Perturbação nas interacções sociais, divisão digital crescente, mudanças abruptas nos mercados e no comportamento dos consumidores, perda de educação e empregos, desafios à democracia e às relações internacionais. Estas são algumas das consequências mais visíveis da pandemia global analisadas no Relatório de Riscos Globais 2021 publicado, como habitualmente, pelo Fórum Económico Mundial. A “desigualdade digital”, a “desilusão da juventude” e a “erosão da coesão social” – foram igualmente identificadas como ameaças críticas a curto prazo
POR HELENA OLIVEIRA

São várias as fracturas sociais a que o mundo deverá estar atento nos tempos mais próximos, mas também nos mais longínquos. Riscos emergentes e persistentes para a saúde humana, o aumento do desemprego, o alargamento das clivagens digitais, a desilusão juvenil e a fragmentação geopolítica deixarão a sua marca. O mundo empresarial, por seu turno, arrisca-se a um abanão desordenado que poderá excluir um número significativo de trabalhadores e empresas dos mercados. A degradação ambiental – que continua a ser uma ameaça existencial para a humanidade – corre o risco de se intersectar com as fracturas da sociedade e dar origem a consequências ainda mais graves.

O cenário não é animador e estas são as principais conclusões da 16ª edição do Relatório de Riscos Globais 2021 do Fórum Económico Mundial (FEM), publicado a 19 de Janeiro último, que analisa os riscos a curto, médio e longo prazo que marcarão a nossa existência nos tempos vindouros. Mas, e apesar de as notícias não serem as melhores, os autores do relatório defendem que, e com o mundo mais sintonizado com um verdadeiro e inesperado risco, há lições que podem ser usadas para reforçar a resposta e a resiliência futuras. Em 2020, o risco de uma pandemia tornou-se realidade. E enquanto governos, empresas e sociedades tentam lidar com a Covid-19, a coesão social torna-se mais importante que nunca.

Porém, e antes de partilharmos o essencial destes riscos globais, recuemos até 2006, ano em que o Global Risks Report fez soar o alarme sobre pandemias e outros riscos relacionados com a saúde. Nesse ano, o relatório advertiu que uma “gripe letal, a sua propagação facilitada por padrões de viagem globais e não contida por mecanismos de alerta insuficientes, apresentaria uma ameaça aguda”. Os impactos incluiriam “graves prejuízos para as viagens, turismo e outras indústrias de serviços, bem como para as cadeias de produção e fornecimento a retalho”, enquanto “o comércio global, os apetites de risco dos investidores e a procura de consumo” poderiam ver prejuízos a longo prazo. Um ano depois, o relatório apresentou um cenário pandémico que ilustrava, entre outros efeitos, o papel amplificador das “infodemias”, com as edições subsequentes a sublinharam a necessidade de colaboração global face à resistência antimicrobiana (8ª edição, 2013), a crise do Ébola (11ª edição, 2016), ameaças biológicas (14ª edição, 2019), e sistemas de saúde sobrecarregados (15ª edição, 2020), entre outros tópicos.

Em suma e em 2020, as previsões feitas há 14 anos tornaram-se reais com o deflagrar da pandemia global. “À medida que os governos, as empresas e as sociedades analisam os danos infligidos durante o último ano, o reforço da previsão estratégica é agora mais importante do que nunca”, pode ler-se no Prefácio do estudo. E, de uma forma cautelosamente optimista, os seus autores acreditam que, dada a dimensão do risco gigantesco veiculado pela pandemia que abalou o mundo inteiro, existe uma oportunidade de alavancar a atenção e encontrar formas mais eficazes de identificar e comunicar riscos vindouros por parte dos decisores.

Todavia, e com a análise do Fórum Económico Mundial a centrar-se nos riscos e consequências do agravamento das desigualdades e da fragmentação da sociedade, de sublinhar também que as disparidades nos resultados de saúde, tecnologia, ou oportunidades de mão-de-obra constituem resultado directo da dinâmica criada pela pandemia. Noutros casos, as divisões societais já existentes alargaram-se, fragilizando as redes de segurança, já por si fracas e forçando as estruturas económicas para além das suas capacidades.

