Qualquer pessoa privada de dinheiro, de amigos, de tempo ou de calorias sucumbe, de forma similar, a uma “mentalidade de escassez”. Esta pode ser debilitante, pois reduz os horizontes, cria uma perigosa “visão de túnel”, para além de minar a vontade e os recursos intelectuais, reduzindo a “banda larga” mental. O livro Scarcity: Why Having Too Little Means So Much obriga a repensar os efeitos que a privação tem nos nossos cérebros, ao mesmo tempo que abre caminho a uma reformulação radical das políticas de pobreza
POR HELENA OLIVEIRA

“Tendemos a ser indulgentes com os pobres num sentido muito específico, que é aquele em que tendencialmente pensamos: ‘mas por que motivo é que eles não se responsabilizam mais pelas suas próprias vidas?’ Mas o que esquecemos com frequência é o facto de que, quanto mais ricos somos, menos responsabilidade é necessária para tomar conta da nossa vida, na medida em que existem sempre formas de serem os outros a tomar conta dela. E quanto mais pobre se é, mais responsabilidades se tem sobre todos os aspectos da vida… Paremos de criticar as pessoas por não serem responsáveis e comecemos a pensar em formas de fornecer aos pobres os luxos que todos nós possuímos, os quais são, na verdade, um conjunto enorme de decisões que nos é retirado dos ombros”

Este excerto, retirado do blog Center for Effective Philanthropy, foi escrito pela economista Esther Duflo, uma das mais reconhecidas especialistas mundiais em pobreza e serve para colocar preto no branco muitos pressupostos que, por serem politicamente incorrectos, são proferidos em sussurro ou mesmo guardados para nós próprios.

Quantas vezes questionamos por que motivo, nos países em desenvolvimento, são muitos os pobres que não arrancam as ervas daninhas das suas plantações, que não vacinam a suas crianças, que não lavam as mãos, que não tratam da sua água, que não tomam os seus medicamentos ou que não se alimentam adequadamente durante a gravidez? E por que motivo falham tantos programas de ajuda ao desenvolvimento os quais, na sua maioria, estão despertos para estas realidades e as integram nas “competências” a serem ensinadas aos mais pobres? Basicamente porque tomamos como certo que estas denominadas “falhas” de aprendizagem, ou até de carácter, constituem uma causa da pobreza e não a sua consequência.

Quando as pessoas lutam com a escassez, as suas mentes estão intensamente ocupadas, ou mesmo “obcecadas”, com aquilo que não têm.

.
.

Uma nova pesquisa, levada a cabo pelo economista comportamental de Harvard, Sendhil Mullainathan, e por Eldar Shafir, psicólogo cognitivo de Princeton, entretanto publicada em livro, pode abrir caminho a uma nova escola de pensamento, investigação e possível acção que se concentra no problema da escassez – na economia, esta temática é tratada de acordo com a forma como se alocam os recursos (incluindo tempo e dinheiro) face a muitas exigências concorrentes – e numa forma completamente diferente, quase revolucionária, de a  compreender.

Em Scarcity: Why Having Too Little Means So Much, os que os autores exploram é o sentimento de escassez e as consequências psicológicas e comportamentais originárias desse mesmo sentimento. Conscientes que o sentimento da escassez difere num conjunto variado de experiências e que as pessoas se podem sentir “pobres” no que respeita ao dinheiro, ao tempo ou aos relacionamentos que têm com os outros (entre outras coisas), o seu argumento principal, com base em pesquisas empíricas variadas é, todavia, o facto de, em todas estas categorias diferentes, o sentimento de escassez ter efeitos bastante similares. Por um lado, coloca as pessoas numa espécie de túnel cognitivo, limitando a sua capacidade de visão e discernimento, por outro, a escassez gera mais escassez, o que representa uma armadilha da qual é extremamente difícil sair. Não sendo, a priori, uma teoria fácil de definir, comecemos por alguns exemplos mais práticos.

Porque não têm dinheiro, as pessoas pobres concentram-se mais intensamente nas consequências económicas dos seus gastos comparativamente aos mais abastados que os consideram triviais e não dignos de serem considerados uma preocupação.

