O mundo em desenvolvimento adopta, na esmagadora maioria das vezes, programas educacionais tradicionais que vigoram no Ocidente. Mas uma dupla de investigadores concluiu que saber quais são os números primos ou por que se movem as placas tectónicas em nada é relevante para as vidas das crianças pobres. A aposta num modelo que combina os conteúdos tradicionais com competências sobre literacia financeira, saúde e empreendedorismo deu origem à “Escola da Vida”. Para que também os mais pobres tenham direito a mudá-la para melhor
Adaptado por HELENA OLIVEIRA
© Stanford Social innovation Review

Na maioria dos países em desenvolvimento, poucas são as crianças que conseguem chegar ao fim do ensino secundário, sendo que muitas delas nem sequer terminam a escola primária. No Gana, por exemplo, apenas 50 por cento das crianças completam o grau 5, sendo que dessas, menos de metade consegue compreender um simples parágrafo.

© BRAC

O programa da Unesco, Educação para Todos, o qual faz parte dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) e que pretende fornecer o livre e universal acesso à educação primária, tem sido bastante bem sucedido no que respeita ao número de alunos matriculados. Todavia, e de acordo com os relatórios anuais do mesmo programa, muitas crianças desistem da escola antes de terminarem este nível de estudos. E a que motivos se deve esta taxa de desistência?

Existem inúmeras razões, incluindo dificuldades em chagarem à escola ou os custos inerentes à educação. Mesmo quando esta é gratuita, existem sempre despesas com o almoço, os uniformes e as taxas a pagar pelos exames. E, devido ao facto de a qualidade da educação ser, na maioria das vezes, pobre, os pais são forçados a pagar por explicações adicionais para garantir que os filhos passem nos exames. Os custos desta “oportunidade” podem ser ainda mais amplos – enquanto as crianças estão na escola, abdicam de outras oportunidades para produzir rendimento, através do trabalho agrícola que poderiam fazer nas terras dos pais ou a vender nos mercados. Não é assim de todo surpreendente que quando os investimentos na educação não resultam numa formação adequada, ou mesmo no que respeita à literacia e à aritmética, os pais optem por tirar os filhos da escola.

Mesmo quando os resultados da aprendizagem são adequados, são muito poucos os estudantes que prosseguem com os seus estudos nas escolas secundárias. As perspectivas de emprego para a maioria das pessoas no mundo em desenvolvimento são escassas e permanecer na escola para além do grau 5, ou até do grau 10, não as melhora de forma significativa. Nas regiões mais empobrecidas, a vasta maioria não assegurará um emprego formal e será sustentado através de níveis de subsistência provenientes da agricultura e do comércio. Por outro lado, os resultados em termos de saúde nestas regiões são igualmente terríveis. Milhões de crianças morrem todos os anos devido a doenças controláveis como a diarreia, as infecções respiratórias e a malária.

Os programas educacionais adoptam, tipicamente, os modelos tradicionais de educação do Ocidente, com uma ênfase na matemática, ciências, língua e estudos sociais. Estes programas alocam tópicos como a mitologia grega, os números primos ou os movimentos das placas tectónicas, os quais podem fornecer algum estímulo intelectual, mas que pouca ou nenhuma relevância têm para as vidas das crianças pobres. Os estudantes com elevadas performances nas regiões menos desenvolvidas enfrentam um futuro completamente diferente dos seus pares residentes em áreas prósperas. Não existem níveis académicos elevados para os mesmos nem oportunidades profissionais à sua espera, pela menos para a maioria. Muito provavelmente, acabarão por trabalhar com a família ou em terras agrícolas próximas ou criando pequenos negócios próprios.

A escola não fornece sequer a literacia financeira necessária para que estes estudantes consigam gerir os seus magros recursos, nem a orientação exigida para criarem oportunidades que assegurem a sua subsistência ou a construção de riqueza. Adicionalmente, a escola também não é capaz de oferecer assistência alguma para promover a saúde física necessária para a sua estabilidade económica e para a qualidade de vida. A esperança de vida é baixa nestas regiões pobres e não só porque existe uma escassez de cuidados médicos de qualidade. A devastação causada por doenças evitáveis e com efeitos no bem-estar e na estabilidade financeira das regiões pobres poderia ser significativamente mitigada através de instruções sobre comportamentos básicos de saúde, como o simples acto de lavar as mãos.

