Encarar a violência como um processo contagioso que se propaga não é uma metáfora, mas sim uma realidade comprovada cientificamente. Um novo modelo, desenvolvido por um médico especializado em doenças infecciosas, está a ter resultados surpreendentes. Se a violência puder ser reequacionada através da lente do contágio enquanto doença, então pode ser tratada e evitada como qualquer outra enfermidade “A violência é uma doença contagiosa que podemos tratar através de métodos de controlo de epidemias”
Os erros de diagnóstico da violência, de acordo com o médico Gary Slutkin, fundador e director executivo da organização sem fins lucrativos Cure Violence (considerada uma das 100 melhores ONG de 2013 pelo Global Journal), são, em termos de perspectiva histórica, muitas vezes considerados de forma tão arcaica quanto as “soluções” que eram utilizadas para tratar a peste – movimentos de autoflagelação, viúvas suspeitas de bruxaria afogadas ou queimadas vivas, comunidades judaicas utilizadas como bodes expiatórios e completamente exterminadas – e que podem ser actualmente encaradas como paralelismos no aumento crescente de acusações, nas prisões de alta segurança e nas encarcerações em massa. Para este especialista em doenças infecciosas, está na altura de inverter os danos causados por estes diagnósticos erróneos. Se a violência puder ser (re)compreendida através da lente do contágio enquanto doença, então pode ser tratada e evitada como qualquer outra enfermidade. Este é o ponto de partida para a entrevista que se segue, publicada na Stanford Social innovation Review, realizada a Gary Slutkin. Todavia, dada a inovação da abordagem, bem como os surpreendentes resultados que tem tido, o VER procurou acrescentar, às respostas do fundador, alguma informação adicional. [Porque respeitamos o acordo que possuímos com a revista de Stanford e para diferenciar o tipo de informação, as respostas do fundador serão publicadas a azul e os dados acrescentados pelo VER a preto].
Enquanto fundador e director executivo da Cure Violence, o Dr. Gary Slutkin aplica estratégias baseadas na ciência para impedir a violência antes que esta se dissemine em bairros significativamente afectados pela mesma – uma abordagem de saúde para a redução da violência que o Departamento de Justiça norte-americano e os Centros para o Controlo e Prevenção de Doenças já validaram estatisticamente. Desde o seu lançamento no Garfield Park em Chicago no ano 2000, o modelo tem vindo a ser replicado em oito países e 21 cidades, incluindo numa comunidade em Brooklin que, muito recentemente, anunciou uma realidade sem precedentes: 363 dias sem tiros nem mortes. Racheal Chong, fundadora e CEO da Catchafire, uma plataforma inovadora que liga ONGs a profissionais que pretendem fazer voluntariado, e Melissa Fleming, responsável pelos conteúdos da plataforma em causa, entrevistaram, para a revista de Stanford, o “inventor” deste modelo inovador e absolutamente surpreendente, Gary Slutkin. Como se envolveu nesta temática de redução da violência? Depois de três anos na Somália, trabalhei no Programa Global contra a SIDA em parceria com a Organização Mundial de Saúde. Iniciei e criei estratégias em 13 países que se encontravam no centro da epidemia – na África central e oriental. E o que melhor aprendi foi como alterar comportamentos. Quando voltei aos Estados Unidos em 1995, tomei conhecimento sobre a epidemia de violência que grassava no meu país, essencialmente através dos meios de comunicação social. Mas, de seguida, comecei a questionar um número significativo de pessoas sobre que medidas estavam a ser tomadas para mitigar esta realidade e nada do que ouvi me parecia ser eficaz, em termos de alteração de comportamentos. O problema parecia “emperrado” e sem qualquer tipo de estratégia. A violência é a principal causa de morte nos Estados Unidos para pessoas com menos de 34 anos de idade. As taxas de homicídio nos Estados Unidos são 5 a 20 vezes superiores comparativamente às existentes na maioria dos demais países industrializados. Ao longo de cinco anos, trabalhámos num processo de desenvolvimento de estratégia, analisando as características da violência: onde acontecia, como acontecia, que tipo de tendências oferecia, quem a praticava e o que parecia ter potencial para evitar os conflitos. E rapidamente percebemos que a violência tinha um comportamento muito similar ao de um processo contagioso. Com esta ideia em mente, implementámos, como experiência, uma estratégia no terreno, corria o ano 2000, aplicando todos os nossos recursos num só bairro – num distrito recordista em termos de violência no país da altura. O resultado cifrou-se numa diminuição em 67% do número de tiroteios e mortes, com ondas consecutivas de “zero tiroteios” ao longo de meses, o que, no bairro em causa, constituía uma situação inédita. Todavia, nem toda a gente que tentava lidar com o mesmo problema há vários anos ficou satisfeito com esta nova abordagem, pois representava uma disrupção total do pensamento habitual, o qual se centrava apenas “nas pessoas más” ou “na resolução dos problemas sociais antes de podermos lidar com a violência”. Mas nós estávamos apenas a encarar e a tratar a violência como um processo infeccioso.
