A inteligência é dos homens, a simpatia é das mulheres; as ciências são para eles e as letras são para elas. Elas são bonitas e eles são fortes. Passamos a vida a ouvir estas e outras expressões que revelam a enorme diferença que existe entre o sexo masculino e o feminino. Algumas delas, por vezes sem darmos conta, passamos até a assumir como válidas e verdadeiras. Contudo, e contrariamente ao que podemos pensar, as mesmas não nascem connosco, sendo, ao invés, ensinadas. É isso que revela um estudo da revista Science: é a partir dos seis anos que o estereótipo “inteligência = homens” começa a predominar entre o universo feminino
POR
MÁRIA POMBO

Em França, e numa experiência que tem corrido as redes sociais, levada a cabo pelo Observatório das Desigualdades, diversas foram as crianças que expressaram o seu descontentamento relativamente às diversas desigualdades sociais, nomeadamente entre homens e mulheres, relativamente a minorias étnicas, a comunidades desfavorecidas ou a pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. No vídeo, que serve como introdução a este artigo, é simulado um jogo de Monopólio aparentemente semelhante ao original, e no qual se sentam à mesma mesa diversas crianças com as características acima referidas. No decorrer do mesmo, é possível observar a indignação do grupo quando, na distribuição das notas, a menina presente recebe metade do dinheiro “só por ser rapariga”. Complementarmente, um menino de raça negra só pode comprar determinados imóveis, com a justificação de ser “de raça negra”, o mesmo acontecendo com um outro jovem que personifica as famílias desfavorecidas. Uma outra situação injusta está, por fim, relacionada com o facto de um jovem de muletas ter sido impedido de comprar uma estação ferroviária pelo facto de ser um cidadão “com mobilidade reduzida”.

[su_youtube url=”https://www.youtube.com/watch?v=S8r7h-WgEDs” width=”660″ height=”200″]No vídeo, tudo não passou de um jogo e de uma brincadeira com crianças, mas o que preocupa é que estas desigualdades – às quais as crianças apontaram de imediato o dedo e consideraram profundamente injustas – são reais e acontecem todos os dias, entre adultos. Na verdade, e de acordo com a mesma organização, apenas 14% das minorias étnicas que procuram casa recebem uma resposta positiva, em França. Complementarmente, 66% das pessoas que têm um ordenado elevado são proprietárias de habitação própria, contra apenas 16% das pessoas que possuem baixos rendimentos. Ainda acerca deste tema, as crianças desfavorecidas têm um progresso escolar mais lento que as restantes, sendo que 35% delas repetem o ano, aos 14 anos.

Para as mesmas situações “criminosas”, as pessoas com baixos rendimentos têm três vezes mais possibilidades de serem condenadas do que aquelas que vivem de uma forma mais confortável. Por fim, mas definitivamente não menos importante, o Observatório das Desigualdades, em França, conclui que, em termos profissionais, as mulheres têm um ordenado 23% inferior ao dos seus congéneres masculinos.

Já em Portugal, e de acordo com o Observatório das Desigualdades português, “as mulheres ganham, em média, menos 18% que os homens”. Entre 2007 e 2015, Portugal foi, aliás, o país da Europa onde a diferença salarial teve o aumento mais significativo. Como se isso não bastasse, a mesma entidade revela que a participação feminina no mercado de trabalho tem vindo a diminuir nos últimos seis anos.

E a desigualdade ocorre em França, em Portugal e em tantos e tantos países. Por isso, e aproveitando uma ideia do vídeo apresentado neste artigo, “é tempo de mudar as regras”.

Esta desigualdade sentida a diversos níveis e por tantos segmentos populacionais – que sobressai nas regras deste jogo, mas que está tão enraizada na cultura dos povos que mal damos conta – é a mesma que preocupa os olhares mais atentos e aqueles que não entendem o porquê de a mesma continuar a existir, quando está provado que não é a cor de pele, o género, o dinheiro ou a mobilidade que determina o valor de uma pessoa. Os estereótipos existem e parece que já nascem connosco. Contudo, a ciência diz-nos que não é bem assim e que é através da educação – ou deseducação – que damos às nossas crianças que estes prevalecem e passam de geração em geração, de forma praticamente involuntária.


Quando a educação deseduca

Foi precisamente para compreender quando e de que modo é que a desigualdade passa a ser aceite pelos mais novos, e focando-se especificamente nas questões relacionadas com o género, que dois investigadores realizaram uma análise, com base num universo de 400 crianças entre os cinco e os sete anos. O estudo foi publicado recentemente pela revista Science, e os resultados – talvez surpreendentes – revelam que entre os cinco e os sete anos as mentalidades das crianças, principalmente das raparigas, alteram-se significativamente e começam a revelar que estas já assimilaram as diferenças entre eles e elas em muitos aspectos (como a simpatia, a inteligência, a perseverança e até que alguns jogos ‘são mais para rapazes’ e outros ‘são mais para raparigas’).

