Como sociedade ganhamos todos se contribuirmos para empurrar outros a chegar a tempo e com dignidade à sua chamada. Empurrar não é transformar as pessoas com deficiência de coitadinhos em super-heróis, dar-lhes acesso prioritário ou diferenciado a oportunidades (só conta passar à frente nas filas que estão legisladas) ou transformá-los numa espécie de talismã, que parece bem incluir no cenário em campanhas de comunicação. Empurrar as pessoas com deficiência é tão e só simplesmente tirar-nos da frente os obstáculos que nos bloqueiam, para que sejamos simplesmente pessoas a fazer caminho, com a liberdade de poder dizer sim à chamada, sem ter nada para superar
POR MAFALDA RIBEIRO

Se me perguntarem qual era o meu momento favorito dos tempos de escola, respondo sem pensar muito: a Chamada! Aquela coisa repetitiva, que acontecia em todas as aulas, quando o professor nos chamava a cada um pelo nosso nome e nós respondíamos “presente”, com o braço no ar a acompanhar a voz.

Encontro sempre beleza nisto de sermos chamados, escutarmos quem nos chama e obedecermos em presença, independentemente dos apetites. É que a chamada já é um presente em si mesma!

Dou graças a Deus por não viver confundida no “para quê” da minha existência, contra todas as improbabilidades. Hoje, aos 38 anos, sei que, mais do que aceitar o “como” sou, há uma aceitação plena e muito orgânica, talvez desde sempre, de “quem” sou, em Deus e a partir d’Ele. Ser a Mafalda é a explicação personificada do que defendia o teórico da comunicação Marshall McLuhan: “O meio é a mensagem”. À medida que fui desenvolvendo essa consciência, tornou-se “obrigatório” não faltar à chamada. Não com o peso da obrigação reflectida na relação causa-efeito, mas com a leveza da gratidão de quem vive sentada num obrigada permanente por ter sido escolhida, por ter sido chamada.

Acredito que o primeiro passo para a aceitação da pessoa que cada um é tem de ser o conhecimento, o reconhecimento e a resposta afirmativa à sua chamada. No meu caso, não precisei de me colocar “em bicos de rodas” para ser ouvida, não precisei sequer de esticar mais os braços curtos (e deformados pelas inúmeras fracturas ao longo da vida) para chamarem por mim, não precisei de passar à frente de ninguém (ainda que tenha a prioridade legislada por ser uma pessoa com deficiência) para me darem atenção e tão pouco precisei de ser proactiva para ganhar voz. A minha intencionalidade reside na obediência em “desconfinar” o que fui chamada a dizer, para lá da cadeira de rodas, da aparência invulgar, das limitações físicas, da falta de autonomia e dos preconceitos da sociedade. Aceitar o meu propósito faz parte da equação de declarar presença numa sociedade que se vê ausente de valores, ética e responsabilidade. É retorquir “eis-me aqui!” ao ouvir o meu nome. Dar-lhe movimento, não me fechando conformada pela minha condição. Eis a forma que encontrei para ser a tal montra constante de João 9:3 (NVI) – “Disse Jesus: ‘Nem ele nem seus pais pecaram, mas isto aconteceu para que a obra de Deus se manifestasse na vida dele’”.

Todos somos chamados, em algum momento, a manifestar algo através de nós, para além daquilo que possamos ou não criar, que possamos ou não partilhar com os outros. Independentemente do nome que lhe damos – entre missão, vocação ou propósito –, de sabermos quem nos chama e de todas as dúvidas quanto à capacitação para o que virá depois, a verdade é que a todos é dada a oportunidade de escolher dois caminhos: comparecer ou faltar à chamada. Tal como na escola, a vida de casa e da empresa é composta por testes, provas, exames, aprendizagens, falhas, entusiasmo, incompreensão, entrega, frustração, serviço, empenho, pressão, ilusão e trabalho. Mas tudo começa com a chamada, que deveria ser o nosso gatilho de automotivação. Não esperemos que alguém responda por nós, nem queiramos responder a outro nome que não o nosso. O mais belo de cada chamada é a certeza da Sua originalidade.

Dei comigo, aquando de mais uma entrevista a propósito do Dia Internacional da Pessoa com Deficiência que se assinalou no passado 3 de Dezembro, a dizer que é porque me sei tremendamente abençoada que isso me traz uma responsabilidade crescente. Em vez de apenas permanecer, literalmente, sentada no meu privilégio, sinto uma urgência em fazer alguma coisa para contribuir para a mudança. Ou seja, responder sim à minha própria chamada é ser uma ponte constante para aqueles que, mesmo chamados à vida, não têm acesso à igualdade de oportunidades no exercício dos seus direitos e deveres.

Quem toma decisões nas empresas precisa de mudar o mindset de que dar emprego a uma pessoa com deficiência é uma obrigação para cumprir quotas, um favorzinho que fazem a alguém inferior ou uma assinatura caridosa num free pass para o céu pois fizeram uma boa ação. E atenção que integração não significa o mesmo que inclusão. Neste âmbito, gestores e empresários precisam de querer imitar as boas e saudáveis práticas de quem já incluí bem e deixar de lado a concorrência. Quanto mais inclusivos formos também mais próximos estamos da liderança de Jesus que não fez nunca acepção de pessoas.

No que diz respeito à falta de respeito pelo não cumprimento da lei de acessibilidade de 2017, de acesso aos edifícios e estabelecimentos públicos, que ainda vigora no nosso país, por muito que me apetecesse seguir o exemplo de Jesus quando revirou as bancas dos vendilhões do Templo, como que a dizer: “basta!”, escolho deixar o dedo acusatório para os que deviam fiscalizar e multar quem continua a ignorar as pessoas com mobilidade reduzida. Não arranjar maneira de transformar degraus em rampas assenta na desculpa de que as pessoas com deficiência motora não existem, afinal ninguém os vê na rua! Que a minha voz continue a ser pacientemente pedagógica através de pontes de empatia, que vão ao encontro de quem precisa de mudar mentalidades, para que a destruição das barreiras arquitectónicas não continue a ser tido como um luxo. Pôr-se no lugar do outro não é assim tão distante no cenário de uma cadeira de rodas: podemos ter de usar este produto de apoio durante um período de uma doença, pós cirurgia, fractura ou no acto natural de simplesmente envelhecermos. Sim, nem todos nascemos com uma deficiência motora mas todos somos potenciais pessoas com deficiência no que toca à mobilidade. Portanto, isto não é algo que só acontece aos outros!

Acredito que comparecer à chamada está dependente de uma soma de fatores que não só a nossa vontade individual. Como sociedade ganhamos todos se contribuirmos para empurrar outros a chegar a tempo e com dignidade à sua chamada. Empurrar não é transformar as pessoas com deficiência de coitadinhos em super-heróis, dar-lhes acesso prioritário ou diferenciado a oportunidades (só conta passar à frente nas filas que estão legisladas) ou transforma-los numa espécie de talismã, que parece bem incluir no cenário em campanhas de comunicação. Empurrar as pessoas com deficiência é tão e só simplesmente tirar-nos da frente os obstáculos que nos bloqueiam, para que sejamos simplesmente pessoas a fazer caminho, com a liberdade de poder dizer sim à chamada, sem ter nada para superar.

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Mafalda Ribeiro

Palestrante e storyteller