Aqueles que não têm tempo caem muitas vezes na falácia do planeamento, ou seja, são irrealisticamente optimistas sobre o tempo que levarão a terminar uma tarefa, sendo-lhes extremamente difícil gerir esse activo a longo prazo.

Os que têm falta de dinheiro e de tempo têm também muito em comum com as pessoas solitárias, para as quais as relações com os outros são escassas.

Ou, em suma, quando as pessoas lutam com a escassez, as suas mentes estão intensamente ocupadas, ou mesmo “obcecadas”, com aquilo que não têm.

Aquilo que muitas vezes consideramos como a personalidade básica de uma pessoa – a incapacidade para aprender ou a propensão para a raiva ou para a impaciência, pode muito bem ser um produto do seu sentimento de escassez. E o maior problema reside no facto de a escassez gerar mais escassez, o que a transforma num ciclo vicioso do qual é profundamente difícil escapar.

.
.
© DR
.

A escassez remodela os padrões de pensamento
Existe uma psicologia distintiva da escassez, argumentam Mullainathan e Shafir. As mentes das pessoas trabalham de forma diferente quando sentem que lhes falta algo. E, na verdade, não importa o que esse algo represente. Qualquer pessoa que se sinta carente de dinheiro, de amigos, de tempo ou de calorias sucumbe, de forma similar, a uma “mentalidade de escassez”.

Esta mentalidade oferece, contudo, dois benefícios. Por um lado, concentra a mente nas necessidades prementes. Por outro, confere às pessoas um sentimento mais aguçado do valor de um dólar, de um minuto, de uma caloria ou de um sorriso. Os mais solitários, por exemplo, são melhores a decifrar emoções. E, de forma similar, os pobres têm uma melhor compreensão no que respeita aos custos e ao valor dos produtos.

Mas a mentalidade de escassez pode ser igualmente debilitante, pois reduz os horizontes das pessoas e limita a sua perspectiva, criando uma perigosa visão de túnel. A ansiedade daqui resultante também mina a força de vontade e os recursos intelectuais, reduzindo a “banda larga” mental, tal como os autores a denominam. Um exemplo? Os cultivadores de cana-de-açúcar indianos têm piores resultados em testes de avaliação de inteligência antes das colheitas – na altura em que têm menos dinheiro e estão preocupados com o resultado final da sua produção – do que depois desta, quando o dinheiro abunda. Na verdade, o efeito de “dinheiro abundante” representa um aumento entre nove e 10 pontos nos testes de QI efectuados pós-colheita.

Em suma, o que os autores defendem é que sentirmo-nos pobres diminui o nosso QI, tanto quanto uma noite sem dormir. E as ansiedades relativas à inexistência de amigos têm um efeito similar.

Por exemplo, as pessoas solitárias não são melhores que as outras a lembrarem-se de algo que tenham lido, mas excedem as expectativas na sua capacidade de recordarem partes de uma narrativa que envolva interacções com os outros. De forma surpreendente, as crianças pobres sobrestimam sistematicamente a dimensão das moedas maiores, simplesmente porque estas são fundamentais (e escassas) para elas. Nos restaurantes e aeroportos, pessoas que estão a passar por um processo de divórcio, estão especialmente alertas à presença de casais e de famílias. E os exemplos poderiam continuar.

Sentirmo-nos pobres diminui o nosso QI, tanto quanto uma noite sem dormir

.
.

Ta como já foi citado anteriormente, os autores sublinham que esta mentalidade ou sentimento de escassez pode ter benefícios distintivos, pois obriga a mente a concentrar-se em alguma coisa. Quando enfrentamos algum tipo de escassez, acabamos por entrar num “túnel psicológico” e esse enfoque pode ter um efeito benéfico. São muitas as pessoas que trabalham melhor, e de forma mais criativa, quando se estão a aproximar do seu prazo. Estudos sobre reuniões confirmam que é só quando falta pouco tempo para estas terminarem, que as pessoas começam a fazer progressos face aos assuntos em discussão. E depois de uma visita a um supermercado, a maioria das pessoas não se recorda de quanto gastou em produtos particulares, sendo que os pobres sabem exactamente o custo de cada item que adquiriram.