A análise integrou três etapas distintas. Na primeira, foi contada às crianças uma história sobre uma pessoa “muito, muito inteligente”, sem pistas acerca do seu sexo nem características que o pudessem revelar, tendo-lhes sido pedido para – entre quatro figuras (dois homens e duas mulheres) – escolherem aquela que lhes parecia coincidir com a figura descrita. No segundo momento, foram apresentados diversos pares de pessoas adultas – uns compostos por dois homens, outros por duas mulheres, e outros por ambos os sexos -, tendo sido pedido para escolherem qual dos elementos de cada par era “muito, muito inteligente”. Por fim, na terceira etapa, cada criança foi desafiada a adivinhar ou sugerir alguns objectos (como um martelo) ou características (como ser inteligente) que pudessem corresponder a algumas figuras de homens e mulheres. Em todas as questões, as imagens mais escolhidas foram as mais apelativas e atractivas, e o vestuário de trabalho foi, por diversas vezes, associado à inteligência. E a ideia de “muito, muito agradável/gentil” foi igualmente considerada, tal como a de “muito, muito inteligente”.

Os resultados da análise revelam que as ideias das crianças sobre genialidade e brio alteram-se rapidamente entre os cinco e os sete anos. Aos cinco anos, tanto os rapazes como as raparigas associam estas qualidades ao seu próprio género. Contudo, a partir dos seis anos, as raparigas têm uma tendência muito menor – comparativamente aos rapazes – de associar a genialidade ao seu género. Desta forma, os autores do estudo concluem que o estereótipo “genialidade = homens” começa a existir entre os seis e os sete anos.

Complementarmente, é também nesta idade que a gentileza começa a ser associada ao sexo feminino. E esta percepção que as raparigas a partir dos seis anos têm de que a genialidade está mais acentuada nos homens e a gentileza faz mais parte do sexo feminino é independente da idade dessas pessoas. Ou seja, o estudo indica que, a partir dos seis anos, as raparigas começam a acreditar que tanto os homens adultos como os rapazes da sua idade são mais inteligentes que as pessoas do sexo feminino, independentemente de estas serem mulheres adultas ou crianças.


É tempo de acabar com os estereótipos

O que poderá, então, explicar esta queda tão acentuada na avaliação feita pelas raparigas ao seu próprio género? Embora tenhamos consciência de que existem diversos factores que influenciam o modo de ver o mundo das crianças – como a raça, a classe social, a condição física e a própria cultura em que esta está inserida – os autores do estudo explicam que esta mudança de percepção entre os cinco e os seis anos está relacionada com a forma como é alcançado o sucesso escolar (o qual está, normalmente, associado à inteligência). Contudo, o curioso é que, embora as meninas mais velhas associem que é o seu género que tem melhores notas, estas não associam “ter boas notas” a “ser um génio” mas sim a “trabalhar arduamente”.

Esta ideia é confirmada na terceira etapa do estudo, que se debruçou sobre as diferenças entre “ser muito inteligente” e “trabalhar bastante”, através de diversos jogos. O resultado foi que as raparigas mais velhas se revelaram pouco interessadas nos jogos que estimulavam a inteligência, mas muito empenhadas naqueles que necessitavam de trabalho e dedicação. Já as crianças com apenas cinco anos não revelaram diferenças entre a escolha de uns e de outros jogos. Com base nesta observação e nas perguntas que foram sendo feitas ao longo de todo o processo, os autores concluíram também que a escolha dos jogos é influenciada pela percepção que as crianças mais velhas têm sobre o seu grau de inteligência/genialidade e a sua capacidade de trabalho/perseverança.

Uma outra possível explicação para esta tendência está relacionada com o facto de, desde cedo, as meninas serem ensinadas a ser modestas (não se assumindo, neste caso, tão inteligentes quanto sabem que são), sendo que esta “educação” não é tão acentuada junto dos rapazes. Contudo, para este caso concreto, os autores afirmam que as questões relacionadas com a modéstia não fazem sentido, já que o que foi pedido às raparigas foi, por um lado, para escolherem um jogo e, por outro, para analisarem a inteligência/perspicácia de outras pessoas, e não a sua.

Independentemente dos eventuais motivos, importa salientar – e esta é a parte grave de toda a situação – que muitas crianças, independentemente do género, referem que a genialidade/inteligência é uma característica masculina, logo desde tenra idade. E este estereótipo, que começa nos primeiros anos, é o mesmo que molda a maioria das escolhas que são feitas ao longo da vida, nomeadamente ao nível profissional, quando chega a hora de escolher uma profissão ou seguir uma carreira.

Utilizando a ideia do Observatório das Desigualdades e passadas 24 horas sobre a comemoração do Dia Internacional da Criança, não só chegou a hora de “mudar as regras do jogo”, como a mesma já é mais do que tardia.

Jornalista

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