Encarar a violência como um processo contagioso que se propaga não é uma metáfora, mas sim uma realidade comprovada cientificamente. Um novo modelo, desenvolvido por um médico especializado em doenças infecciosas, está a ter resultados surpreendentes. Se a violência puder ser reequacionada através da lente do contágio enquanto doença, então pode ser tratada e evitada como qualquer outra enfermidade
POR HELENA OLIVEIRA

“A violência é uma doença contagiosa que podemos tratar através de métodos de controlo de epidemias”

Ao longo dos últimos 15 anos, a organização sem fins lucrativos, Cure Violence, tem vindo a comprovar, de forma empírica, a teoria de que a violência se comporta como uma doença. E o conceito da violência enquanto uma epidemia não é uma metáfora, mas antes um facto científico. Um surto de cólera que ocorreu na Somália mostra a mesma curva epidemiológica dos assassinatos em massa cometidos no Ruanda em 1994. Da mesma forma, os números de mortes por assassínio nas cidades norte-americanas, que graficamente se parecem com uma onda “sentada” em cima de uma outra onda maior, são igualmente similares aos surtos de tuberculose que afectaram a Europa há alguns séculos. A violência possui, assim, as características de uma doença infecciosa, na forma como se transmite de pessoa para pessoa e como se propaga, de bairro para bairro, de comunidade para comunidade e ao longo de todo o espectro da violência.

Os erros de diagnóstico da violência, de acordo com o médico Gary Slutkin, fundador e director executivo da organização sem fins lucrativos Cure Violence (considerada uma das 100 melhores ONG de 2013 pelo Global Journal), são, em termos de perspectiva histórica, muitas vezes considerados de forma tão arcaica quanto as “soluções” que eram utilizadas para tratar a peste – movimentos de autoflagelação, viúvas suspeitas de bruxaria afogadas ou queimadas vivas, comunidades judaicas utilizadas como bodes expiatórios e completamente exterminadas – e que podem ser actualmente encaradas como paralelismos no aumento crescente de acusações, nas prisões de alta segurança e nas encarcerações em massa. Para este especialista em doenças infecciosas, está na altura de inverter os danos causados por estes diagnósticos erróneos. Se a violência puder ser (re)compreendida através da lente do contágio enquanto doença, então pode ser tratada e evitada como qualquer outra enfermidade.

Este é o ponto de partida para a entrevista que se segue, publicada na Stanford Social innovation Review, realizada a Gary Slutkin. Todavia, dada a inovação da abordagem, bem como os surpreendentes resultados que tem tido, o VER procurou acrescentar, às respostas do fundador, alguma informação adicional.

[Porque respeitamos o acordo que possuímos com a revista de Stanford e para diferenciar o tipo de informação, as respostas do fundador serão publicadas a azul e os dados acrescentados pelo VER a preto].
© Stanford Social Innovation Review

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Enquanto fundador e director executivo da Cure Violence, o Dr. Gary Slutkin aplica estratégias baseadas na ciência para impedir a violência antes que esta se dissemine em bairros significativamente afectados pela mesma – uma abordagem de saúde para a redução da violência que o Departamento de Justiça norte-americano e os Centros para o Controlo e Prevenção de Doenças já validaram estatisticamente. Desde o seu lançamento no Garfield Park em Chicago no ano 2000, o modelo tem vindo a ser replicado em oito países e 21 cidades, incluindo numa comunidade em Brooklin que, muito recentemente, anunciou uma realidade sem precedentes: 363 dias sem tiros nem mortes.

Racheal Chong, fundadora e CEO da Catchafire, uma plataforma inovadora que liga ONGs a profissionais que pretendem fazer voluntariado, e Melissa Fleming, responsável pelos conteúdos da plataforma em causa, entrevistaram, para a revista de Stanford, o “inventor” deste modelo inovador e absolutamente surpreendente, Gary Slutkin.

Como se envolveu nesta temática de redução da violência?
Eu sou médico e com formação específica em doenças infecciosas. E passei quase toda a minha carreira a trabalhar em África em epidemias infecciosas. Trabalhei em centros de controlo da tuberculose em campos de refugiados na Somália e numa enorme epidemia de cólera que teve ali lugar na altura. Estes dois problemas ensinaram-me a desenvolver estratégias para controlar situações que tenham características de propagação ou contágio.

