Quem o afirma, e face à necessidade de apoiar os progressos científicos e tecnológico a par dos valores fundamentais na vida e na cultura da Europa, é Ana Sofia Carvalho, directora do instituto de Bioética da Universidade Católica – Porto, e nomeada para integrar um conjunto de 15 peritos de áreas distintas para o renovado Grupo Europeu de Ética para as Ciências e as Novas Tecnologias. Em entrevista ao VER, e sem poder adiantar ainda os temas prioritários a que se dedicará este “conselho”, a especialista traça, contudo, alguns dos principais desafios que se colocam nas várias intersecções da ética com os progressos acelerados que observamos, continuamente, na ciência e na tecnologia
POR HELENA OLIVEIRA 

Afirmando que a sua recente nomeação para o Grupo Europeu de Ética para as Ciências e as Novas Tecnologias (EGE) se deve, acima de tudo a “um reconhecimento da excelência da formação e investigação na área da Bioética que se faz na Universidade Católica e em Portugal”, Ana Sofia Carvalho não deixa também de sublinhar a “herança de excelência” deixada por pioneiros como Walter Osswald, Daniel Serrão e Luís Archer e de elogiar o trabalho dos seus Investigadores juniores “ que constroem a generosa utopia para o século XXI que é a Bioética”. Mas o currículo extenso da Directora do instituto de Bioética da Universidade Católica – Porto – é mais do que suficiente para lhe ter dado entrada no restrito grupo de 15 eleitos para fazerem parte desde Grupo Europeu, o qual visa reunir peritos nos diferentes domínios das ciências naturais e sociais, humanidades, filosofia, ética e direito para aconselharem os governos sobre as inúmeras implicações sociais – e em termos de direitos humanos – que a evolução actual e futura da inovação encerra.

Criado em 1991, o organismo independente e multidisciplinar que tem como missão “pensar” e aconselhar sobre todas as políticas relacionadas que intersectam a ética, a sociedade e os direitos fundamentais com os rápidos progressos na ciência e na tecnologia, tem vindo a sofrer, também ele, algumas inovações “obrigatórias”. De um enfoque inicial mais dirigido às questões biomédicas, as suas áreas de intervenção foram-se ampliando e abarcando, de forma contínua, um conjunto cada vez maior de “questões sociais do nosso tempo”. Desde a saúde, passando pela energia, até às implicações éticas que rodeiam as tecnologias de segurança e de vigilância, o EGE, que actuará sob a responsabilidade directa de Carlos Moedas, Comissário Europeu da Investigação, Ciência e Inovação, visa também “reforçar” o seu actual papel, garantindo que os desenvolvimentos tecnológicos, nas suas várias vertentes, assegurem o bem da humanidade e das gerações futuras.

Em entrevista ao VER, Ana Sofia Carvalho sublinha que” o ritmo do progresso é aquele que nos permite antecipar os problemas éticos permitindo minimizar os potenciais atropelos à vida humana e ao ecossistema”, mas não esconde também que esta sua nova função terá tanto de gratificante como de exigente. E não é para menos.

O Grupo Europeu de Ética para as Ciências e as Novas Tecnologias (EGE) – e para o qual foi nomeada – foi, em simultâneo, “oficialmente relançado” pela Comissão Europeia. Apesar da sua extrema e cada vez mais necessária “utilidade”, o EGE não é muito conhecido do público em geral. Como define – e a propósito deste “relançamento” – os seus principais objectivos?

Neste momento, e uma vez que a primeira reunião deste novo Grupo só teve lugar nos passados dias 24 e 25 de Abril, e tendo em consideração que o grupo aconselha a Comissão sobre as questões éticas relacionadas com a investigação, a ciência e a tecnologia, será prematuro definir a agenda para as reuniões seguintes, sendo que a próxima está agendada já para Julho. No entanto, como bem sublinhado pelo Senhor Comissário Carlos Moedas, o EGE pretende, através das suas opiniões e recomendações, ajudar a Comissão Europeia a encontrar soluções que respeitem e encorajem o progresso científico e tecnológico, mas que preservem os valores fundamentais na vida e na cultura da Europa, a partir dos direitos humanos inalienáveis.

