A escassos dias da realização da Cimeira Mundial de Apoio Humanitário, as Nações Unidas lançaram um apelo a todos os cidadãos para que exijam a presença dos mais altos representantes do seu país no evento que ambiciona firmar compromissos para uma “responsabilidade partilhada” sobre a dramática crise de refugiados. Partindo do mote ‘milhões de pessoas são diariamente forçadas a fazer escolhas impossíveis’, a campanha assenta numa experiência online a contra-relógio baseada em testemunhos reais, que nos impele a colocarmo-nos na pele dos milhões de pessoas que vivem hoje de forma desumana
POR GABRIELA COSTA

“Istambul é a oportunidade. A História irá julgar-nos pela forma como a vamos usar”
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“Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar”. Assim escreveu, com toda a actualidade, Sophia de Mello Breyner Andresen. Assim se abre a ‘página’ portuguesa da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR). E todos os dias nos deparamos, na televisão, nos jornais ou nas redes sociais, com a primeira parte desta oração. Mas, e mesmo sem ignorar, a verdade é que também todos os dias, lamentamos por instantes – e muitas vezes mais para os outros nos ‘verem’ do que numa introspecção necessária a fazermos alguma diferença -, para logo virar a página e prosseguir com as nossas confortáveis vidas.

Indiferença ou falta de acção, o resultado parece ser uma necessidade crescente de captar espectadores, ouvintes, leitores das cada vez mais – e mais dramáticas – histórias de quem vive de forma desumana através de uma abordagem realista, interactiva, experiencialmente dramática, ou mesmo violenta.

Numa campanha intitulada “E se fosse eu?”, recentemente realizada nas escolas do país (e que o VER divulgou), a PAR disseminou o objectivo de promover a empatia entre os jovens portugueses e aqueles que fogem da guerra da Síria e procuram apoio, desafiando os alunos a levarem para a escola uma mochila com os bens que transportariam se precisassem de fugir da guerra deixando tudo para trás.

O Fórum Económico Mundial incluiu este ano a iniciativa “A Day in the Life of a Refugee at Davos” (retratada também pelo VER), obrigando muitos dos cerca de 2500 líderes mais poderosos do planeta presentes a imaginar, através de um simulacro com 75 minutos, aquilo que vivem os refugiados que tentam a todo o custo chegar à Europa em busca de paz.

No final de Abril, foi a vez das Nações Unidas lançarem uma campanha (apoiada por personalidades públicas como Daniel Craig, Forest Whitaker, Rosario Dawson, Cody Simpson, Michael Douglas e a portuguesa Catarina Furtado) sobre o World Humanitarian Summit, que acontece já nos dias 23 e 24 de Maio, em Istambul, na Turquia, apelando a todos os cidadãos para que exijam, junto dos seus Governos, mais acção humanitária, através de uma pergunta a que devem dar resposta submetendo-se a uma experiência que se traduz numa difícil missão: “como é que lidaria com uma escolha impossível?” Num exercício online a contra-relógio, somos impelidos a colocarmo-nos na pele dos milhões de pessoas que diariamente são forçadas a fazer escolhas impossíveis. Literalmente.

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Só há uma escolha, a própria humanidade

A poucos dias da realização da iniciativa do secretário-geral das Nações Unidas que irá reunir representantes dos governos, do sector privado, de organizações multilaterais, da sociedade civil, do meio académico e das comunidades afectadas pelas crises, num diálogo entre a comunidade internacional que visa a resolução dos desafios globais que causam grande sofrimento humano, em particular os relacionados com o deslocamento forçado e a crise de refugiados que afecta milhões de pessoas, o questionário baseado em experiências reais visa ‘abanar’ a sociedade civil, compelindo-a a ter voz activa nas medidas urgentes que se exigem aos líderes dos 195 Estados-membros da ONU com vista à construção de um mundo mais humano para todos. A participação no mesmo é especialmente relevante porque a grande maioria destes líderes não confirmou ainda a sua presença na Cimeira.