O que nos pode dizer mais especificamente sobre a vossa estratégia e abordagem? A componente de educação pública da Cure Violence tem como objectivo desafiar e alterar as normas prevalecentes em torno do conceito de violência. As estratégias de marketing social para alterações de comportamento – desde a publicidade aplicada pelo sector privado, às técnicas de marketing e comunicação utilizadas nas iniciativas de mudança social e comportamental – desempenharam um papel de relevo nas vitórias da saúde pública ao longo do século passado. As campanhas de vacinação em todo o mundo que contribuíram para a erradicação do sarampo, da rubéola, do tétano e da difteria, por exemplo, apoiaram-se fortemente na distribuição de informação e em técnicas de comunicação efectivas. Esta componente de educação – a comunicação com uma tónica de alteração de comportamentos – tem como objectivo atingir, de forma ampla e aprofundada, os esforços desenvolvidos pela Cure Violence no que respeita a ajudar a mudar as normas enraizadas nas comunidades em causa. Um dos resultados mais surpreendentes de um estudo elaborado há três anos pela Johns Hopkins University sobre uma réplica do modelo de Gary Slutkin em Baltimore, foi o facto de – e para além do declínio significativo demonstrado estatisticamente no que respeita a homicídios e a tiroteios não fatais em quatro bairros historicamente muito violentos (McElderry Park, Elwood Park, Madison-Eastend, Cherry Hill) – os efeitos positivos (menos tiroteios e/ou mortes ou ambos) se terem difundido para as comunidades vizinhas, bem como junto de pessoas que não estavam directamente envolvidas no programa. Em 2004, acrescentámos uma nova categoria de colaboradores aos quais chamamos “interruptores” – pois a sua missão é a de detectar e interromper eventos que poderão terminar em tiros e/ou mortes. Quando se está a inverter uma epidemia, é preciso saber o local onde a transição está a ocorrer. O que é uma forma inovadora de se pensar. As pessoas geralmente afirmam que é necessário trabalhar com os mais novos para que quando crescerem não façam isto ou aquilo, mas essa não é a melhor forma de inverter uma epidemia. É crucial que se vá ter directamente com as pessoas que estão prestes a iniciar um tiroteio, hoje ou amanhã, e interagir com elas quando estão zangados ou a planearem algum ataque. Assim, há que contratar pessoas que funcionam como uma espécie de “anticorpos” a esta raiva e nas quais os potenciais atiradores confiem. Estes agentes comunitários, em conjunto com os “interruptores” de violência, trabalham na comunidade durante as horas em que, de acordo com as estatísticas, é mais provável que ocorram situações de violência. Esquadrinham a área, estabelecendo relações com os residentes e com os indivíduos que em maior risco estão de se tornarem ou perpetradores ou vítimas de tiroteios e mortes. E é da sua responsabilidade manterem-se informados sobre tudo o que se passa no interior da comunidade. Os agentes comunitários e os “interruptores” de violência têm também como missão intervir em situações potencialmente violentas para reduzir a possibilidade de tiroteios. Estes colaboradores têm também a capacidade de “aguentar” com uma “carga” de 15 a 20 participantes, os quais são acompanhados individualmente na sua mudança de vida. Ao fazerem corresponder estes participantes e respectivas famílias a oportunidades educacionais, a formação profissional, a serviços de saúde mental, a tratamentos devido a abuso de substâncias ilícitas, entre outro tipo de apoios, estes colaboradores ajudam os indivíduos a identificar opções alternativas a uma vida movida por crimes e violência. A sua presença determinada no interior da comunidade enfraquece a atracção e o “apelo” dos gangues e da cultura de vida na rua, responsável, muitas vezes, pela perpetuação da violência Neste momento, existe um quadro de trabalhadores completamente novo que ajuda a manter este sistema que tem como base uma estratégia de saúde. Temos os “interruptores” de violência, os agentes de alteração de comportamentos, os supervisores, os gestores de prevenção de violência ao nível da comunidade e os coordenadores de educação pública. Estão a trabalhar em conjunto com outras organizações? Devido à sua formação, experiência e lugar cativo no interior das comunidades, o sector da saúde tem uma capacidade por excelência de intervir para acabar com a violência de uma forma que nenhum outro sector domina. O sector da saúde precisa de aumentar o seu papel de extrema relevância na interrupção, prevenção e tratamento à exposição da violência. Qual é o vosso maior desafio? Como vê o papel da Cure Violence no futuro? A Cure Violence é uma organização, mas é também uma ideia: a violência é uma doença contagiosa que podemos tratar através de métodos de controlo de epidemias. Estamos a abordar a violência através de um ângulo novo: o da saúde. E a solução com base na saúde está a funcionar. E acredito que todos nós subestimamos o poder da abordagem de problemas através da lente da saúde e que teremos comunidades muito mais seguras e saudáveis se aproveitarmos melhor este poder. Copyright © 2014.Stanford Social Innovation Review. Republicado com permissão. Nota: Os resultados até agora alcançados com o modelo desenvolvido pela Cure Violence poderão ser consultados aqui Para assistir a um documentário que retrata a realidade da Cure Violence, clique aqui
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Helena Oliveira
Editora Executiva