Em tempo de férias e do merecido descanso, é habitual escrevermos sobre temas leves, pois já basta o peso habitual do trabalho e das preocupações que caracterizam os demais meses. Mas, quer se queira, quer não, este foi um ano diferente. Mesmo que a crueldade e o absurdo façam parte integrante da vida da espécie humana, não estávamos habituados a assistir, em tempo real, a tantos momentos cruéis e a tantos acontecimentos absurdos. Mas também é devido a esta diferença que corremos o sério risco de nos tornarmos indiferentes. Assim, se nos queremos manter humanos, não podemos simplesmente premir ENTER e mudar de parágrafo. Ou podemos?
POR
HELENA OLIVEIRA

De uma forma ou de outra, o Verão – e a perspectiva de, finalmente e por uns dias, sairmos da rotina e nos esquecermos das lutas diárias que vamos tendo de ultrapassar no resto ano – fecha um ciclo – ou dá-lhe um intervalo – e permite-nos “fantasiar” que tudo está bem, que o despertador ficará sem tocar pela manhã, que as ondas nos esperam, que teremos direito a uma sombra e a um bom livro, que podemos esperar, numa esplanada, pelo pôr-do-sol, que vamos ouvir as gargalhadas (bem, e algumas birras também) dos nossos filhos ou netos, que os dias são compridos e que as noites convidam a um passeio, a momentos descontraídos e a planos variados. No Verão, parece que voltamos a ser donos das nossas vidas e esquecemos que, na maioria das vezes, é a vida que se nos impõe, com as suas obrigações, horários, tarefas para cumprir, objectivos para atingir, conflitos para gerir, e correr, sempre a correr, porque há sempre algo para fazer.

Ao longo dos últimos 12 meses e a acrescentar a todas estas imposições, pelas quais temos de dar graças, é claro – afinal, temos uma vida, uma família, um trabalho, os amigos e os bons momentos, mesmo que chova, esteja frio ou o vento nos empurre por direcções que nem sempre são as que escolheríamos – fomos mais bombardeados por mais más notícias do que por boas. Será assim todos os anos, poderemos argumentar. Afinal, aquilo que denominamos como civilização ou progresso nunca esteve isento de momentos cruéis, a paz nunca foi alcançada, continua a existir fome, guerras, doenças, injustiças, abusos, comportamentos desumanos e até o Planeta parece cansado, revoltado, expressando-se cada vez mais e com intensidade crescente através dos agora denominados eventos climáticos extremos, que parecem pactuar com o cansaço e a revolta da própria espécie humana.

Vivemos rodeados de tecnologias sofisticadas, preparam-se visitas a Marte, encontram-se curas para doenças altamente mortíferas, descodificam-se mistérios sobre o universo em que vivemos, temos máquinas que lêem os nossos corpos ou cérebros e carros que andam (quase) sozinhos. Pela primeira vez na história da humanidade, a maioria da população mundial não só é letrada – um evento com menos de 100 anos de idade – como tem também a possibilidade de contribuir activamente para uma cultura colectiva, escrita e gravada, numa espécie de cortesia por parte dos dispositivos generalizados na maioria dos países e que nos interligam a todos.

Ao mesmo tempo, e particularmente num curto espaço de tempo, muito do que dávamos como adquirido começou a desmoronar-se mesmo à frente dos nossos olhos. Há um ano, e apesar de o evento não ser novo, aqueles que liam os jornais na esplanada, ou que viam televisão numa noite quente de Verão ou a maioria que já não vive sem Internet, comentavam, horrorizados, as “massas” humanas que iam chegando à Europa – ou e principalmente, os que encontravam a morte nesta viagem – antes de um mergulho ou de uma caipirinha. Humanos anónimos, sem rosto, sem casa, sem esperança. De tão banalizadas as imagens, o horror transformou-se num mero encolher de ombros e em meras palavras de pena. Mas premimos ENTER e seguimos em frente.

Depois vieram os ataques terroristas em solo europeu (que já tinham ocorrido anteriormente, mas de forma mais “espaçada”e, talvez, menos mediatizada). Choque, solidariedade e indignação. Multiplicaram-se os “je suis”, em conjunto com a estupefacção de que tal não poderia estar a acontecer neste Velho Continente, o reduto da paz e da segurança. Nos outros, que estão longe, sempre aceitámos o facto com normalidade. Mas não no nosso. Pelo menos durante algum tempo. Extremaram-se posições, misturaram-se ódios e ignorâncias. Premimos ENTER e seguimos em frente.

