Em vez de colocar o foco na informação, na educação e em serviços e ferramentas que possam ser facilmente compreendidos e aplicados e que contribuam para proteger crianças e jovens dos potenciais riscos online, o Regulamento Geral de Protecção de Dados, que impõe restrições etárias, apenas irá contribuir para agravar um problema, seguindo a máxima “quando a lei ignora a realidade, a realidade responde ignorando a lei”
POR TITO DE MORAIS

#RGPDDáATuaOpinião
Após quatro anos de trabalho, em meados de Abril de 2016 o Parlamento Europeu aprovou o Regulamento Geral de Protecção de Dados. O RGPD entrará em vigor em Maio de 2018, visando proteger a nossa privacidade e os nossos dados pessoais, forçando as empresas fornecedoras de serviços da sociedade de informação a, entre outros aspectos:

  • Tratar os nossos dados de forma justa e transparente;
  • Pararem de transferir os nossos dados pessoais a entidades terceiras sem o nosso consentimento explícito;
  • Respeitarem o nosso “direito ao esquecimento”;
  • Pararem com práticas de data-profiling de menores de idade.

Mas como no melhor pano cai a nódoa, através do seu artigo 8.º (Artigo 8 UE Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados – “Condições aplicáveis ao consentimento de crianças em relação aos serviços da sociedade da informação”), o RGPD impede os menores de 16 anos de aceder aos serviços da sociedade de informação sem o consentimento dos seus pais ou encarregados de educação. No entanto, aos Estados-Membros é dada a possibilidade de disporem “no seu direito, uma idade inferior (…) desde que essa idade não seja inferior a 13 anos”.

[quote_center]A autonomia desenvolve-se preparando as crianças e não limitando as suas escolhas[/quote_center]

A ineficácia das restrições etárias

Segundo dados de um estudo (“Social Networking, Age and Privacy”, Livingstone, S., Ólafsson, K., Staksrudd, E.) publicado em Abril de 2011 pelo projecto EU Kids Online, 38% dos jovens europeus entre os 9 e os 12 anos tinham um perfil numa rede social, ou seja, mentiam relativamente à idade para poderem criar uma conta numa rede social. Da minha experiência, resultante de visitas a inúmeras escolas de 1º e 2º ciclo um pouco por todo o País, diria que actualmente este número peca por defeito, arriscando que em Portugal a percentagem se deva situar actualmente à volta dos 75%, se é que não é mesmo superior.

Estes dados demonstram a aparente ineficácia das restrições etárias como forma de impedir o acesso às redes sociais por parte dos utilizadores mais novos, não os protegendo também dos seus riscos potenciais. Resumindo, em vez de colocar o foco na informação, na educação, em serviços e ferramentas que possam ser facilmente compreendidos e aplicados e que possam contribuir para proteger crianças e jovens dos potenciais riscos a que podem estar expostos online, sobre este aspecto o RGPD apenas irá contribuir para agravar um problema, seguindo a máxima “quando a lei ignora a realidade, a realidade responde ignorando a lei”.

[quote_center]O requisito do consentimento parental para a recolha e tratamento de dados de menores de 16 anos vai obrigar as empresas a recolher mais informação de crianças e jovens, contradizendo o objectivo de proteger e reduzir a sua recolha[/quote_center]

Ignorar os direitos da criança e dos pais

O Artigo 8.º do RGPD da UE viola claramente diversos Direitos da Criança, nomeadamente:

  • O direito a ser ouvido, consagrado no Artigo 12.º da Convenção dos Direitos da Criança, da UNICEF. Apesar de consagrado em tratados e convenções internacionais, assim como em leis nacionais, o direito de a criança ser ouvida e que a sua opinião seja tida em conta em todos os assuntos que lhe dizem respeito e se relacionem com os seus direitos, como é claramente o caso do RGPD, não foi observado. Crianças e jovens, através de respectivas associações representativas, não foram ouvidas na elaboração do RGPD, sendo importante que o sejam agora na consulta pública que será promovida em Portugal.
  • A liberdade de expressão, pensamento e consciência, consagrada nos Artigos 13.º e 14.º da Convenção, estabelece que as crianças “têm o direito de exprimir os seus pontos de vista, obter informações, dar a conhecer ideias e informações, sob forma oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à escolha da criança”, o que poderá não acontecer em resultado do Artigo 8.º do RGPD. Por outro lado, são também violados os direitos e deveres dos pais e representantes legais da criança para a orientar no exercício do direito à liberdade de pensamento.
  • O direito de livre reunião e associação, consagrado no Artigo 15.º da Convenção e que reconhece o direito da criança à liberdade de se reunir, de aderir ou formar associações, é claramente violado pelo Artigo 8.º do RGPD.
  • O superior interesse da criança e respeito pelas responsabilidades, direitos e deveres dos pais, consagrados nos Artigos 3.º, 4.º e 5.º da Convenção e que reconhece a liberdade dos pais e encarregados de educação para proteger e orientar os seus filhos e educadores da forma que julgarem mais adequada.

