Quando, em 2010, foi dado o pontapé de saída para os preparativos do Mundial de 2014, o Brasil vivia tempos de promessas e euforias. Quatro anos passados, e depois de quase 12 mil milhões de dólares gastos naquele que ficará na história como o campeonato do mundo de futebol mais caro do planeta, o povo brasileiro mostra um cartão bem vermelho à diferença entre o Brasil da Copa e o Brasil de todos os dias
POR HELENA OLIVEIRA

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Dizer que Brasil e futebol são quase sinónimos não é um exagero. O desporto-rei, em conjunto como Carnaval, são dois eventos que andam sempre de mãos dadas com a identidade do próprio Brasil. Todavia e apesar de anfitrião da 20ª edição do campeonato do mundo de futebol, a disposição dos brasileiros não parece ser tão efusiva quanto o costume, antes pelo contrário. Ao longo do último ano, mais de um milhão de pessoas saiu, por diversas vezes, à rua, para demonstrar a sua fúria contra a corrupção, contra o aumento da inflação e, em particular, contra a ausência de investimentos governamentais nos serviços públicos como a saúde, a educação, os transportes, entre outros, já para não falar na desigualdade que grassa em uma das economias emergentes mais promissoras do mundo. De acordo com uma sondagem publicada a passada semana pelo Pew Research Center, o famoso think tank norte-americano, 72% dos brasileiros mostram-se insatisfeitos com o estado do seu país, uma percentagem que, há exactamente um ano, em 2013, não ultrapassava os 55%.

Mais preocupante ainda é o facto de os brasileiros demonstrarem níveis de optimismo bem inferiores face há quatro anos, apesar de a maioria ainda acreditar que o Brasil é ou irá ser uma das potências líderes do mundo. Todavia, e de acordo com o dossier especial publicado pelo Pew Research, as opiniões no que respeitam à economia nacional alteraram-se significativamente face há um ano: dois terços dos inquiridos afirmam que a outrora economia florescente do país está em má forma, face a apenas 32% que afirmam que a mesma está “bem”. Em 2013, as opiniões eram inversas: uma maioria de 59% acreditava que o país estava em boa forma económica contra apenas 41% com uma ideia contrária. Desde 2010, ano em que a Pew Research elaborou a primeira sondagem no país, que as avaliações da economia têm vindo a ser positivas.

Por outro lado, se o mundo acreditava que a Copa do Mundo seria motivo suficiente para os brasileiros esquecerem os seus problemas, a verdade é que o inverso aconteceu. Pelo contrário e a poucos dias do início do Campeonato do Mundo de Futebol, muitos brasileiros mostravam-se preocupados com o impacto deste no seu país. Cerca de seis em cada 10 respondentes (ou 61%) acreditam que o facto de o seu país ser anfitrião desta competição mundial é algo negativo, na medida em retira (ou retirou) investimentos preciosos para a construção de escolas, para a melhoria dos cuidados de saúde e de outros serviços públicos – uma temática comum aos protestos que têm vindo a varrer o país desde Junho de 2013. Em contrapartida, apenas 34% dos respondentes consideram que a Copa do Mundo, a qual o Brasil recebe pela primeira vez desde 1950 e que poderá atrair mais de 3,5 milhões de pessoas às 12 cidades nas quais decorrem os jogos, irá contribuir para criar mais empregos e ajudar a economia.

O cepticismo dos brasileiros no que respeita aos benefícios externos da organização do mundial é também mais elevado do que se poderia esperar: cerca de quatro em cada 10 pessoas afirmam que a imagem do Brasil sairá “esborratada” [para o mundo],enquanto uma percentagem similar (35%) está confiante que a mesma será uma ajuda para o futuro do país.

O inquérito levado a cabo pelo Pew Research Center revela também uma preocupação generalizada no que respeita à subida generalizada dos preços: para 85% dos respondentes este é o maior problema do país, com pelo menos dois terços a mostrarem-se igualmente incomodados com a inexistência de oportunidades de emprego e com o fosso entre ricos e pobres a acentuar-se crescentemente.