A mitigação destas lacunas dependerá das acções tomadas na sequência da Covid-19 e delas dependerá também a “reconstrução” com vista a um futuro inclusivo e acessível. Todavia, é igualmente certo que a inacção sobre as desigualdades económicas e a divisão da sociedade poderão atrasar ainda mais a acção sobre as alterações climáticas – ainda que esta permaneça, e de forma crescente, como uma ameaça existencial para a humanidade.

O relatório alerta para o facto de que a crescente fragmentação da sociedade terá, decerto, consequências graves numa era de riscos económicos, ambientais, geopolíticos e tecnológicos agravados. O fosso entre os “ricos” e os “pobres” aumentará ainda mais se o acesso e a capacidade tecnológica continuarem a ser díspares. E, no que respeita aos jovens de todo o mundo, que têm enfrentado pressões excepcionais ao longo dos últimos 10 anos, estão agora ainda mais vulneráveis e em vias de perder completamente as oportunidades da próxima década.

Já as empresas, a sofrerem de várias pressões económicas, tecnológicas e reputacionais no momento presente correm, em muitos casos, sérios riscos de desaparecerem, levando com elas muitos postos de trabalho. Também os governos deverão encontrar um equilíbrio eficaz entre a gestão da pandemia e a contracção económica, criando ao mesmo tempo novas oportunidades fundamentais para a coesão social e a viabilidade das suas populações. De forma mais crítica, se as considerações ambientais – os principais riscos a longo prazo e mais uma vez – não forem combatidas a curto prazo, a degradação ambiental irá cruzar-se com a fragmentação da sociedade com consequências dramáticas. Se mal geridas, estas perturbações prejudicarão a capacidade dos decisores políticos e de outros líderes para agir em diferentes áreas de risco.

No geral, o relatório de este ano sublinha que os custos humanos e económicos imediatos provenientes da Covid-19 são já de gravidade extrema, ameaçando reduzir anos de progresso na redução da pobreza e da desigualdade e enfraquecer ainda mais a coesão social e a cooperação global. A perda de empregos, o agravamento da clivagem digital, as interacções sociais profundamente perturbadas e as mudanças abruptas nos mercados podem levar a consequências terríveis e à perda de oportunidades para uma grande parte da população global. As ramificações – sob a forma de agitação social, fragmentação política e tensões geopolíticas – moldarão a eficácia das respostas às outras principais ameaças da próxima década: ciberataques, armas de destruição maciça e, sobretudo, as alterações climáticas.

O Global Risks Report 2021 partilha os resultados do mais recente Inquérito sobre a Percepção dos Riscos Globais (GRPS, na sigla em inglês), no qual cerca de mil decisores pertencentes ao sector público, privado, à academia e à sociedade civil avaliam os riscos que o mundo enfrenta, seguido da análise das crescentes divisões sociais, económicas e sectoriais que deles decorrem. O relatório é concluído com propostas para reforçar a resiliência, tirando partido das lições da pandemia, bem como da análise histórica dos riscos. Vejamos as principais conclusões do inquérito e da análise elaborada pelo Fórum Económico Global.

Doenças infecciosas no topo dos riscos com maior impacto

Entre os riscos com maior probabilidade de agravamento nos próximos dez anos incluem-se os fenómenos climáticos extremos, as falhas na acção climática e os danos ambientais provocados pelo homem, em conjunto com a concentração de poder a nível digital – que originará uma enorme desigualdade e falhas relativas à cibersegurança.

Já os riscos com maior impacto na próxima década colocam as doenças infecciosas no topo, seguidas das falhas de acção climática e de outros riscos ambientais. O relatório do FEM inclui também como riscos de grande impacto as armas de destruição maciça, crises de subsistência, crises de endividamento e colapso de infra-estruturas informáticas. No que diz respeito ao horizonte temporal em que estes riscos se tornarão uma ameaça crítica para o mundo, as ameaças mais iminentes – ou seja, as mais prováveis nos próximos dois anos – incluem crises no emprego e nos meios de subsistência, um desapontamento generalizado por parte dos jovens, desigualdade digital, estagnação económica, danos ambientais causados pelo homem, erosão da coesão social e ataques terroristas.