Mullainathan e Shafir não têm dúvidas que a escassez – de horas de sono, de segurança, de tempo, comida ou dinheiro – remodela os padrões de pensamento.

Todavia, o lado negativo deste sentimento significa que ao ocupar a mente de forma quase obsessiva, a escassez pode impedir as pessoas de pensarem em outros assuntos. Se a mente está “cheia”, terá muito mais dificuldade em absorver material novo. Para muitos cientistas sociais, esta dificuldade é denominada como “carga cognitiva”. E se esta carga ou custo se concentra na satisfação de uma necessidade premente, o cérebro simplesmente perde uma quantidade significativa de curiosidade por outros assuntos, como também a capacidade de vislumbrar consequências de longo prazo.

Adicionalmente, os efeitos desta “perda de banda larga” gerada pela escassez, conduz a resultados catastróficos, especialmente no que ao dinheiro diz respeito. Apesar de os pobres terem uma ideia muito mais definida no que respeita ao valor e aos custos, uma concentração obsessiva relativamente à origem do “próximo dólar”, conduz não só a um raciocínio mais lento, a uma capacidade inferior de fazer escolhas racionais ou de se ter uma visão mais alargada ou, como já foi exemplificado anteriormente, a uma menor “inteligência”.

Quando um indivíduo – qualquer indivíduo – é “obrigado” a pensar continuamente nos seus problemas de dinheiro, a sua capacidade para realizar testes e tarefas é mensuravelmente reduzida. Sempre que lhes é recordado que são pobres, os indivíduos “demonstram uma inteligência menos flexível e menor controlo executivo. Com a escassez a ocupar a mente, existe, simplesmente, “menos ‘mente’ para tudo o resto”, defendem os autores.

© DR

O imposto da banda larga
A capacidade reduzida das pessoas para o autocontrolo está relacionada, segundo os autores, com a diminuição – ou até exaustão – da “banda larga”. O argumento exposto no livro defende que quando a atenção das pessoas é absorvida por determinados assuntos, estas sucumbem mais facilmente aos seus impulsos. Com esta lição em mente, Mullainathan e Shafir insistem que certo tipo de características que atribuímos à personalidade individual, como por exemplo a ausência de motivação ou a incapacidade para a concentração, podem, na verdade, constituir um problema de banda larga limitada. Ou seja, o problema reside na escassez e não na pessoa. Uma boa metáfora para entendermos este conceito é comparando um computador que está lento porque tem muitos programas abertos e a operar ao mesmo tempo. Na verdade, não existe nada de errado com o computador, sendo apenas necessário fechar alguns dos programas para que a sua performance volte ao normal.

Se esta limitação de banda larga tem consequências nas respostas comportamentais da maioria dos indivíduos, na concepção de programas de ajuda à pobreza, a falta desta banda larga tem uma importância ainda maior.

Como escrevem os autores: “quando concebemos programas para a pobreza, reconhecemos que os pobres têm pouco dinheiro e fazemos os possíveis para nunca nos esquecermos disso. Mas nunca pensamos que eles também podem ter pouca banda larga. E nada clarifica mais esta questão do que o impulso que sentimos para educar. A nossa primeira resposta a muitos problemas é ensinar às pessoas as competência de que carecem. Confrontados com problemas parentais, fazemos programas com competências parentais. Confrontados com erros financeiros, fornecemos aulas de literacia financeira. Confrontados com trabalhadores cujas competências sociais são escassas, oferecemos aulas de ‘soft skills’. Ou seja, tratamos a educação como se esta fosse a menos invasiva das soluções, um bem que não pode ser adulterado. Mas enquanto e indubitavelmente a educação é imprescindível, tratamo-la como se não tivesse nenhuma ‘etiqueta com um preço’ para os pobres. Mas, na verdade, a banda larga implica um custo elevado: ou a pessoa não se concentra e os nossos esforços foram em vão, ou a pessoa concentra-se, mas tem de pagar um ‘imposto’ por essa banda larga”.

Na concepção de programas de ajuda à pobreza, a falta de “banda larga” tem uma importância ainda maior

.
.