Uma vez iniciada esta violenta viagem de minutos pelos principais dramas que marcam o dia-a-dia de quem foge da guerra ou das catástrofes que obrigam a abandonar o seu país de origem, numa jornada interminável em busca de um destino seguro, os participantes são confrontados com uma série de questões impossíveis: em fuga de uma cidade debaixo de fogo, escondo-me com os meus familiares ou continuo a correr? Deslocado da minha casa, quase sem quaisquer posses, compro comida ou medicamentos para a minha família? Confinado num centro de evacuação de emergência depois de uma tempestade ter destruído tudo em redor, vejo uma criança a olhar para um cemitério de vítimas, despojadas a um canto. Digo-lhe para não olhar ou converso com ela sobre o sucedido? Em perigo, um desconhecido oferece-se para nos ajudar a atravessar a fronteira, a troco de um pagamento ilegal. Arrisco ou permaneço sem saídas? À deriva no Mediterrâneo, a qual dos meus filhos entrego o último colete salva-vidas? A viajar há dias nesse barco superlotado, uma mulher ao meu lado não tem mais forças para resistir e tenta entregar-me o seu bebé antes de submergir na água. Agarro-o ou concentro-me apenas em sobreviver?

Perante este cenário de devastação, as muitas perguntas colocadas ao que se pretende ser um movimento social sem precedentes têm por objectivo encontrar uma só resposta para enunciar bem alto aos líderes mundiais: Só há uma escolha, a defesa da humanidade.

Para impulsionar essa reflexão, Ban Ki-moon preparou o relatório “One Humanity: Shared Responsibility”, que deverá servir de base à discussão na Cimeira Mundial de Apoio Humanitário, e lançar a Agenda para a Humanidade, cujas mudanças a alcançar a partir dos compromissos globais que propõe quer ver trabalhadas muito para além da data deste encontro mundial. Os documentos, a que o VER dedicou um artigo pouco depois da sua apresentação, enfatizam a necessidade de colocar a humanidade no centro da decisão política global, e apresentam as grandes responsabilidades que a comunidade internacional tem de assumir. De vez.

Só na Síria cerca de 4,8 milhões de pessoas foram forçadas a fugir através das fronteiras ao longo dos cinco anos de guerra, e 6,6 milhões estão internamente deslocadas. Enquanto se arrastam as negociações para encontrar uma paz duradoura, o secretário-geral da ONU insiste na necessidade de fornecer reinstalação a estes refugiados, instando os países terceiros a partilhar as suas responsabilidades com os países vizinhos que já o vão fazendo. O que “requer um aumento exponencial da solidariedade global”, como afirmou na reunião das Nações Unidas realizada no final de Março em Genebra, a qual reuniu os representantes de 92 países, e de várias organizações governamentais e não governamentais.

Ban Ki-moon de visita a Bujumbura, Burundi  © ONU/Eskinder Debebe
Ban Ki-moon de visita a Bujumbura, Burundi © ONU/Eskinder Debebe

Por uma nova era global de solidariedade

Numa sessão preparatória  da Cimeira Mundial Humanitária, realizada a 4 de Abril pelo Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA) na sede da ONU, em Nova Iorque, o Secretário-geral da ONU apelou à participação dos chefes de Estado e de governo no evento, para que tornem tão global quanto possível a mensagem de que “não vão aceitar a erosão dos valores da humanidade a que assistimos, hoje, no mundo”.

Sublinhando a importância da presença dos líderes e da sua intervenção nas conferências agendadas para o evento nos dias 23 e 24 de Maio, Ban Ki-moon defendeu que, acima de qualquer outra estratégia para assegurar o sucesso da Cimeira, esta é “a melhor forma de alcançar uma mudança corajosa e ousada […] para que se tomem decisões”, relativamente às cinco responsabilidades centrais da Agenda para a Humanidade: liderança política para prevenir e acabar com conflitos; preservar as normas que salvaguardam a humanidade; não deixar ninguém para trás; mudar a vida das pessoas, desde a prestação de ajuda humanitária até à erradicação das privações;  e investir na humanidade.

Insistindo que “não devemos abandonar as pessoas que precisam de nós nos momentos em que mais precisam de nós” e, principalmente, “decepcionar os muitos milhões de homens, mulheres e crianças que vivem em necessidade extrema”, o chefe das Nações Unidas encorajou, com estas palavras, os Estados-membros “a enviarem representes ao mais alto nível, demonstrando a sua liderança sobre esta que é uma das maiores exigências do século XXI: Istambul é a oportunidade. A História irá julgar-nos pela forma como a vamos usar”.

