Em pleno século XXI, a realidade do tráfico humano traduz-se numa rede tão cruel quanto lucrativa. Alertando para o crescente número de emigrantes que são aliciados com uma falsa promessa de trabalho em Portugal, o Observatório do Tráfico de Seres Humanos assinala o Dia Europeu de combate a este fenómeno com uma campanha dedicada à exploração laboral. Os testemunhos das vítimas, marcadas para o resto das suas vidas, superam os números
POR GABRIELA COSTA

O tráfico humano é crime. Um crime global e organizado que movimenta cerca de 24 mil milhões de euros e que atinge 2,4 milhões de vítimas em todo o mundo. Muitas delas para exploração laboral. 29102014_VitimasDeTraficoMarcadasParaAvidaOs dados das Nações Unidas foram apresentados no lançamento da campanha nacional “Apanhados no Tráfico”, que assinalou o Dia Europeu de Combate ao Tráfico de Seres Humanos, a 18 de Outubro. E reflectem uma realidade violenta e brutal que, em pleno século XXI, apanha homens, mulheres e crianças numa rede tão cruel quanto lucrativa.

Lançada anualmente pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), a campanha incide desta vez na exploração laboral, alertando para o crescente número de vítimas que são recrutadas através de uma falsa promessa de trabalho em Portugal.

Em 2013, e de acordo com o relatório do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH) divulgado já este ano, foram sinalizadas 299 presumíveis vítimas em território nacional. A exploração laboral marcou o destino da larga maioria – 66% destas pessoas (dos quais, 15% na Agricultura), a que se seguiu a exploração sexual, em 19% dos casos. A adopção e venda de menores e a mendicidade forçada foram também tipos de exploração sinalizados, mas que não ultrapassaram os 5% do total de vítimas.

Crise alarga a rede do tráfico laboral
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O tráfico com o objectivo de lucrar com a imposição de condições laborais abusivas, subjugando os trabalhadores a horários de trabalho forçados ou excessivos, ao não pagamento de salários ou exploração salarial, ao incumprimento das regras de higiene e segurança no trabalho e das normas de protecção social, e, em tantos casos, à violência e coacção (através, por exemplo, de ameaças à integridade física da vítima ou da sua família, da servidão por dívida, da retenção de documentos ou dinheiro da vítima ou da vigilância com vista à restrição de movimentos), constitui actualmente a primeira causa mundial de tráfico humano. Afectando particularmente os emigrantes, pela vulnerabilidade em que se encontram à chegada e integração no país de destino.

No nosso país, das três centenas de vítimas apanhadas no tráfico em 2013, apenas 31 são cidadãos portugueses. A Roménia é o país de origem mais afectado – com 185 pessoas (incluindo seis menores) sujeitas a este crime, das quais 159 para exploração laboral. Da Nigéria chegaram 18 pessoas que foram traficadas (17 para exploração sexual); do Brasil, 14 (das quais oito com esse mesmo fim); da Bulgária também 14, mas todas para exploração laboral; da Guiné-Bissau, sete (seis para exploração sexual); e da Bósnia seis, todas menores, para mendicidade forçada.

Das 31 vítimas portuguesas, 17 são menores e 14 foram traficadas para exploração sexual. De sublinhar ainda que 17% do total de casos sinalizados pelo Observatório são raparigas e rapazes menores de idade (50% homens, e 33% mulheres).

Para a secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, “as crises económicas, o desemprego na Europa e no mundo, potenciam a exploração e todas as fragilidades são aproveitadas por quem procura lucro fácil”. Aos empresários nacionais, “que contratam pessoas frequentes vezes desconhecendo a forma concreta do seu recrutamento”, Teresa Morais deixou um apelo, na cerimónia de lançamento da campanha da CIG, para que não contribuam para engrossar a fileira das potenciais vítimas de tráfico laboral – “pessoas desempregadas nacionais ou estrangeiras, que procuram uma vida melhor e ficam ao alcance de redes criminosas altamente organizadas”.

A nível estatal, o combate ao tráfico permitiu, até Setembro de 2014, realizar 2130 acções de fiscalização, entre as quais 113 específicas para a actividade agrícola, envolvendo cerca de 13 mil cidadãos estrangeiros, segundo revelou o secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, também presente no evento. Segundo Fernando Alexandre, na sequência destas acções foram instauradas cerca de 100 contra-ordenações.