Os autores que assinam este artigo – Marc J. Epstein, Professor e investigador na Management Rice University e Kristi Yuthas, responsável pela cátedra de Gestão de Sistemas de Informação na Portland State University – acreditam fervorosamente que os estudantes residentes nestas regiões empobrecidas precisam não de mais competências académicas, mas e ao invés, de competências de vida que os capacitem a melhorar as suas perspectivas financeiras e de bem-estar. E estas deveriam incluir a literacia financeira e competências de empreendedorismo; manutenção da saúde e competências de gestão; e um conjunto de capacidades administrativas, como o trabalho em equipa, a resolução de problemas e a gestão de projectos.

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© ESCUELA NUEVA
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Ao longo dos últimos cinco anos, Epstein e Yuthas realizaram um extenso trabalho de pesquisa sobre o estado da educação nos países em desenvolvimento. Visitaram muitas escolas governamentais, não-governamentais, privadas, bem como programas de formação para professores na Ásia, na América Latina e em África, conversando com professores, estudantes, reitores, proprietários de escolas e autoridades governamentais. Visitaram também programas educacionais inovadores, considerados entre os melhores e mais bem-sucedidos do mundo, incluindo a BRAC, uma ONG no Bangladesh que detém e opera 32 mil escolas primárias; a Pratham, que oferece literacia e outros programas de apoio educacional, ensinando 33 mil crianças na Índia; ou a Escuela Nueva, o programa colombiano de educação que já ascende a 20 mil escolas. Os autores implementaram programas de formação para adultos analfabetos nos países em desenvolvimento e testaram essa formação, de forma eficaz, ao longo de alguns anos, aplicando o melhor da sua experiência ao aperfeiçoamento de organizações como a Opportunity International, uma instituição de microfinança de grandes dimensões.

E foram estas as experiências que convenceram Marc Epstein e Kristi Yuthas que é chegada a altura certa para se redefinir a educação de qualidade no mundo em desenvolvimento.

Um novo modelo de educação

Os autores deste artigo desenvolveram um modelo educacional robusto que combina os conteúdos tradicionais com competências criticamente importantes na área da literacia financeira, da saúde e administrativas, as quais podem ser facilmente partilhadas através dos sistemas escolares e dos professores existentes.

O modelo em causa, denominado “escola da vida”, afasta-se do objectivo de se atingir resultados de aprendizagem normalizados, concentrando-se, ao invés, em realizar um impacto positivo no bem-estar social e económico para os estudantes e suas comunidades. Todavia, o modelo exige alterações significativas tanto em termos de conteúdos como de pedagogia. Em primeiro lugar, os módulos sobre saúde e empreendedorismo constituem matérias obrigatórias no currículo de todos os estudantes da escola primária. Em segundo, métodos de ensino centrados nos estudantes são utilizados de forma a que estes aprendam a trabalhar em grupo para solucionarem problemas complexos e gerirem projectos desenvolvidos por si mesmos.

Esta abordagem é inspirada em modelos de educação para adultos existentes nos países em desenvolvimento, os quais se concentram na auto-eficácia como o fundamento principal para comportamentos positivos no que respeita ao auto-sustento e à saúde, em conjunto com pedagogias de aprendizagem activa utilizadas em escolas progressistas um pouco por todo o mundo. O currículo na área da saúde tem como base o trabalho da Organização Mundial de Saúde e concentra-se na prevenção de doenças, nos cuidados a ter com crianças doentes e na obtenção de cuidados médicos. O currículo inerente ao empreendedorismo é formado de acordo com o trabalho já desenvolvido com empreendedores adultos nos países em desenvolvimento e aplica ideias provenientes de um amplo conjunto de programas de empreendedorismo e finanças desenvolvidos por organizações como a Organização Internacional de Trabalho, a Junior Achievement e a Aflatoun.

O conhecimento conceptual é colocado em prática na escola, através de actividades que delegam poder aos alunos para utilizarem aquilo que aprenderam. Por exemplo, os estudantes que praticam comportamentos rotineiros na área da saúde, como lavar as mãos ou utilizarem sapatos perto de latrinas ganham, nos casos em que é possível, exposição a outros comportamentos importantes como ferver a água que se vai beber ou a utilização de redes para protecção da malária. Por outro lado, praticam transacções rotineiras similares às de um mercado, como ganhar pontos por fazerem os trabalhos de casa ou pouparem os mesmos para obter prémios valiosos, como sentarem-se na sua cadeira favorita ou estarem na fila da frente na sala de aula.