Com os refugiados e os ataques terroristas, alteraram-se perspectivas, construíram-se novos muros, e não só de arame farpado. O Brexit sobrepôs-se ao Bremain, a extrema-direita europeia continua a somar adeptos, a convenção republicana oficializa o também apreciador de muros Donald Trump como representante do partido na corrida às presidenciais nos Estados Unidos e, da estupefacção à aceitação, premimos ENTER e seguimos em frente.

No entretanto e em Portugal, um vendaval de boas emoções varreu o país, e a começar pela vitória no Europeu de futebol, e todas as que se lhe seguiram, a moral lusa voltou a reerguer-se e um clima de optimismo, há tanto esperado, comprova que ainda é possível unirmo-nos em torno de um bem-estar colectivo que, pelo menos, ajuda a suportar melhor as má notícias que nos inundam a existência.

Só nos últimos 10 dias, morreram mais de 80 pessoas em Nice, a Alemanha sofreu quatro ataques, houve mais um tiroteio na Florida, o presidente turco “suspendeu” temporariamente a convenção dos Direitos Humanos, depois de um pseudo-golpe de Estado, considerando a possibilidade de restabelecer a pena de morte no país, quatro hospitais na Síria foram atingidos por bombardeamentos, Cabul sofreu mais um ataque terrorista e o mesmo aconteceu em Bagdade. A lista não iria, decerto, terminar por aqui, até esta peça estar fechada. E a verdade é que no dia em que o trabalho tem de estar pronto, mais notícias similares: um padre degolado em França, mais um ataque terrorista na Somália e, cada vez que nos ligamos a qualquer um dispositivo pela manhã, já nem sequer pestanejamos de horror ou transtorno. Limitamo-nos a processar a informação, a premir a tecla ENTER e a seguir em frente.

E, dia após dia, continuamos sem sabermos bem por que motivo a humanidade parece estar cada vez mais longe dos valores que a diferenciam das demais espécies. Todavia, e sendo para muitos tempo de descanso, talvez seja melhor considerar, como muitos reputados cientistas, que o nosso cérebro funciona como um computador e que merecemos fazer um shut down. Mas conseguiremos – e deveremos – fazê-lo?

© Don Hertzfeldt [The World of Tomorrow]
© Don Hertzfeldt [The World of Tomorrow]
Rodeados de máquinas, não estaremos a reagir mecanicamente?

No meio de toda a escalada evolucionista, não existem dúvidas de que são os nossos cérebros que fazem de nós humanos. São eles que dão origem aos nossos pensamentos, às nossas acções, movimentos e desejos, que armazenam as nossas memórias e que nos permitem seguir em frente todos os dias das nossas vidas. Mas e pelo menos nos últimos 50 anos, psicólogos, linguistas, neurocientistas e outros estudiosos do comportamento humano – e também muitos cientistas da computação – têm vindo a afirmar que o cérebro humano funciona como um computador, mesmo que, em muitos casos, a ideia só seja aceite metaforicamente. Em simultâneo, esta é uma discussão que apaixona um conjunto significativo de estudiosos de várias áreas e, como em qualquer debate, muitos são também aqueles que se recusam a admitir que o cérebro humano é, meramente um processador de informação. Afinal, e mesmo com os mais recentes e inimagináveis progressos nas áreas da Inteligência Artificial, dotar as máquinas de emoções e de “consciência” continua a ser um mais do que complexo puzzle.

Mas e ao mesmo tempo, e numa era em que as tecnologias estão contínua e absolutamente imersas nas nossas vidas, torna-se urgente – e mais do que nunca – definir e reclamar a nossa humanidade. E se só a espécie humana é dotada de emoções e de consciência, por que motivo nos assemelhamos cada vez mais a máquinas, limitando-nos a processar informação, como se o nosso corpo funcionasse como um hardware e os nossos pensamentos como software?

Como conseguimos assistir a tudo o que de errado se passa com a humanidade, limitando-nos a processar, armazenar e, sempre que possível, a despejar o “lixo” no recycle bin? Basta premir ENTER e seguir em frente?