[quote_center]O Artigo 8.º do RGPD contribui para aprofundar o fosso digital entre jovens, o desperdício de oportunidades de inclusão e o agravamento da discriminação cultural[/quote_center]

Autonomia: essencial ao crescimento

O desenvolvimento da autonomia é essencial para o crescimento, ajudando crianças e jovens a gerir por si próprios os desafios com que se confrontarão nos diversos domínios na sua vida adulta futura. Por outro lado, quanto mais oportunidades os adolescentes beneficiarem, maior será a sua resiliência relativamente a riscos potenciais. Resumindo, a autonomia desenvolve-se preparando as crianças e não limitando as suas escolhas, como na prática acontece com o Artigo 8.º do RGPD.

Aprofundar o fosso digital

Criando situações de desigualdade entre jovens que têm o consentimento parental para usar os serviços da sociedade de informação e outros que não têm, o Artigo 8.º poderá ter um efeito nefasto, ostracizando alguns jovens relativamente aos seus pares e colocando-os em risco na eventualidade de optarem por usar os serviços mentindo relativamente à sua idade. Por outro lado, a eventualidade de alguns pais não darem o seu consentimento poderá colocar alguns docentes em posições de grande fragilidade, colocando-os perante o dilema de privar alguns alunos ou a totalidade dos alunos de informação importante para os preparar para o uso seguro e responsável das ferramentas e plataformas da sociedade de informação. Desta forma, o Artigo 8.º do RGPD contribui para aprofundar o fosso digital entre jovens, para o desperdício de oportunidades de inclusão e para o agravamento da discriminação cultural.

Perpetuar desigualdades

Ao permitir que os Estados-Membros possam definir idades diferentes para o requisito de consentimento parental, o RGPD estará na realidade a perpetuar as desigualdades no acesso a oportunidades e a alargar o fosso digital entre os jovens adolescentes dentro do espaço dos países da União Europeia. De facto, os jovens residentes em países sujeitos a limites de idade superiores ficarão em clara desvantagem, na medida em que o acesso às oportunidades potenciadas pelos serviços da sociedade de informação se dará mais tarde.

Incongruência e Contradição

O requisito do consentimento parental para a recolha e tratamento de dados de menores de 16 anos vai obrigar as empresas a recolher mais informação de crianças e jovens, nomeadamente dados de localização e dados relativos aos pais, o que se revela ser uma incongruência do RGPD, contradizendo um dos objectivos declarados, que é proteger e reduzir a recolha de dados pessoais dos menores de idade.

Estas são algumas das razões que me levaram a juntar-me a um grupo de profissionais e organizações que, em diversos países da União Europeia, pretendem lançar o debate sobre o RGPD e dar voz aos jovens sobre os seus direitos online. Para o efeito, criámos uma brochura e um manual de acção para jovens que serão lançados em meados de Setembro e que incluem uma série de actividades para as quais pais e encarregados de educação, professores e educadores e líderes juvenis podem desafiar crianças e jovens. Para que tal aconteça, junte-se à iniciativa #RGPDDáATuaOpinião.

Co-fundador do projeto “Agarrados à Net”. Membro fundador e membro da direção da AjudAjudar - Associação para a Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens, membro da Rede Esse Mundo Digital, Membro Consultor da Comissão Especial de Privacidade e Proteção de Dados da OAB Campinas e do Conselho Consultivo do Instituto de Tecnologia e Dignidade Humana. É coautor do livro "Cyberbullying - Um Guia Para Pais e Educadores", autor de inúmeros artigos sobre uso excessivo das tecnologias por crianças e jovens, foi ainda co-autor de um capítulo do livro “Dependência de Internet em Crianças e Adolescentes - Fatores de risco, avaliação e tratamento”.