O episódio infeliz que colocou a companhia aérea United Airlines no radar da opinião pública – e dando origem a movimentos de repulsa, condenação, indignação e afins – não se limita a um mau exemplo de falta de ética empresarial ou de um mau, no mínimo, serviço ao cliente. Põe a nu, igualmente, uma questão a que nós, comuns dos mortais e não pertencentes a elites endinheiradas – começamos a aceitar como normalidade: a falta de respeito e de educação que todos merecemos, mesmo que sejamos “consumidores de segunda categoria”
POR HELENA OLIVEIRA

O vídeo correu mundo, o seu conteúdo foi um dos mais comentados no Facebook e no Twitter e, a princípio, tudo indicava que a onda de indignação – as “ondas” de indignação nos media sociais são como as marés, mudam rápida e constantemente – contra a United Airlines (UA) faria despenhar a companhia aérea americana das alturas.

Sim, as acções da empresa registaram uma queda depois do incidente com o passageiro que se recusou a sair de um voo sobrelotado – e que, através de um suposto algoritmo foi “escolhido” para o fazer -, anunciaram-se boicotes à companhia por toda a Internet, muitos (ou alguns) pediram a demissão do CEO, Oscar Munoz, depois de dois pedidos de desculpa deste, um demasiado esfarrapado, outro com alguma fita-cola, mas a verdade é que apenas dois dias depois do vídeo que se tornaria viral ter ocupado os lugares cimeiros do “trending” da semana, as acções da United Continental Holding, à qual pertence à UA, voltaram a subir.

Como escreve a revista Fortune, “os analistas de Wall Street já tinham manifestado a sua crença de que por muito viral ou chocante tenha sido a forma como a empresa lidou com o assunto, era muito improvável que o incidente afectasse o desempenho da companhia”. Mais ainda, e por muito que os utilizadores das redes sociais tenham reagido contra o facto de um passageiro ter sido magoado e levado à força para fora de um avião, a maioria dos analistas do sector não se deu ao trabalho de dizer uma palavra sobre o assunto. O argumento utilizado na peça em causa recorda o “desvario de fusões” que tem acometido a indústria da aviação nos Estados Unidos ao longo dos últimos anos, “fazendo da United Airlines a melhor – ou até mesmo a única – opção para viajantes de várias localizações [geográficas]”.

Argumentos económicos à parte, e depois da habitual criatividade a que já estamos habituados cada vez que acontece um “incidente” desta ou de outra natureza – e impossível não soltar uma gargalhada à resposta da concorrente Southwest – “We beat the competition. Not you” – o episódio infeliz que serviu para colocar a UA nos radares da opinião pública – e que é apenas mais um entre variadíssimos outros protagonizados pela transportadora aérea, uns ridículos – como o das leggings usadas por uma miúda de 10 anos e que “violou” o seu dress code -, a outros muito mais graves e que envolvem corrupção e suborno, a verdade é que tudo acaba por voltar à normalidade.

Todavia, e sem merecer honras de destaque nas redes sociais, o caso da United Airlines tem subjacente um problema muito mais sério do que um péssimo exemplo de serviço ao cliente. E sendo cada vez mais comum em vários sectores e não só nas companhias aéreas, apesar de estas constituírem terreno fértil para que tal aconteça, o “fenómeno”merece alguma reflexão: a desigualdade de tratamento dos clientes de “primeira e de segunda”, ou como ter dinheiro pode comprar não a felicidade, mas um lugar cativo e com benefícios cada vez mais “extra” num avião ou numa mera loja de roupa.

Sim, o fenómeno sempre existiu – afinal é assim que se distingue a famosa “luta de classes” – mas à medida que todos somos inundados com o discurso de que o acesso a determinado produtos ou serviços de “luxo”, outrora reservados só aos mais endinheirados, é agora muito mais democratizado – afinal (quase) todos nós, cidadãos comuns, podemos comprar por um não muito grande punhado de euros, uma viagem de avião nas benditas low-costs – acabamos por nos esquecer que não está certo, de todo, sermos discriminados por não termos um cartão gold ou platina ou por não sermos membros de um Programa de Passageiros Frequentes, que nos dê acesso a algo que não deveria dividir ricos e menos ricos: o respeito [os pobres, os verdadeiros, não têm sequer lugar nesta equação, sublinhe-se].