A juntar às preocupações económicas, amplas maiorias descrevem o crime (83%), os cuidados de saúde (83%), a corrupção política (78%) e a má qualidade das escolas (64%) como grandes problemas comuns ao país, desafios que não são novos, antes pelo contrário.

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Não “está dando tudo certo” para Dilma Rousseff
A presidente brasileira recebe uma avaliação esmagadoramente negativa na forma como tem lidado com as questões mais importantes para o país. E se é verdade que cerca de metade dos inquiridos afirma que Dilma está a ter uma influência positiva na forma como o Brasil está a ser gerido, existe um enorme contraste quando a sua prestação é comparada com a de Lula da Silva, o antecessor de Dilma no poder, e seu apoiante, face ao último ano da sua presidência. Em 2010, mais de oito em cada 10 brasileiros (84%) acreditavam no impacto positivo do seu presidente no Brasil. Mas e tal como Lula, Dilma recebe uma avaliação mais positiva por parte daqueles que têm menores rendimentos e níveis mais baixos de instrução. Mas enquanto a influência de Lula era positivamente percepcionada por maiorias pertencentes a todos os grupos demográficos, a actual presidente recebe uma nota negativa por parte da maioria dos brasileiros que têm o ensino secundário (70%) bem como dos que auferem rendimentos mais elevados (61%). As maiorias daqueles que têm a educação primária ou menos (56%) e rendimentos mais baixos (58%) afirmam que o impacto geral da presidente no país é positivo.

As opiniões da forma como Dilma Rousseff tem vindo a lidar com questões particulares são muito mais negativas comparativamente à avaliação geral do seu trabalho enquanto presidente do Brasil. Claras maiorias desaprovam a gestão da presidente em todos os nove temas que faziam parte do inquérito realizado pelo Pew Research Center: corrupção (86%), cuidados de saúde (85%), crime (85%), transportes públicos (76%), política externa (71%), educação (71%), preparativos para a Copa do Mundo (67%), pobreza (65%) e economia (63%).

Mais uma vez, e apesar de avaliação geral ser negativa, as piores apreciações no que respeita à presidência de Dilma surgem entre os mais afluentes, os que têm mais qualificações e os que vivem nas zonas urbanas.

Com piores avaliações face a 2010 estão também os grupos e instituições brasileiros. Menos de 50% dos inquiridos acreditam que o governo está a ter uma influência positiva no país, face a 75% em 2010. A polícia que, em 2010, gozava já de pouco apoio por parte da opinião pública, consegue resultados ainda mais negativos em 2014: a utilização de força excessiva nos protestos deste último ano e os muitos casos, extremamente mediatizados, de brutalidade policial contribuem para que apenas 33% dos brasileiros considerem a polícia como uma instituição que “faz bem” ao país, comparativamente a 53% em 2010. Quanto aos militares e aos media, também estes sofrem revezes em termos de apoio face a 2010. Apenas os líderes religiosos apresentam uma ligeira subida em termos de influência: de 67% em 2010 para 69% em 2014.

Cartão amarelo para a sustentabilidade
Em conjunto com o Comité Organizador Local (COL) da Copa do Mundo, a Fédération Internationale de Football Association (FIFA) tem vindo a anunciar, há já um conjunto de anos, o seu compromisso com a responsabilidade social e com a sustentabilidade. Em particular no que ao Mundial no Brasil diz respeito, a FIFA “prometeu” que este seria o mais sustentável evento desportivo de sempre. O que, aparentemente, está muito longe de ser verdade.

Num documento publicado em 2011, no qual se traçava a estratégia para a sustentabilidade na Copa do Mundo, no Brasil, o organismo responsável por estas competições assegurava uma integração adequada das questões ambientais com as estruturas de gestão, preparação e execução do evento, explicando de que forma iria minimizar o seu impacto e tendo como base oito princípios por excelência: responsabilidade, ética e anti-corrupção, transparência, respeito pelos interesses dos stakeholders, pela lei e uma abordagem de longo prazo que visava a colaboração e o aproveitamento destes pilares em eventos futuros, nomeadamente nos países que irão organizar os próximos campeonatos do mundo, a Rússia em 2018 e o Qatar, em 2022.