Depois de três anos na Somália, trabalhei no Programa Global contra a SIDA em parceria com a Organização Mundial de Saúde. Iniciei e criei estratégias em 13 países que se encontravam no centro da epidemia – na África central e oriental. E o que melhor aprendi foi como alterar comportamentos.

Quando voltei aos Estados Unidos em 1995, tomei conhecimento sobre a epidemia de violência que grassava no meu país, essencialmente através dos meios de comunicação social. Mas, de seguida, comecei a questionar um número significativo de pessoas sobre que medidas estavam a ser tomadas para mitigar esta realidade e nada do que ouvi me parecia ser eficaz, em termos de alteração de comportamentos. O problema parecia “emperrado” e sem qualquer tipo de estratégia.

A violência é a principal causa de morte nos Estados Unidos para pessoas com menos de 34 anos de idade. As taxas de homicídio nos Estados Unidos são 5 a 20 vezes superiores comparativamente às existentes na maioria dos demais países industrializados.

Ao longo de cinco anos, trabalhámos num processo de desenvolvimento de estratégia, analisando as características da violência: onde acontecia, como acontecia, que tipo de tendências oferecia, quem a praticava e o que parecia ter potencial para evitar os conflitos. E rapidamente percebemos que a violência tinha um comportamento muito similar ao de um processo contagioso. Com esta ideia em mente, implementámos, como experiência, uma estratégia no terreno, corria o ano 2000, aplicando todos os nossos recursos num só bairro – num distrito recordista em termos de violência no país da altura. O resultado cifrou-se numa diminuição em 67% do número de tiroteios e mortes, com ondas consecutivas de “zero tiroteios” ao longo de meses, o que, no bairro em causa, constituía uma situação inédita.

Todavia, nem toda a gente que tentava lidar com o mesmo problema há vários anos ficou satisfeito com esta nova abordagem, pois representava uma disrupção total do pensamento habitual, o qual se centrava apenas “nas pessoas más” ou “na resolução dos problemas sociais antes de podermos lidar com a violência”. Mas nós estávamos apenas a encarar e a tratar a violência como um processo infeccioso.

© CureViolence.org

O que nos pode dizer mais especificamente sobre a vossa estratégia e abordagem?
No início, contávamos apenas com o apoio de trabalhadores comunitários e com uma campanha de educação pública. Este conceito de comunidade envolvia colaboradores que possuíam um background similar aos que estavam em risco – um conceito que “eu pedi emprestado” em quase tudo o que fiz em termos de saúde pública. Por exemplo, com o controlo da tuberculose em campos de refugiados, contratávamos refugiados que pudessem alcançar outros refugiados. Esta tecnologia de saúde pública confere credibilidade, acesso e compreensão. As populações-alvo conhecem os colaboradores comunitários e confiam neles, pois partilham experiências e histórias similares. Os colaboradores têm formação em alterações de comportamento, sendo que de seguida trabalham com indivíduos em risco, e com os seus amigos, ao longo de semanas ou meses para alterar a forma como pensam.

A componente de educação pública da Cure Violence tem como objectivo desafiar e alterar as normas prevalecentes em torno do conceito de violência. As estratégias de marketing social para alterações de comportamento – desde a publicidade aplicada pelo sector privado, às técnicas de marketing e comunicação utilizadas nas iniciativas de mudança social e comportamental – desempenharam um papel de relevo nas vitórias da saúde pública ao longo do século passado. As campanhas de vacinação em todo o mundo que contribuíram para a erradicação do sarampo, da rubéola, do tétano e da difteria, por exemplo, apoiaram-se fortemente na distribuição de informação e em técnicas de comunicação efectivas.

Esta componente de educação – a comunicação com uma tónica de alteração de comportamentos – tem como objectivo atingir, de forma ampla e aprofundada, os esforços desenvolvidos pela Cure Violence no que respeita a ajudar a mudar as normas enraizadas nas comunidades em causa. Um dos resultados mais surpreendentes de um estudo elaborado há três anos pela Johns Hopkins University sobre uma réplica do modelo de Gary Slutkin em Baltimore, foi o facto de – e para além do declínio significativo demonstrado estatisticamente no que respeita a homicídios e a tiroteios não fatais em quatro bairros historicamente muito violentos (McElderry Park, Elwood Park, Madison-Eastend, Cherry Hill) – os efeitos positivos (menos tiroteios e/ou mortes ou ambos) se terem difundido para as comunidades vizinhas, bem como junto de pessoas que não estavam directamente envolvidas no programa.

