – é ter estruturas de investigação, repressão e prevenção devidamente equipadas e especializadas”.

Ou, e como remata, com um corpo de magistrados e de entidades policiais, preparados, equipados com as mais modernas tecnologias no âmbito da investigação criminal, do cruzamento de dados e do tratamento da informação, conseguiríamos, com as mesmas pessoas, fazer muito melhor”.


As 7 prioridades para reduzir o fenómeno da corrupção em Portugal

  • Melhorar o conhecimento, a formação e as práticas institucionais em matéria de transparência e integridade;
  • Prevenir e detectar os riscos de corrupção no sector público;
  • Comprometer o sector privado na prevenção, detecção e repressão da corrupção
  • Reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas;
  • Garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais em matéria de repressão da corrupção, melhorar o tempo de resposta do sistema judicial e assegurar a adequação e efectividade da punição;
  • Produzir e divulgar periodicamente informação fiável sobre o fenómeno da corrupção;
  • Cooperar no plano internacional no combate à corrupção

Fonte: https://justica.gov.pt/Estrategia-Nacional-de-Combate-a-Corrupcao-ENCC

NOTA: A intervenção de Joana Marques Vidal pode ser acedida na íntegra aqui


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