Todavia, e com o Mundial já a decorrer em pleno, são várias as “promessas” que parecem estar por cumprir. O programa de sustentabilidade da FIFA, intitulado Futebol para o Planeta, seria uma excelente oportunidade para promover boas práticas ambientais, nomeadamente a construção de edifícios “verdes”, gestão de desperdício e desenvolvimento sustentável das comunidades, redução e compensação das emissões de carbono e incentivo às fontes de energia renováveis. Adicionalmente, todos os 12 estádios anfitriões do Mundial, seriam, supostamente, “movidos” a energia solar, e teriam todas as condições para receberem a desejada certificação ambiental credenciada pela LEED (Leadership in Energy and Environmental Design). De acordo com os dados disponíveis, apenas dois dos 12 receberam, para já, a certificação em causa.

A poucos dias do início do Mundial, os organizadores do evento anunciaram igualmente a compensação das emissões de gases de estufa geradas pelo mesmo. Só para abordar os impactos ambientais da Copa, foram reservados 1,5 mil milhões de dólares naquele que poderá vir a ser o espectáculo de massas mais concorrido do planeta. As estimativas apontam para que 2,72 milhões de toneladas de CO2 sejam emitidas até ao final da Copa, a 13 de Julho. De acordo com o secretário de Estado para as Alterações Climáticas do Brasil, há três anos que o país tem vindo a cumprir uma agenda sustentável, em particular com um mecanismo especial, e inédito, para a compensação das emissões, o que deu origem a créditos de carbono doados por 11 empresas, equivalentes a 520 mil toneladas de emissões. Esta iniciativa, reconhecida pela Convenção para as Alterações Climáticas das Nações Unidas, está “aberta” até ao final de Julho, sendo o seu objectivo último o de neutralizar por completo as emissões de gases com efeito de estufa o que, a acontecer, seria uma situação inédita para um campeonato do mundo de futebol, em conjunto com a certificação ambiental de todos os estádios, um requisito que a FIFA poderá adoptar como obrigatório no futuro.

Num país tão grande como o Brasil e sem uma rede de transportes públicos viável, cerca de 80% dos gases serão emitidos pelos voos entre os vários estádios – em todos os casos em que os adeptos decidirem acompanhar as suas equipas. De acordo com Philippe Perntich, conselheiro do grupo de monitorização The Carbon Trust, e em declarações à revista alemã Die Welt, se os organizadores quisessem realmente levar a sério o ambiente, outro tipo de decisões deveriam ter sido tomadas. “O Brasil elegeu 12 destinos distantes e a construção de seis novos estádios – o que, do ponto de vista ambiental, não tem a mínima lógica”, afirmou, acrescentando ainda que, mais uma vez, as questões comerciais se sobrepuseram às ambientais.

Os estádios certificados – dois já obtiveram a certificação e seis esperam vir a obtê-la antes do final do Mundial -, os incentivos para o consumo sustentável [o governo lançou a campanha Brasil Orgânico e Sustentável], os programas de reciclagem de resíduos sólidos, entre outras acções divulgadas, fazem parte de uma campanha maciça lançada pelos media brasileiros, a qual não convence toda a gente.

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Não vem, que não tem
O consultor e economista do Banco Mundial, membro da Rede Brasileira de Informação Ambiental, Luiz Prado, afirmou, numa entrevista, estar muito céptico no que respeita ao conjunto total de “políticas de marketing verde” anunciadas. Ao site Responding to Climate Change, declarou: “os estádios foram equipados com a capacidade mínima de captura e reutilização de água. E vemo-nos perante a situação absurda de ter os campos de relva a crescer com luz artificial apesar de o Brasil ser um país tropical. Esta luz artificial custa, no mínimo, 45 mil dólares por mês. Ou seja, não temos nenhum estádio que seja sustentável”. Nem o icónico Maracanã, que foi completamente renovado e tem vindo a ser apelidado como o “templo sustentável” merece, nas palavras deste consultor, ser considerado como tal, apesar de ter sido, nos últimos dias, estrela e protagonista de muitas cadeias de televisão que ali se deslocaram para verem os seus sistemas supostamente avançados de preservação e armazenamento de água da chuva. A renovação incluiu a instalação de 2500 metros quadrados de painéis fotovoltaicos na sua cobertura, os quais são apenas suficientes para gerar 3% das suas necessidades energéticas.