O secretário de Estado recordou ainda que no decorrer do ano passado, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) efectuou 4438 inspecções no âmbito do combate ao tráfico de seres humanos, que envolveram mais de 29 mil cidadãos estrangeiros.

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“Cordão humano” contra um crime desumano
Combater o tráfico laboral é uma das medidas previstas no III Plano Nacional de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos (III PNPCTSH), no âmbito do qual o Programa do Governo se propõe “combater de forma integrada o flagelo do tráfico de seres humanos, reforçando o conhecimento do fenómeno, a acção pedagógica e preventiva junto dos diversos intervenientes, a protecção e assistência às vítimas e o sancionamento dos traficantes”. Neste último aspecto, Teresa Morais adiantou que o Governo espera que o número de condenações por tráfico de seres humanos venha a aumentar, a exemplo do que tem sucedido nos casos de violência doméstica. A secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade sublinhou ainda o reforço da formação de inspectores da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) que foi feito no último ano, com vista à identificação de possíveis crimes desta natureza.

Destacando “a imperatividade de uma actuação articulada de todas as entidades envolvidas, a necessidade do aprofundamento das medidas de apoio às vítimas e a aposta na formação” dos profissionais que actuam no combate a este fenómeno, o III PNPCTSH, traçado para o período 2014 -2017, enquadra-se nos compromissos assumidos por Portugal no âmbito da Organização das Nações Unidas, do Conselho da Europa, da União Europeia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. A maior dificuldade é conseguir adaptar “a resposta nacional aos novos desafios, concretamente às novas formas de tráfico e de recrutamento”.

Avaliando as conclusões do relatório do OTSH acima citado, salta à vista um crescimento de 146%, face a 2012, no número total de sinalizações de casos de crime de tráfico humano em Portugal, quer por parte dos órgãos de polícia criminal, quer por parte de ONG e outras entidades públicas. Este acréscimo resulta principalmente dos registos de presumíveis vítimas em Portugal (+269%), “particularmente associadas a sinalizações de tráfico para fins de exploração laboral”, com grande incidência no sector agrícola – pelo que deverá ser dada especial atenção a acções de fiscalização que tenham em conta a sazonalidade do crime, adverte o Observatório.

Pelo contrário, as sinalizações de tráfico de portugueses no estrangeiro diminuíram 80%: em 2013 foram sinalizadas apenas 9 presumíveis vítimas de tráfico humano, no que respeita a cidadãos portugueses no estrangeiro, maioritariamente para Espanha mas também para o Brasil, Suíça, Inglaterra e França.

Na análise do Observatório que actua sob a tutela do ministério da Administração Interna, com vista à produção e recolha de informação respeitante ao fenómeno do tráfico de pessoas e de outras formas de violência, o aumento significativo de sinalizações deste tipo de casos deriva, sobretudo, da “capacitação institucional para o seu reconhecimento” e do “alargamento das redes colaborativas”. E não de um aumento do crime em território nacional.

Neste contexto, o relatório recomenda, como medida fundamental, a aposta contínua na sensibilização e na formação de profissionais (governamentais e não governamentais), agentes do sector privado a vários níveis e grupos sociais mais vulneráveis. E conclui que a monitorização do fenómeno deverá cruzar indicadores sociais e demográficos dos territórios, analisando-se padrões de mobilidade em cada país, e entre os países.

Só assim se poderá humanizar as condições dos emigrantes, num contexto de globalização do fenómeno migratório, como perspectiva o Papa Francisco, numa mensagem divulgada recentemente, e que será lida por ocasião da Jornada Mundial do Migrante e do Refugiado, celebrada anualmente em Janeiro: “os movimentos migratórios assumiram tais dimensões que apenas uma colaboração sistemática e efectiva que envolva os Estados e as organizações internacionais pode regulamentá-los de maneira eficaz”. Para o Papa, “é necessária uma ação mais incisiva, que aproveite uma rede universal de colaboração”, fundada na protecção da dignidade humana, para combater “o tráfico vergonhoso e criminoso de seres humanos”. Contra a violação dos direitos fundamentais. Contra “qualquer forma de violência, humilhação e escravidão”, apela Francisco.