Os riscos económicos surgem de forma proeminente num período de três a cinco anos e poderão incluir bolhas de activos, instabilidade de preços e crises de dívida, a par de riscos geopolíticos, incluindo relações interestatais e conflitos, bem como uma geopolitização dos recursos.

No horizonte de 5 a 10 anos, os riscos ambientais como a perda de biodiversidade, as crises dos recursos naturais e as falhas na acção climática continuarão a dominar, em conjunto com as armas de destruição maciça, os efeitos adversos da tecnologia e o colapso de Estados ou de instituições multilaterais.

Fragilidade económica e agravamento das divisões sociais

As disparidades existentes em termos de cuidados de saúde, educação, estabilidade financeira e tecnologia estão já a causar um impacto desproporcional em vários segmentos populacionais e em muitos países. A Covid-19 não só causou até agora mais de dois milhões de mortes em todo o mundo, como os impactos económicos e a longo prazo na saúde decorrentes da mesma a persistirem e a terem consequências devastadoras e ainda difíceis de estimar.

A onda de choque económico provocada pela pandemia – de acordo com o estudo, só no segundo trimestre de 2020 foram perdidas horas de trabalho equivalentes a 495 milhões de postos laborais – não só está a aumentar a desigualdade, como se estima que a recuperação, quando tiver início, será profundamente desigual. O estudo aponta também para o facto de apenas 28 economias terem crescido em 2020.

Quase 60% dos inquiridos do GRPS identificaram as “doenças infecciosas” e as “crises de subsistência” como as principais ameaças a curto prazo para o mundo. A perda de vidas e de meios de subsistência aumentará o risco de “erosão da coesão social”, também uma ameaça crítica a curto prazo identificada no GRPS.

Fosso digital alargado agrava fracturas sociais

A COVID-19 acelerou a Quarta Revolução Industrial, expandindo a digitalização da interacção humana, o comércio electrónico, a educação online e o trabalho remoto. Apesar de estas mudanças na sociedade no período pós-pandemia e prometerem enormes benefícios – a capacidade de teletrabalho e o rápido desenvolvimento de vacinas são dois exemplos -, por outro lado correm também o risco de criar e/ou exacerbar as desigualdades. Os inquiridos do GRPS classificaram a “desigualdade digital” como uma ameaça crítica a curto prazo. Um fosso digital cada vez maior pode agravar as fracturas sociais e minar as perspectivas de uma recuperação inclusiva. O progresso no sentido da inclusão digital é ameaçado pela crescente dependência digital, acelerando rapidamente a automação, supressão e manipulação de informação, bem como lacunas na regulação e nas competências e capacidades tecnológicas.

Os jovens e a era das oportunidades perdidas

Embora o “salto” digital tenha desbloqueado oportunidades para alguns jovens, muitos estão agora a entrar na força de trabalho numa “era glacial” de emprego, com os jovens adultos de todo o mundo a atravessar a sua segunda grande crise global numa só década. Expostos à degradação ambiental, às consequências da crise financeira, ao aumento da desigualdade e às perturbações decorrentes da transformação industrial, esta geração enfrenta sérios desafios relativamente à sua educação, perspectivas económicas e saúde mental.

Segundo o GRPS, o risco de “desilusão juvenil” está a ser largamente negligenciado pela comunidade global, mas tornar-se-á uma ameaça crítica para o mundo a curto prazo. Ganhos sociais difíceis de obter poderão ser suprimidos se a geração actual não tiver vias adequadas para oportunidades futuras e muito provavelmente a fé será perdida relativamente às instituições económicas e políticas de hoje.

O clima continua a ser um risco iminente à medida que a cooperação global enfraquece

As alterações climáticas – às quais ninguém está imune – continua a ser um risco catastrófico. E, como alerta o relatório, uma mudança no sentido de economias mais verdes não pode ser adiada até que os choques da pandemia se atenuem. O “fracasso da acção climática” é o risco mais impactante e o segundo mais provável a longo prazo identificado no GRPS.