Quanto à questão do grupo ser pouco conhecido do público em geral, penso que um dos objectivos do seu relançamento será, também, o de tornar as suas opiniões conhecidas, não só dos especialistas, mas também do público em geral. Aqui, evidentemente, a sensibilidade dos meios de comunicação social a estas temáticas será, também, crucial.

A crescente intersecção entre tecnologia e ciência com questões variadíssimas do domínio da ética parece não constituir ainda “tema prioritário” não só por parte dos governos, como da própria sociedade. A seu ver, e a nível comunitário, quais as questões mais urgentes a abordar face ao progresso acelerado em que vivemos?

Existe um número significativo de questões que poderão estar na agenda deste grupo e que intersectam várias áreas da ética que, actualmente, são alvo de discussões intensas. Questões como as relacionadas com a integridade científica, na sua versão mais problemática com os problemas de falsificação e fabricação de resultados e aqueles, que sendo considerados menos graves, fazem parte do quotidiano da comunidade científica em geral, como os critérios de autoria, critérios de publicação e conflitos de interesse, que deverão, na minha opinião, ser discutidos. Outros temas poderão ser os relacionados com a utilização das técnicas de edição de genoma através da utilização da CRISPR-cas 9, que, pela facilidade metodológica, trouxe importantes desafios éticos a esta área de investigação.

A lista de progressos céleres tanto a nível cientifico como tecnológico é tão extensa quanto as implicações éticas que os mesmos terão na sociedade em que vivemos. Na medida em que o trabalho do EGE, enquanto entidade independente de aconselhamento e “consultoria”, abrange áreas de desenvolvimento tão díspares, e mesmo tendo em conta que este “painel” que integra é constituído por especialistas tanto das ciências naturais, como das sociais e humanas (incluindo a filosofia, a ética e o direito), o vosso trabalho será hercúleo. Como funcionará, na prática, a “hierarquização” dos desafios éticos que se vos irão colocar e de que forma está previsto o trabalho conjunto com os 27 Estados-membros?

Como sublinhado anteriormente, nesta altura, será prematuro falar acerca do modo como o grupo irá funcionar, no entanto, tendo em consideração as diferentes competências dos membros do grupo, a preparação que cada um tem nesta área e o desafio que para todos representa esta função, estou certa que será um trabalho tão exigente como gratificante.

Uma das questões que mais preocupa os que se preocupam – e passe o pleonasmo – com os progressos acelerados na inteligência artificial, na biomedicina ou na nano ou biotecnologia, entre muitas outras, prende-se com a possibilidade de as mesmas poderem ser utilizadas tanto para o bem como para o mal. E sendo este também um dos objectivos sublinhados pelo comissário Carlos Moedas aquando da “renovação” do EGE – o de se garantir que a inovação deverá servir o bem da humanidade e das gerações futuras – qual a sua visão no que a esta questão diz respeito: mais optimista ou pessimista, e porquê?

Na minha opinião, só pode trabalhar nesta área quem tem uma visão optimista da forma como o progresso da ciência pode também representar o progresso do ser humano. Caso contrário, qual seria a utilidade do nosso trabalho? Estou certa que, tal como aconteceu até agora, e temos vários exemplos de hipérboles relativamente ao denominado “admirável mundo novo”, o exemplo da clonagem e das células estaminais, o ritmo do progresso é aquele que nos permite antecipar os problemas éticos permitindo minimizar os potenciais atropelos à vida humana e ao ecossistema.

No início deste ano, o The Future of Life Institute, criado por um conjunto de reputados cientistas e investigadores destas áreas, e em conjunto com académicos, investidores, especialistas e pensadores da economia, direito, ética e filosofia, comprometeu-se com 23 Princípios relacionados com a investigação em IA e que devem ser “honrados” por todos aqueles que, de uma forma ou outra, estão a trabalhar no presente e no futuro daquela que já é considerada, por muitos, como a maior revolução da História da Humanidade. Existe alguma iniciativa similar na Europa ou planos para que se trabalhe para honrar compromissos desta natureza? E, dependendo da sua resposta, qual a sua visão sobre a necessidade de identificar princípios éticos por excelência nestas áreas?

