No seguimento do lançamento, na AESE Business School, do Manual da Doutrina Social da Igreja, coordenado pelo Monsenhor Martin Schlag e que apresenta uma síntese de muitos dos desafios globais que o mundo enfrenta, o também especialista em Ética falou com o VER não só sobre a obra em causa, mas ainda sobre a ausência de valores no mundo dos negócios ou da doença que confunde os meios com os fins e que é comum nas empresas
POR HELENA OLIVEIRA

Qual foi o seu principal objectivo ao escrever o “Manual da Doutrina Social da Igreja: um guia para os cristãos no mundo” seguindo a estrutura do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, mas interpretando os seus tópicos principais de uma forma mais sucinta e acessível?

A doutrina social da Igreja e o pensamento católico constituem um conhecimento rico e equilibrado, o qual pode ser muito útil na política, nos negócios e na sociedade em geral. E, na verdade, apesar de o Compêndio ser um livro belíssimo, é difícil de ler e ainda mais de memorizar. Tentei utilizá-lo nas minhas aulas com os meus alunos, mas era demasiado complicado. E assim recordei-me de como foram úteis os sumários do Cardeal Josef Hoeffner quando eu era jovem e propus uma súmula similar a um Catecismo.

Este Manual da Doutrina Social da Igreja opta por um formato pergunta-resposta e tal como escreve o Cardeal Peter K.A. Turkson no seu prefácio “é dedicado a cristãos e não cristãos”. Até que ponto acredita que o mesmo pode ajudar as pessoas em geral a abordar as nossas principais questões sociais?

Desde a encíclica Pacem in Terris de João XXIII [em 1963] que os papas direccionam as suas encíclicas sociais, as suas mensagens sobre a paz e outros documentos relacionados com questões sociais para todas as pessoas de boa vontade. E sendo claro que a Revelação é uma importante orientação e uma luz na razão natural dos cristãos, também é verdade que muitos ensinamentos constantes da doutrina social da Igreja são baseados numa herança de valores e conhecimentos prático que partilhamos com todas as tradições religiosas e filosofias humanistas. É aquilo que C.S. Lewis denomina como TAO: os princípios éticos que fundamentam e limitam o exercício de poder. E são estes fundamentos comuns que permitem a comunicação entre as nações, as religiões e as culturas tão necessária no nosso mundo globalizado.

Escrito “sob o olhar” do Conselho Pontifício Justiça e Paz, este Manual da Doutrina Social da Igreja aborda também duas recentes encíclicas papais – a Caritas in Veritate e a Laudato Si’ [sobre as quais o VER escreveu]. A primeira e como sabemos escrita pelo Papa Emérito Bento XVI e publicada em 2009, a qual aborda vários temas relacionados com a globalização e o capitalismo predatório, entre muitos outros, e a segunda, já escrita pelo Papa Francisco e considerada como a “primeira encíclica ambiental da História”. Com tantas questões sociais “modernas” e preocupantes, quais as que foram eleitas para vigorar neste manual e porquê?

Este Manual incorpora os novos documentos dos papas que menciona acima na estrutura do Compêndio. E posso-lhe manifestar a minha surpresa quanto à encíclica sobre o ambiente, a Laudato Si’, a qual considerobastante conservadora nos seus ensinamentos morais: reforça, repete e desenvolve as declarações de João Paulo II e, em particular, as de Bento XVI. Para além do texto sobre o magistério,o CardealTurkson também me encorajou a incluir novos tópicos que surgiram depois de o Compêndio ter sido publicado [em 2005]. Entre os vários, posso destacar a imigração, o envelhecimento, os media sociais, a biotecnologia e a ideologia de género. E foram escolhidos devido aos desafios que colocam à caridade e à fé.

Tendo em conta alguns dos tópicos que mencionou, como a imigração ou o envelhecimento, por exemplo, e na sua perspectiva, o que podemos fazer, enquanto sociedade, para tentar minorar estes problemas globais que parecem ser infinitamente “maiores” do que nós somos?

Uma vida que merece ser vivida terá sempre tópicos que são maiores do que nós e que não poderão ser resolvidos ao longo da nossa própria vida. E confiamos nas gerações futuras para continuarem o bom trabalho. O que Deus nos pede é que plantemos boas sementes e que as deixemos crescer, não nos pedindo necessariamente para as colher. Outros fá-lo-ão por nós. O que eu considero urgente é a formação de líderes políticos verdadeiramente cristãos que sejam firmes na sua fé, que tenham as competências necessárias para lidar com as questões políticas, económicas e sociais e que possuam competências de liderança necessárias para a arena política. Tenho a impressão que existem muito poucos com estas características e que esta realidade é um fracasso da Igreja e do seu catecismo.

A minha questão seguinte era exactamente sobre os líderes globais. As tensões, conflitos e crises que temos vindo a testemunhar em particular na última década mantêm-se sem solução e o mundo está agora menos pacífico do que há dez anos. Que tipo de liderança seria urgente para tornar o mundo um local melhor?

Precisamos de líderes que possam entusiasmar os seus pares com um projecto claro que seja fraterno (e sororal) e, em simultâneo, que seja aberto à transcendência. Sem fé e religião, as sociedades não são capazes de produzir a quantidade de solidariedade e coesão necessárias para conduzir a humanidade na direcção do desenvolvimento humano integral. A religião tem, e indubitavelmente, também o seu lado negro e perigoso, mas acreditar num Deus Cristão de amor e perdão é um fundamento poderoso para a dignidade humana.

É igualmente professor de Ética, um conceito que raramente rima com o mundo dos negócios. Com um conjunto significativo de lições não apreendidas, o que pensa ser fundamental para instilar mais valores e ética no mundo empresarial?

As empresas podem facilmente sofrer de uma “teleopatia”, uma doença que confunde os meios com os fins, a qual conduz ao “sucesso” de curto prazo mas também a catástrofes de longo prazo. E são tantos os exemplos recentes, desde a Enron à Wells Fargo, que não é preciso mencionar os nomes. A ética nos negócios é um antídoto que mais líderes deveriam tomar para prevenir a teleopatia.

Mas e o que dizer dos CEO e líderes que, no geral, afirmam “dar de volta à sociedade”, algo tão comum na actualidade mas cuja intenção não passa disso mesmo?

Não é certamente suficiente dar donativos provenientes de dinheiro ganho de forma corrupta. Os líderes de negócios devem esforçar-se para produzir bens que sejam realmente bons, serviços que realmente sirvam e riqueza que constitua um valor sustentável. A gestão, no sentido estrito da palavra, é uma profissão e uma prática que deverá criar boas instituições e trabalho com significado.

O recente documento publicado em Maio pelo Vaticano – “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones: considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do actual sistema económico-financeiro” – e que consiste numa crítica às finanças predatórias, especulativas, abusivas, injustas e perigosas obriga-nos a reflectir se realmente existe ainda esperança que, um dia, o mundo financeiro poderá ser uma indústria “nobre”. Qual a sua opinião?

Não tenho dúvidas que os lados mais nobres da natureza humana irão prevalecer. E também porque acredito que, no final, um sistema imoral entrará sempre em colapso e será substituído por instituições solidamente éticas.

Editora Executiva