Com a tecnologia a rodear-nos há já uns bons anos e com a Internet a oferecer-nos a oportunidade de nela estarmos continuamente mergulhados, começámos a percepcionar que esta não só nos conferiu o poder para nos ligarmos a milhares de pessoas em simultâneo, e a assistirmos às suas vidas em directo, como nos está a negar, também, ligações verdadeiramente humanas com aqueles que pertencem à nossa espécie. A banalização do terror, da morte, dos motins, a possibilidade de assistirmos, em tempo real, a tantas tragédias humanas, alimenta continuamente a nossa fome de informação, mas também nos enche de tal forma a barriga que acabamos por ficar enfastiados e, consequentemente, indiferentes, ao que se passa nos nossos ecrãs, que mais não são do que a transmissão directa de vidas mais ou menos longínquas e que basta mudar o feed de notícias e sintonizar a realidade que menos penosa nos é. É que temos ao dispor inúmeras formas de premir ENTER e seguir em frente.

Em simultâneo, e quando reflectimos nesta dicotomia humanos/máquinas, afirmam os especialistas que aquilo que nos continuará a distinguir enquanto espécie será a nossa imaginação e criatividade. Mas não só. Aquilo que realmente nos faz ser diferentes das demais espécies e também dos robots, que começam a conviver lado a lado com e na nossa existência, é o nosso desejo de moralidade e de compaixão que nos continua a estimular para perseguir ideais como a liberdade, a justiça e a igualdade para todos. E é sempre bom sublinhar que a moralidade não é algo que possa ser programado, pelo menos até então. Mas e se fosse possível? Se a Internet está a propiciar uma cultura e uma narrativa colectiva, porque não é possível criar também uma espécie de ética comum que aponte um caminho mais humano para todos nós?

Na revista Nautilus, foi publicado, neste último fim-de-semana, um interessante artigo que nos obriga a reflectir, e muito, sobre as possibilidades, sempre polémicas, sem dúvida, que os avanços na ciência e na tecnologia poderão conferir – ou não – à humanidade. A propósito da vontade do empreendedor e visionário Elon Musk de colonizar Marte dentro de poucos anos (sobre a qual o VER escreveu há pouco tempo), o artigo, intitulado “Martian Colonists Could Be Genetically Engineered for Democracy”, coloca a hipótese de os primeiros colonizadores do Planeta Vermelho serem “seleccionados” de acordo com uma “predisposição” para o civismo e para a democracia, sendo possível reforçar esta predisposição geneticamente.

O artigo sublinha que existem vários estudos que comprovam que os traços associados com o “envolvimento político” [positivo] são hereditários. Em um deles, geneticistas e cientistas políticos dinamarqueses afirmam que “dado o corpo de investigação existente que comprova que os traços pró-sociais são geneticamente influenciáveis, parece razoável admitir que o sentido de dever cívico e a eficácia política são, igualmente, parcialmente hereditários”. Num outro estudo, foi também demonstrada “a correlação existente entre o envolvimento cívico e o QI emocional positivo, a qual pode ser atribuída a genes que têm influência em ambas as características em causa.

Como sabemos, as questões éticas que se colocam no que respeita à (re)engenharia genética, e também aos avanços na Inteligência Artificial, são inúmeras e, infelizmente, ainda escassamente debatidas. Mas e polémicas à parte, o que poderá tornar a humanidade mais humana, passe o pleonasmo, numa era em que as fronteiras físicas estão cada vez mais esbatidas, o digital se mistura com o real, e em que passámos a ser espectadores ávidos das desgraças alheias e pouco interessados em contribuir para tornar verdade o tão estafado ideal para um mundo melhor? Quantas e quantas vezes vemos, lemos, ouvimos e partilhamos frases bonitas, modelos de negócios inovadores, o trabalho (crucial) de tantas entidades sem fins lucrativos, o esforço individual de inúmeras pessoas que, realmente, tentam tocar positivamente a vida de alguém, para logo a seguir sermos bombardeados com notícias cada vez mais violentas, cada vez mais tresloucadas, cada vez mais complexas, cada vez menos humanas? Continuaremos a premir ENTER e a seguir em frente?

Supostamente, este exercício – cheio de dúvidas e confusões, é certo – transformado em artigo tinha como objectivo desejar boas férias aos leitores, pedir-lhes para “desligarem” e descansarem”. O objectivo não foi, de todo, cumprido. Mas talvez no meio do descanso merecido, possa o leitor reflectir sobre a ideia central que todos gostaríamos de ver respondida: como reclamar a nossa humanidade num mundo cada vez menos humano?

Editora Executiva