Ao longo dos dois dias serão organizadas sete mesas redondas, onde “todos os agentes da mudança” – chefes de Estado e de governo, sociedade civil e sector privado – se poderão reunir, num espaço de diálogo crucial para a determinação e partilha de metas ambiciosas (e urgentes) para alcançar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e mitigar os enormes desafios globais que assolam o nosso tempo, como os conflitos armados, os deslocamentos forçados, os desastres naturais e alterações climáticas, a pobreza ou as crescentes desigualdades sociais e económicas.

Estes são os dramas que fazem com que, a cada ano, mais e mais pessoas aumentem o actual – e vergonhoso – número de 125 milhões de cidadãos que necessitam, a nível mundial, de assistência humanitária e protecção (dos quais 60 milhões tiveram de abandonar as suas casas, incluindo 30 milhões de crianças, ou seja, metade das vítimas de deslocamento forçado). E é perante esta terrível realidade que, por mais banalizado que possa parecer estar o apelo de solidariedade global e de acção colectiva do secretário-geral da ONU, a verdade é que só a “responsabilidade partilhada” através da concretização de acções e compromissos concretos exigida por Ban Ki-moon a todos poderá ajudar a aliviar o sofrimento humano destes muitos milhões.

E assim repetimos também nós, em mais um artigo, que não é possível “alcançar um mundo seguro e digno” sem trabalhar em conjunto para lidar com as crescentes necessidades humanitárias de todas estas crianças, mulheres e homens.

Campo de refugiados Nahr el Bared para refugiados palestinianos, Tripoli, Líbano © Giles Clarke/Getty Images
Campo de refugiados Nahr el Bared para refugiados palestinianos, Tripoli, Líbano © Giles Clarke/Getty Images

Os compromissos da esperança no futuro

Os compromissos globais propostos por Ban Ki-moon para pôr em prática a Agenda para a Humanidade foram disponibilizados para apreciação dos Estados-membros no final de Março e estão já finalizados. No papel. Trata-se de compromissos voluntários e não vinculativos, que podem ser individuais ou conjuntos, e que serão adoptados na Cimeira Mundial Humanitária, a qual “não é um ponto final, mas o começo de uma nova era de solidariedade internacional para deter o terrível sofrimento das pessoas afectadas pelos conflitos e desastres”. Os resultados da Cimeira – cujo sucesso deverá fazer uma enorme diferença qualitativa na resolução de boa parte do problema, esperam as Nações Unidas – serão apresentados numa síntese dos trabalhos, e dela sairá um documento intitulado “Compromissos para a Acção” que, em conjunto com a Agenda para a Humanidade, constituirá um importante instrumento para definir o futuro.

O acompanhamento das decisões tomadas no evento será garantido através de uma primeira reunião de avaliação da Comissão dos Assuntos Humanitários do Conselho Económico e Social da ONU, em Junho, e quando Ban Ki-moon submeter o seu relatório à Assembleia-Geral, em Setembro, apresentando os resultados da Cimeira e outras medidas importantes para o progresso nesta área.

Nesta fase, os Estados-membros deverão determinar quais as recomendações do relatório que irão levar a cabo, através de discussões e negociações intergovernamentais. As resoluções humanitárias anuais da Assembleia-Geral da ONU, no Outono, “irão, provavelmente, conduzir a muitas destas importantes discussões”, divulga o  Centro Regional de Informação das Nações Unidas (UNRIC).

Recordando que em 2015 “alcançámos grandes vitórias ao nível da solidariedade global” (como a Agenda para a Acção de Adis Abeba, o Quadro de Sendai para a Redução do Risco em Desastres, a já referida Agenda 2030 e o Acordo sobre Alterações Climáticas de Paris), Ban Ki-moon acredita que é possível “fazer da Cimeira Mundial de Ajuda Humanitária um passo histórico na defesa da nossa humanidade comum”.