A boa notícia é que, de acordo com os autores, é possível construir banda larga adicional. O primeiro exemplo advém das finanças. Se tivermos em mente que o principal “malabarismo” (o termo em inglês – juggling – é entendido pelos autores como uma consequência comportamental da escassez e que impede o planeamento de longo prazo) das pessoas em situações de pobreza é apagar “fogos diários”, se formos capazes de ajudar a apagar esses fogos diários, então estaremos a criar banda larga adicional. E o que é inerente a estes fogos é o facto de eles serem imprevisíveis – ou seja, existe uma necessidade imediata de dinheiro. A necessidade não é de grandes investimentos, mas de pequenas quantias, como comprar um uniforme escolar. Ou, por outras palavras, o que o pobre mais deseja é o que um agiota local lhe pode oferecer: uma pequena quantia de dinheiro, fornecida rapidamente e repaga também com celeridade para ajudar a suprir uma necessidade urgente. Pelo contrário, o tipo de ajuda financeira oferecida aos pobres é frequentemente oposto a este princípio: a oferta de montantes modestos e alargados fornecidos de forma prudente e lenta.

O que explica, como argumentam os autores, que mesmo com a existência crescente de instituições de microfinança respeitáveis, os pobres continuem a preferir pedir dinheiro aos “emprestadores” locais. E exemplificam:
“Na índia, testámos um produto de pequenos empréstimos a curto prazo com a KGFS, uma instituição financeira que serve um conjunto de aldeias rurais. E não queríamos acreditar na enorme demanda por empréstimos que totalizavam, em média, 10 dólares. O produto não serve, obviamente, para gerar riqueza; e não transforma as pessoas em empreendedores. Mais ainda e superficialmente, não parece, com toda a certeza, o tipo de quantia  que sirva para transformar uma vida. Mas e no final, poderá fazer exactamente isso. A armadilha da escassez começa com o apagar de fogos e com a visão de túnel, o que leva as pessoas a fazer coisas que têm custos enormes fora desse ‘túnel’. Alteremos essa noção e poderemos alterar também a própria lógica da pobreza”.

A ideia de ajudar os pobres a escapar a uma vida contínua de malabarismos e de apagar fogos está muito presente na “missão” deste livro. E se os autores podem parecer algo pretensiosos quando afirmam que o seu trabalho “reflecte uma perspectiva mais aprofundada, e diferente, sobre a pobreza”, a verdade é que nos obriga a reflectir.

O livro concentra-se não só no recurso mais escasso dos pobres – o seu rendimento – mas insiste na ideia deste recurso,”menos palpável, mas igualmente crítico, que é o da banda larga”. “As considerações sobre a banda larga sugerem que algo tão simples como ter acesso a uma determinada quantia de dinheiro na altura certa pode trazer enormes benefícios. Se feito de forma adequada, dar 100 dólares a alguém poderá servir para comprar paz de espírito. E essa paz de espírito permite a essa pessoa realizar muito mais coisas e a evitar erros muito dispendiosos”, escrevem.

Considerando que estamos perante uma reconceptualização radical das políticas de pobreza, Mullainathan e Shafir defendem ainda que as pesquisas que levaram a cabo reconhecem as múltiplas formas mediante diferentes comportamentos estão relacionados. “Compreendemos que a renda, a alimentação ou os gastos com educação fazem parte do orçamento doméstico. Mas, e em vez de olharmos para a educação, a saúde, as finanças e os cuidados com os filhos como problemas separados, temos de reconhecer que todos eles constituem parte integrante da capacidade de banda larga de cada pessoa. E tal como um agravamento dos impostos pode causar estragos no orçamento de cada um, o mesmo pode acontecer com o imposto da banda larga, o qual pode criar falhas graves nos diversos domínios com os quais as pessoas têm de lidar”.

Assim, os autores defendem que ao ser possível “consertar” alguns destes estragos, é possível vislumbrar consequências de grande alcance. Os cuidados com os filhos podem ser mais do que isso, tal como o produto financeiro adequado pode ir mais além do que simplesmente criar poupanças para dias chuvosos. Cada uma destas propostas pode libertar banda larga, aumentar o QI, reafirmar o autocontrolo, melhorar a clareza de pensamento e até contribuir para que se durma melhor.

E se não está convencido, os autores aconselham vivamente a leitura do seu livro, repleto de dados que comprovam a sua teoria.

Editora Executiva