Em 2004, acrescentámos uma nova categoria de colaboradores aos quais chamamos “interruptores” – pois a sua missão é a de detectar e interromper eventos que poderão terminar em tiros e/ou mortes. Quando se está a inverter uma epidemia, é preciso saber o local onde a transição está a ocorrer. O que é uma forma inovadora de se pensar. As pessoas geralmente afirmam que é necessário trabalhar com os mais novos para que quando crescerem não façam isto ou aquilo, mas essa não é a melhor forma de inverter uma epidemia. É crucial que se vá ter directamente com as pessoas que estão prestes a iniciar um tiroteio, hoje ou amanhã, e interagir com elas quando estão zangados ou a planearem algum ataque. Assim, há que contratar pessoas que funcionam como uma espécie de “anticorpos” a esta raiva e nas quais os potenciais atiradores confiem.

Estes agentes comunitários, em conjunto com os “interruptores” de violência, trabalham na comunidade durante as horas em que, de acordo com as estatísticas, é mais provável que ocorram situações de violência. Esquadrinham a área, estabelecendo relações com os residentes e com os indivíduos que em maior risco estão de se tornarem ou perpetradores ou vítimas de tiroteios e mortes. E é da sua responsabilidade manterem-se informados sobre tudo o que se passa no interior da comunidade.

Os agentes comunitários e os “interruptores” de violência têm também como missão intervir em situações potencialmente violentas para reduzir a possibilidade de tiroteios. Estes colaboradores têm também a capacidade de “aguentar” com uma “carga” de 15 a 20 participantes, os quais são acompanhados individualmente na sua mudança de vida. Ao fazerem corresponder estes participantes e respectivas famílias a oportunidades educacionais, a formação profissional, a serviços de saúde mental, a tratamentos devido a abuso de substâncias ilícitas, entre outro tipo de apoios, estes colaboradores ajudam os indivíduos a identificar opções alternativas a uma vida movida por crimes e violência. A sua presença determinada no interior da comunidade enfraquece a atracção e o “apelo” dos gangues e  da cultura de vida na rua, responsável, muitas vezes, pela perpetuação da violência

Neste momento, existe um quadro de trabalhadores completamente novo que ajuda a manter este sistema que tem como base uma estratégia de saúde. Temos os “interruptores” de violência, os agentes de alteração de comportamentos, os supervisores, os gestores de prevenção de violência ao nível da comunidade e os coordenadores de educação pública.

Estão a trabalhar em conjunto com outras organizações?
Estamos a trabalhar estreitamente com a Robert Wood Johnson Foundation, a maior fundação na área da saúde nos Estados Unidos e com muitas outras fundações a nível local. Estamos também a cooperar com o Departamento de Justiça e com a Conferência de Mayors norte-americanos. No que respeita às cidades, estabelecemos parcerias com os departamentos de saúde e com as “câmaras municipais” (Mayors’ ofices). Em Baltimore, Nova Iorque, Kansas City, New Orleans e em outras cidades, os departamentos de saúde estão a liderar os esforços, trabalhando com grupos comunitários. 

Devido à sua formação, experiência e lugar cativo no interior das comunidades, o sector da saúde tem uma capacidade por excelência de intervir para acabar com a violência de uma forma que nenhum outro sector domina. O sector da saúde precisa de aumentar o seu papel de extrema relevância na interrupção, prevenção e tratamento à exposição da violência.

Qual é o vosso maior desafio?
O principal desafio nos Estados Unidos é ultrapassar a ideia de que aqueles que cometem violência são pessoas “más” e de que a melhor forma para responder à violência é através do castigo. Mas esta noção está igualmente a sofrer transformações. Adicionalmente, a maioria das pessoas não conhece a ciência subjacente ao motivo de as pessoas agirem violentamente. As pessoas adquirem estes comportamentos de forma inconsciente através da exposição – ou seja, através de os testemunharem e de os encararem como modelos, ou através da vitimização. O que significa, a nosso ver, que as pessoas adquirem a violência de uma forma similar àquela que apanhamos uma gripe, com excepção que o fazem através do cérebro e não de mecanismos respiratórios – o que faz com que o problema se continue a propagar numa comunidade como um processo contagioso. Se conseguirmos perceber que as pessoas se tornam violentas através de um processo de contágio e que as pessoas que são violentas têm um problema de saúde, então esta abordagem de controlo da doença faz ainda mais sentido.