Como escreve na introdução do Relatório “One Humanity: Shared Responsibility”, “durante o meu mandato como secretário-geral [da ONU] tenho sido inspirado pelo que a comunidade internacional consegue alcançar quando age em conjunto. E é perseguindo este caminho – mesmo continuando “profundamente preocupado com o estado da nossa humanidade”, enquanto cumpre o último ano desta enorme missão, que será sucedida, a partir de Janeiro de 2017, por um novo secretário-geral (ver Caixa) – que não desiste de acreditar num futuro pautado pela esperança de uma vida digna para toda a população.

Um futuro que começa agora, com a primeira Cimeira exclusivamente dedicada a constituir o momento em que “nós, os povos” (chefes de Estado e de Governo, representantes das comunidades afectadas, organizações nacionais e internacionais de ajuda humanitária, líderes globais de opinião e dirigentes dos sectores privado e social) “chegaremos a acordo sobre como podemos acabar com os conflitos, aliviar o sofrimento e reduzir o risco e a vulnerabilidade”, regista nesse mesmo relatório que, independentemente dos resultados que se vierem a alcançar, há-de deixar para a posteridade toda a sua humana determinação.

A também “nós, os povos”, cidadãos de todo o mundo, cabe não só ver, ouvir e ler, mas também agir. Já de seguida, e só para começar, subscrevendo o apelo das Nações Unidas que exige ao líder máximo de cada um dos 192 países onde foi lançado este repto para que compareçam, no dia e à hora, “preparados para assumirem as suas responsabilidades para com uma nova era nas relações internacionais” que salvaguarde a humanidade.


© DR
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Sucessor de Ban Ki-moon
Um candidato à altura dos enormes desafios das Nações Unidas

No ano em que se celebram os 70 anos da Organização das Nações Unidas, a liderança da organização intergovernamental criada no pós-guerra de 1945 para promover a cooperação internacional está em discussão, num processo inédito na história da ONU. Pela primeira vez, as Nações Unidas irão fazer uma selecção do seu próximo secretário-geral com base em mecanismos que permitem uma auscultação dos Estados-membros, audições aos candidatos e mobilização da opinião pública.

Os desafios que aguardam o sucessor de Ban Ki-moon são tão exigentes como o é, no esforço de resolução dos conflitos e dramas humanos, o sul coreano que está à frente da ONU desde 2007, e que manterá funções como 8º secretário-geral até ao final de 2016.

O sucessor de Ban Ki-moon terá de trabalhar em dossiers complexos para encontrar soluções nas áreas do desenvolvimento sustentável, alterações climáticas, pobreza extrema (que afecta actualmente mais de 800 milhões de pessoas a nível mundial), crise de refugiados (envolvendo 1,5 milhões de pessoas que carecem de ajuda humanitária e 60 milhões de deslocados, dos quais metade são crianças), conflitos armados, extremismo violento e terrorismo, e consequente aumento das desigualdades sociais, da discriminação e da xenofobia.

Os candidatos, que já remeteram por escrito à Assembleia Geral da ONU as suas propostas para reformar o funcionamento das Nações Unidas, as quais serviram de base às audições realizadas em meados de Abril último, terão de demonstrar ser capazes de assumir funções numa estrutura obrigada a adaptar-se aos emergentes desafios globais, que contribua progressivamente para dar respostas eficazes à difícil realidade do século XXI.

Entre os nove candidatos ao cargo – António Guterres; Danilo Türk, ex-presidente da Eslovénia; Igor Luksic, ex-primeiro-ministro do Montenegro; a búlgara Irina Bokova, directora-geral da Unesco; Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia; Natalia Gherman, ex-ministra dos Negócios Estrangeiros da Moldávia; Srgjan Kerim, o macedónio que presidiu à Assembleia Geral da ONU entre 2007 e 2008; Vesna Pusic, ex-vice-presidente e ex-ministra dos Negócios Estrangeiros da Croácia; e Vuk Jeremic, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros da Sérvia e o último a oficializar a candidatura – figura com notoriedade, o ex-primeiro ministro português (1995 e 2002) e alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados entre 2005 e 2015.

No final da sua audição na Assembleia Geral da ONU, que mereceu rasgados elogios por parte da diplomacia internacional, António Guterres declarou que “nem optimista, nem pessimista” está “determinado” a levar a bom porto “um projecto sólido para as Nações Unidas”.


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