Os estudantes desenvolvem igualmente outro tipo de competências quando trabalham em comités para desenvolver e executar projectos complexos. Projectos relacionados com a saúde incluem desde o planeamento e realização de actividades desportivas durante os períodos de intervalo até à prática de diagnóstico de doenças quando os colegas se encontram doentes – decidindo, por exemplo, quando é que uma gripe se transformou numa infecção respiratória que exige o tratamento com um antibiótico. Os projectos de empreendedorismo incluem a identificação e exploração de oportunidades de mercado através de ideias de negócio como hortas escolares ou programas de reciclagem na comunidade e que criam valor real. Os estudantes aprendem e praticam competências inerentes ao local de trabalho e atitudes como a delegação de tarefas, a negociação, a colaboração e o planeamento – oportunidades estas que geralmente lhes estão vedadas no seio familiar.

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Alguns sistemas escolares, especialmente ao nível do secundário, começaram já a incluir tópicos de saúde e empreendedorismo nos seus requisitos curriculares. Mas a inclusão deste tipo de informação nas aulas “normais” não é suficiente. As escolas têm de adoptar simultaneamente abordagens pedagógicas que sejam orientadas para a acção, que aperfeiçoem as competências críticas de pensamento e que capacitem as crianças para a identificação de problemas, para a procura e avaliação de informação e recursos relevantes, e que concebam planos para a resolução eficaz desses mesmos problemas. O que envolve a abordagem de problemas reais que exijam e dêem poder aos estudantes para tomarem a iniciativa e se responsabilizarem pela sua própria aprendizagem.

Uma implementação total da abordagem desta nova escola da vida não foi ainda adoptada por nenhuma grande organização, mas um projecto-piloto está a ser desenvolvido pela Escuela Nueva, na Colômbia. A Escuela Nueva foi pioneira na adopção de abordagens centradas no estudante, a serem utilizadas nos ambientes rurais empobrecidos, os quais, na maioria das vezes, utilizam salas de aulas onde coexistem diversos graus de ensino. A Escuela Nueva desenvolve materiais escolares e abordagens pedagógicas nas quais os estudantes trabalham em equipas auto dirigidas para aprender, discutir e praticar activamente, utilizando os conteúdos básicos que são incluídos nos currículos governamentais normalizados.

Através desta combinação única de conteúdos relevantes, implementação prática e empowerment dos estudantes, as crianças desenvolvem um corpo de conhecimentos, competências e atitudes que as capacitará a serem bem-sucedidas e a prosperar depois de deixarem a escola, seja para os que quiserem seguir os estudos ou para aqueles que permanecerão no seio das suas comunidades.

Alterações dramáticas são imprescindíveis

A definição tradicional da qualidade de uma escola no mundo em desenvolvimento tem como base o domínio dos conteúdos. Mas a utilização básica das abordagens tradicionais de ensino durante os preciosos e poucos anos em que as crianças frequentam a escola conduz apenas a uma perda de recursos e a oportunidades perdidas para os indivíduos e para as suas comunidades. As agências governamentais e as organizações que apoiam e promovem a educação de qualidade para todas as crianças têm de ir para além dos modelos tradicionais, para ajudar as crianças a desenvolverem o conhecimento, as competências e as atitudes que são relevantes para as suas vidas e que os podem retirar um dia da pobreza.

Por demasiado tempo, os governos e as organizações que investem na educação do mundo em desenvolvimento operaram sob pressupostos não questionados de que melhores qualificações nos testes consistiam a clara evidência de que os seus investimentos estavam a dar frutos. Mas se, como é argumentado neste artigo, o domínio do currículo escolar primário não é a melhor forma de melhorar as oportunidades de vida e de aliviar a pobreza nos países em desenvolvimento, então significa que este modelo não é adequado. Investir em intervenções que produzam os melhores resultados nos testes já não constitui uma abordagem válida para se alocar escassos dólares educacionais ou pouco tempo disponível para o desenvolvimento das mentes jovens. Está na altura de procurar intervenções que conduzam a um impacto social e económico verdadeiramente positivo para os mais pobres.

Artigo originalmente publicado na Stanford Social innovation Review, por  Marc J. Epstein, Professor e Investigador na Management Rice University e Kristi Yuthas, responsável pela cátedra de Gestão de Sistemas de Informação na Portland State University.

Adaptado com permissão.

Helena Oliveira

Editora Executiva