Quem pode, pode

A situação que deu origem ao episódio de brutalidade com o passageiro vietnamita no voo da UA está prevista nas leis que regem as companhias aéreas e, supostamente, os clientes devem ter conhecimento das mesmas. O “overbooking” é uma situação mais comum do que pensamos no sector da aviação, tem cobertura “legal” – por mais estranho que possa parecer – e as companhias áreas podem recusar transportar um passageiro em caso da lotação de determinado voo estar esgotada. Como acontece na maioria destas situações, os passageiros “escolhidos” são recompensados monetariamente – geralmente em “cheques-viagem” na mesma companhia – para “pagar” a inconveniência de terem de optar por outro voo e muitos são aqueles que não se importam de alterar os seus planos por algumas horas. Mas comecemos por ler a política da transportadora aérea em causa:

Prioridades no Embarque: se um voo estiver sobrelotado, a ninguém poderá ser negado o embarque contra a sua vontade até que a UA ou outra transportadora pergunte primeiro se existem voluntários que estejam dispostos a ceder a sua reserva voluntariamente em troca de compensação determinada pela UA. Se não existirem voluntários suficientes, a outros passageiros poderá ser negado o embarque de acordo com as prioridades do mesmo definidas pela UA”.

O que aconteceu neste caso tem, contudo, algumas infelizes particularidades: depois de os passageiros já estarem sentados no avião – e com o check in e embarque devidamente realizados, obviamente – foi anunciado pela United que devido ao facto de quatro dos seus tripulantes terem de ser transportados para o aeroporto de destino (Louisville), quatro dos passageiros teriam de abandonar o voo para lhes ceder o lugar. Depois da habitual oferta de compensação pela inconveniência, que atingiu os 800 dólares, e sem existir ninguém que se voluntariasse para aceitar a mesma, um funcionário da United anunciou que seria um computador a escolher aleatoriamente os passageiros que teriam de sair e uma das “favas” calhou ao médico David Dao que, depois de se recusar a abandonar o seu lugar, alegando que tinha de ver pacientes no dia seguinte, foi literalmente arrastado para fora do avião, por autoridades policiais do aeroporto de Chicago entretanto chamadas a intervir e como se pode ver nas imagens do vídeo que correu a Internet.

Na secção Rule 25 Denied Boarding Compensation, onde constam todos os detalhes relativos às condições de sobrelotação de voos e que, mais uma vez, são legais, nada é dito, sublinhe-se, sobre o facto de um passageiro ser involuntária e brutalmente removido do voo depois de já ter embarcado, e muito menos para dar lugar a empregados da própria companhia, como alerta a revista The Atlantic num interessante artigo. Mas igualmente interessante são as denominadas “prioridades de embarque” que constam na acima mencionada Rule 25. Ora vejamos:

“Passageiros que sejam indivíduos qualificados com uma deficiência, menores não acompanhados com idade inferior a 18 anos ou menores entre os 5 e os 15 anos de idade que utilizem o serviço de acompanhamento de menores, serão os últimos a verem involuntariamente negado o embarque se, tal como determinar a UA, esta negação constituir uma adversidade”. Até aqui, (quase) tudo bem, se aceitarmos que as situações de venda de bilhetes superior ao número de lugares existente nos aviões é prática comum das companhias, enquanto forma de garantir que todos os lugares sejam ocupados em caso de desistência e que esta mesma política permite que os bilhetes sejam mais acessíveis a quem tem menor poder de compra.

Mas nada normal ou ética parece a “ordem de prioridade” seguinte que consta na mesma Rule 25: “A prioridade de todos os outros passageiros confirmados poderá ser determinada com base na tarifa da classe de serviço utilizada, no itinerário ou no status dos Programas de Passageiros Frequentes e ainda de acordo com a antecedência com que o passageiro se apresenta para fazer o check-in sem reserva de lugar feita anteriormente”. Ou, e por outras palavras, quem viaja em “Executiva” ou em “Primeira Classe”pode estar descansado, pois o “algoritmo” que escolhe, aleatoriamente – ou mais ou menos – os passageiros que deixam de ter lugar no voo em causa nem sequer os contempla. E no caso do médico vietnamita, o seu “valor” enquanto passageiro deveria rondar qualquer coisa próxima do que “não interessa” a esta e outras empresas.

Ou seja, e apesar de a situação ser “legal”, não significa que seja moral. E mesmo que o argumento seja o de sempre – os mais ricos pagam para ter maiores comodidades e, consequentemente, mais direitos – isso não significa que seja correcto existir discriminação no respeito que cada cliente ou consumidor merece. Se, e no caso do sector da aviação, conseguimos compreender (e que remédio) que, para aumentar as comodidades dos que têm dinheiro para as pagar, o espaço reservado à classe turística esteja cada vez mais exíguo, que os bancos sejam de pior qualidade e que os sorrisos dos hospedeiros não têm de ser tão calorosos para os que viajam na “parte boa” do avião, há coisas que não se compram, nem se vendem. Consideração e boa educação são dois bons exemplos, E, infelizmente, este fenómeno está a (re)surgir num conjunto cada vez maior de sectores e nós, cidadãos normais, acabamos por pactuar com o mesmo, achando normal muitas situações que não o são. Ou que não deveriam ser.