Como vê o papel da Cure Violence no futuro?
Estamos a trabalhar agora na edificação de uma rede de investigadores e de organizações para melhorar e implementar o modelo a uma escala mais significativa. A maioria das cidades que está a utilizar esta abordagem posiciona-se ainda no patamar dos 25% de implementação, sendo que a ideia é alcançar benefícios muito maiores com mais apoios. Precisamos igualmente de passar a palavra sobre a ciência para que exista uma compreensão mais generalizada daquilo que sabemos agora sobre violência e que não sabíamos anteriormente.

A Cure Violence  é uma organização, mas é também uma ideia: a violência é uma doença contagiosa que podemos tratar através de métodos de controlo de epidemias. Estamos a abordar a violência através de um ângulo novo: o da saúde. E a solução com base na saúde está a funcionar. E acredito que todos nós subestimamos o poder da abordagem de problemas através da lente da saúde e que teremos comunidades muito mais seguras e saudáveis se aproveitarmos melhor este poder.

Copyright © 2014.Stanford Social Innovation Review. Republicado com permissão.

Nota: Os resultados até agora alcançados com o modelo desenvolvido pela Cure Violence poderão ser consultados aqui

Para assistir a um documentário que retrata a realidade da Cure Violence, clique aqui

O custo económico da violência
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A violência não só tem um impacto negativo nas oportunidades daqueles que estão directamente envolvidos numa situação violenta – os custos hospitalares, os tratamentos médicos, as oportunidades perdidas, as investigações e os custos judiciários – como também prejudica significativamente o potencial de crescimento de comunidades inteiras

Os ferimentos por armas de fogo têm custos muito mais elevados do que qualquer outro tipo de ferimento. Estima-se que, nos Estados Unidos, sejam gastos cerca de 100 mil milhões de dólares em ataques com armas de fogo, o que representa cerca de 1,2 milhões de dólares por tiroteio, com os custos médios para tratamento de uma vítima a rondarem os 45 mil dólares. Os custos com a justiça criminal por homicídio rondam os 183 mil dólares ao que se juntam mais 35,600 dólares por cada agressão com arma de fogo.

Adicionalmente, os custos psicológicos da violência contribuem também para este “lodaçal” económico. As crianças que testemunham actos de violência têm maior propensão para uma fraca performance escolar, para sofrerem de desordens cognitivas e emocionais, ausência de motivação e para serem, elas próprias, mais susceptíveis à violência. A ansiedade e o sofrimento decorrentes destas tragédias resultam em anos “desaparecidos”, em salários perdidos e em oportunidades limitadas.

Aqueles “infectados” pela violência têm uma enorme dificuldade em quebrar o ciclo, independentemente de estarem a lidar com julgamentos e limitações sociais ou com a inexistência de uma oportunidade para percorrerem um caminho alternativo. No livro de Michelle Alexander , “The New Jim Crow”, é comprovado que 70% dos prisioneiros libertados acabam por voltar ao regime de custódia nos três anos seguintes e que muitos destes indivíduos  voltam à prisão nos três meses seguintes à sua libertação. E o custo da violência das comunidades que os acolhem é, na maioria das vezes, o mais surpreendente.

Ainda mais perturbador do que o preço imediato a pagar por esta epidemia é o impacto que a violência tem no potencial económico que os bairros que por ela foram contaminados por contágio. Geralmente, as comunidades que sofrem de surtos epidémicos elevados de violência são também as mais economicamente deprimidas: prédios inteiros abandonados, negócios fechados e, naturalmente, ausência de oportunidades de emprego.

As empresas têm medo de investir num bairro com potencial de compra limitado, com falta de segurança e onde os preços dos seguros são elevados e o potencial para o sucesso é baixo.

Esta realidade afecta bairros e até cidades inteiras e tem de ser abordada não só no interior das comunidades, como no seu exterior. A diminuição da violência resultará num aumento das receitas de impostos, decorrentes de uma valorização do preço dos imóveis e do crescimento dos negócios. Mas antes de tal acontecer, há que salvaguardar as comunidades, curando-as da praga da violência.

Helena Oliveira

Editora Executiva