Por outro lado, as respostas à pandemia causaram novas tensões internas e geopolíticas que ameaçam a estabilidade global. A divisão digital e uma futura “geração perdida” – já anteriormente mencionadas – são susceptíveis de testar a coesão social a partir do interior das fronteiras – exacerbando a fragmentação geopolítica e a fragilidade económica global. Com os impasses e os pontos de ruptura a aumentar de frequência, os inquiridos do GRPS classificaram o “colapso do Estado” e o “colapso do multilateralismo” como ameaças críticas a longo prazo.

Fractura das relações interestatais” e “geopolitização” de recursos

As denominadas potências médias – Estados influentes que, em conjunto, representam uma parte maior da economia global do que os EUA e a China em conjunto – defendem, muitas vezes, a cooperação multilateral no comércio, diplomacia, clima, segurança e, mais recentemente, na saúde global. Contudo, se as tensões geopolíticas persistirem, as potências médias terão de travar grandes batalhas para facilitar uma recuperação global – numa altura em que a coordenação internacional é essencial – e tentarão reforçar a resistência contra crises futuras. Os inquiridos do GRPS assinalam uma perspectiva geopolítica desafiadora marcada pela “fractura das relações interestatais” e “geopolitização de recursos” – ambas previstas como ameaças críticas para o mundo dentro de três a cinco anos.

Economia pós-pandemia: da urgência à recuperação

À medida que as economias emergem do choque da Covid-19, as empresas enfrentam um abalo sem precedentes, com tendências preexistentes a ganhar um novo ímpeto com a crise: agendas centradas nacionalmente para conter perdas económicas, transformação tecnológica e mudanças na estrutura social – incluindo os comportamentos dos consumidores, a natureza do trabalho e o papel da tecnologia tanto no trabalho como em casa – são as mais vísiveis.

Os riscos empresariais decorrentes destas tendências foram ampliados pela crise e incluem a estagnação nas economias avançadas e a perda de potencial nos mercados emergentes e em desenvolvimento, o colapso das pequenas empresas, o alargamento do fosso entre empresas de maior e menor dimensão e a redução do dinamismo do mercado – sem esquecer o agravamento da desigualdade – tornando mais difícil alcançar um desenvolvimento sustentável a longo prazo. Com os governos ainda a deliberar sobre a forma de se passar da emergência para a recuperação, e com as empresas a anteciparem um cenário empresarial alterado há, contudo, oportunidades para investir num crescimento mais inteligente, limpo e inclusivo que poderá melhorar a produtividade e a concretização das agendas sustentáveis.

Há que trilhar o caminho certo para gerir o risco e aumentar a resiliência

Apesar de alguns exemplos notáveis de determinação, cooperação e inovação, a maioria dos países viu-se confrontado com uma difícil gestão de crise durante a pandemia. Embora seja cedo para tirar ilações definitivas, esta edição do Relatório Global de Riscos reflecte já sobre o estado da “preparação global”, analisando quatro áreas-chave da resposta à Covid-19: autoridade institucional, financiamento do risco, recolha e partilha de informação e equipamento e vacinas.

De seguida, analisa as respostas a nível nacional – reconhecendo os vários pontos de partida para cada país – e retira lições de cinco domínios por excelência: tomada de decisões governamentais, comunicação pública, capacidades do sistema de saúde, gestão de confinamentos e assistência financeira aos mais vulneráveis.

Contudo, se os ensinamentos desta crise apenas informarem os decisores sobre formas de se prepararem melhor para a próxima pandemia – em vez de melhorar os processos, capacidades e cultura de risco – o mundo continuará a “planear a última crise em vez de antecipar a próxima”.

De acordo com o FEM, a resposta à Covid-19 oferece quatro oportunidades de governação para reforçar a resiliência global dos países, das empresas e da comunidade internacional: (1) a formulação de quadros analíticos que tenham uma visão holística e sistémica relativamente aos impactos do risco; (2) investir em “campeões do risco” de alto perfil para encorajar a liderança nacional e a cooperação internacional; (3) melhorar as comunicações de risco e combater a desinformação; e (4) explorar novas formas de parcerias público-privadas na preparação para o risco.

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