É a desigualdade, estúpido!

A questão é bem exemplificada, e num conjunto de diferentes sectores, por um artigo publicado na TheWeek e que vai um bocadinho mais longe, (d)escrevendo as diferenças existentes – e “normais”- diríamos, entre os que podem pagar luxos e os que podem apenas sonhar com os mesmos: sejam entre os hotéis sofisticados e os que têm como público-alvo as classes menos abonadas, nos quais e em vez de suites espaçosas e menus à la carte, os quartos são cada vez mais pequenos e os restaurantes deixaram de existir (ou deixam a desejar); no sector do ensino, onde escolas privadas com propinas proibitivas atraem os mais endinheirados com promessas de piscinas olímpicas para os seus filhos quando existem escolas públicas onde os alunos não têm acesso a condições mínimas para a sua educação; ou na saúde, onde existem serviços de saúde de conciérge destinados aos VIPs quem podem requisitar/”alugar” os serviços de um médico em regime exclusivo por 30 mil dólares por mês, enquanto pessoas da outrora chamada classe média têm de recorrer a acções de crowdfunding quando uma tragédia inesperada lhes bate à porta; ou ainda os hotéis de luxo, acompanhados de restaurantes a condizer, tratamentos SPA ou tours VIP que os parques temáticos da Disney oferecem aos seus clientes mais ricos, quando os demais já ficam contentes por ter acesso a uma atracção depois de terem passado horas na fila, ao sol ou à chuva, e “reféns” de pacotes “low cost”; ou também as cadeias de lojas que têm um assistente por cliente – para os que podem chegar aos proibitivos preços dos seus produtos – quando nas “normais”, pedir ajuda a um funcionário quase parece um “incómodo” para o mesmo. E os exemplos poderiam continuar.

Mas, e argumentará o leitor, foi sempre assim e sempre assim continuará. A desigualdade de rendimentos é cada vez mais acentuada, o fosso entre ricos e pobres pode, literalmente, ditar a diferença entre a vida e a morte e o mundo nunca foi justo e nunca vai ser. E também é do conhecimento (infelizmente) comum que, quanto maior é a fatia do rendimento gerado, menor é a proporção de habitantes que a ele tem direito, e que são os que pertencem a essa elite que mais responsáveis são pelo aumento do consumo, o qual estimula o crescimento da economia, gera mais emprego e retira mais pessoas da pobreza. Sim, a lei do mercado continua a ser a mesma e apenas o fosso se alarga. Mas também é verdade que as indústrias e serviços devotados aos que maior poder de compra têm nas mãos e nos bolsos foram as que mais facilmente recuperaram da crise financeira, sendo que para os restantes agentes económicos a estagnação continua a ser a norma.

Assim, e neste clima em que os abastados somam “extras” cada vez mais apetecíveis, o que fazer com os demais que representam uma fatia cada vez maior do bolo dos consumidores? Como o mercado não se pode dar ao luxo de ignorar os que se situam na esmagadora parte “de baixo” da pirâmide, as empresas – que também precisam de sobreviver – têm de arranjar formas de lucrar com essa talhada gigante de consumidores com menor poder de compra, mesmo sabendo que os seus rendimentos estão estagnados e que o seu poder de comprar continua muito perto das ruas da amargura.

Assim, e tal como todos nós agradecemos a oportunidade de podermos viajar de avião, mesmo que enlatados em espaços mínimos, com pouca ventilação e com os joelhos perto da cabeça, estando sujeitos à escolha “aleatória” feita por um algoritmo de computador correndo o risco – legal – de sermos postos fora de um voo que, entretanto, ficou sobrelotado, há que recordar, uma e outra vez, a democratização do acesso ao que antes era impensável. Chama-se progresso. E é feito de uma forma muito simples: aumentar, nas classes “altas”, todo o tipo de amenidades, luxos e criativas ofertas que estas podem pagar, e cortar, até ao osso e nas classes “baixas” qualquer que seja o “extrazinho”sem o qual o mais pobre pode perfeitamente passar.

É que a cultura de “manter os preços baixos é que interessa” permite, sim, dar umas migalhas do grande bolo aos que menor poder de compra têm, sendo também e cada vez mais, uma cultura empresarial votada ao sucesso. Desde que os preços sejam baixos, está tudo bem, independentemente de quão pobre for o serviço ao cliente que se oferece. Afinal, os mais pobres (ou menos ricos) não estão habituados a ser bem tratados e sabem que o seu dinheiro não chega para tanto. E até podem ser arrastados e espancados e expulsos de um avião. Afinal, a vida é como o tal algoritmo. Completamente aleatória!

Editora Executiva