Luiz Prado afirma ser muito difícil descortinar um rasto que seja de sustentabilidade em todo o evento, sendo um crítico acérrimo das várias acções que têm vindo a ser divulgadas e elogiadas. A título de exemplo, no Rio de Janeiro, a sua maior preocupação tem a ver com o sistema de transportes, na medida em que a cidade maravilhosa deverá acolher mais de 800 mil turistas. O programa de mobilidade para a famosa cidade brasileira teve como prioridade a construção de corredores BRT (Bus Rapid Transit) como forma de melhorar a circulação do trânsito, sendo que o mais recente, o Transcarioca, inaugurado a 4 de Junho, é considerado como um dos projectos mais caros da Copa. Com 39 quilómetros de extensão, pretende fazer a ligação do aeroporto internacional a locais-satélite, função que, de acordo com o economista do Banco Mundial, não será minimamente cumprida. Com um custo inicial estimado de 710 milhões de dólares, acabou por custar cerca de mil milhões. Razão pela qual Luiz Prado afirma que o maior erro cometido pelos organizadores em termos de planeamento foi a falta de transparência, na medida em que “as autoridades não calcularam os custos reais e nenhuma alternativa foi sequer apresentada à sociedade”.

E por falar em sociedade, a talvez mais controversa medida tomada aquando do planeamento deste mega-evento, foi a decisão de se expulsar milhares de pessoas residentes nas favelas brasileiras, para permitir a construção de algumas das infra-estruturas necessárias não só para o Mundial, mas, e em especial nos Rio de Janeiro, também para os Jogos Olímpicos de 2016. A ONU e a Amnistia Internacional têm vindo a “avisar” as autoridades brasileiras de que está a violar os direitos humanos, mas a verdade é que a “revitalização” de muitas áreas em causa não terminou, e são cada vez mais as famílias desalojadas – as com mais sorte a receberem indemnizações irrisórias, as outras sem receberem nada.

Tal como se escreveu no início deste texto, 72% dos brasileiros mostram-se insatisfeitos com a forma como o seu país está a “evoluir”: afinal e até agora, de acordo com a Forbes, as estimativas mais conservadoras apontam para que o Brasil tenha gasto cerca de 11,7 mil milhões de dólares em todo o processo de “edificação” do Mundial. Deste valor, 4 mil milhões foram para a construção e renovação dos 12 estádios, três vezes mais do que os custos inicialmente projectados, e os restantes milhares de milhões foram gastos nos cerca de 56 projectos de infra-estruturas que (ainda) estão a decorrer no Brasil. Assim, esta pode ser considerada como a mais dispendiosa Copa do Mundo de sempre, graças, como escreve a Forbes, a esquemas fraudulentos e parcerias suspeitas entre os políticos e os adjudicatários dos projectos. A lume vieram também, nos últimos dias, as suspeitas de corrupção e subornos na atribuição do Mundial de 2022 ao Qatar, com a FIFA a ficar muito mal vista na fotografia.

Não é assim de estranhar que os brasileiros tenham vindo protestar para as ruas afirmando que todo este dinheiro poderia ter sido utilizado na construção de escolas, hospitais, transportes públicos e na ajuda aos milhares de desalojados que foram obrigados a “ceder” o seu espaço para a construção de um outro Brasil: o da Copa e o das Olimpíadas de 2016. Os brasileiros podem adorar o futebol, mas está será, decerto, a Copa mais difícil de engolir do mundo.

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