Não sendo esta a minha área de trabalho específico, confesso que não tenho conhecimento que me permita testemunhar qual a situação relativamente ao debate na área da IA. Estou certa que, tal como em outras áreas em que estou directamente envolvida, esse debate também se está a fazer. Este tipo de procedimento não é novo, quando apareceu a engenharia genética, a moratória e a conferência de Asimolar tinham exactamente o mesmo objectivo, numa outra área científica. Sem dúvida que encontrar a resposta para que estas áreas de excelência científica sejam também áreas de excelência ética que permitam salvaguardar, acima de tudo, a dignidade humana, é uma tarefa de enorme complexidade e responsabilidade.

Enquanto directora do Instituto de Bioética e sendo este a única instituição universitária dedicada exclusivamente ao ensino, investigação e difusão da Bioética, como avalia o “estado-de-arte” da mesma no nosso País?

Esta nomeação é, acima de tudo, um reconhecimento da excelência da formação e investigação na área da Bioética que se faz na Universidade Católica e em Portugal. Mais importante é deixar o testemunho que somos herdeiros de uma excelência deixada pelos pioneiros, Walter Osswald, Daniel Serrão e Luís Archer, que nos permite, hoje, colocar Portugal entre os 15 peritos europeus nesta área.

Assim, esta nomeação é, acima de tudo, um prémio ao trabalho destes mestres e ao trabalho dos meus investigadores mais juniores, que todos os dias sonham e constroem esta “generosa utopia para o século XXI” que é a Bioética.

A Bioética é, provavelmente, a área contemporânea na qual o debate filosófico e antropológico é mais “efervescente”, para além de ser transversal a toda a sociedade. No entanto, e à parte das questões “fracturantes” que acabam por o mediatizar, continua a ser um domínio “estranho” e pouco falado. A seu ver, o que se poderia fazer para gerar uma maior proximidade entre este domínio ainda “abstracto” e os cidadãos?

Tem toda a razão. De facto, o debate actual tem sido monopolizado por questões fracturantes, algumas das quais são problemas relacionados com uma percentagem da população muito pequena. Um dos factores que impulsionou o reconhecimento da importância desta área foi a necessidade de utilizar critérios éticos nas escolhas de saúde. O “God Committee” foi criado nos anos de 1960 nos EUA, quando apareceu a hemodiálise, para ajudar a estabelecer os critérios de quem iria beneficiar ou não desta tecnologia. A Bioética tem que reconquistar esta tarefa e assumir-se como uma área a ter em consideração em todas as áreas da política pública que tenham de definir critérios de justiça e equidade na distribuição dos recursos escassos.

Na medida em que vivemos no primado das “ciências exactas” – ou nas que cabem no famoso acrónimo STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática), existe a noção de que não há tempo para pensar ou “filosofar”. Com a sua experiência, que medidas se lhe apresentam mais urgentes e eficazes para um “casamento” duradouro entre a inovação e um debate crítico das suas implicações para a humanidade?

Daí a importância desta área do conhecimento. Os cientistas hoje são assolados com a máxima “tens que fazer sempre mais, melhor e mais depressa” e todos temos consciência que esta máxima poderá ter efeitos perversos no ritmo do progresso! Hoje existe, da parte da comunidade científica, uma apetência enorme para que a ética ajude a reorientar esta máxima no sentido de evitar atropelos ao melhor interesse do ser humano. É este caminho, que hoje se faz com os cientistas, que é o grande desafio dos próximos tempos. Que os cientistas se tornem mais permeáveis à reflexão ética e que quem faz ética esteja mais atento à complexidade da investigação científica permitindo garantir que o melhor interesse das pessoas e do ecossistema seja salvaguardo no presente e no futuro.

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