O secretário-geral das Nações Unidas deverá ter um papel fundamental na manutenção da paz e na resolução de conflitos a nível global. No entanto, a realidade tem demonstrado o seu fraco poder. Talvez por ser eleito por um grupo restrito de países do Conselho de Segurança que se regulam pelo critério da “ameaça menor”. Com o objectivo de inverter esta situação, a campanha mundial 1 For 7 Billion propõe que o líder seja eleito de forma transparente e com base no mérito, defendendo que os próximos chefes da organização devem estar altamente preparados para enfrentar os desafios mundiais e devolver a esperança aos povos
POR
MÁRIA POMBO

Descrito por Trygve Lie, primeiro chefe das Nações Unidas, entre 1946 e 1952, como a “profissão mais impossível do mundo”, o cargo de secretário-geral desta organização intergovernamental é também – ou deveria ser – um dos mais importantes, sendo responsável por mais de 40 mil funcionários dos seus 193 países-membros.

De alterações climáticas a conflitos armados, de extremismo a pandemias, muitos dos problemas mundiais exigem soluções globais, principalmente numa era em que diversas nações têm vindo a dividir o mundo, enfrentando, por um lado, ou promovendo, por outro, severas crises a vários níveis, e pondo em causa os direitos humanos. Neste contexto, e considerando o seu papel fundamental na promoção da cooperação internacional, a ONU tem a responsabilidade de aceitar os actuais e extremamente complexos desafios, fazendo-lhes face e resolvendo-os. Para isso, a organização precisa de um líder altamente qualificado e preparado para resolver as crises mundiais, salvando assim o maior número de vidas possível e devolvendo a esperança aos povos. Defender e preservar os valores e ideais de humanidade consagrados na Carta da ONU é uma das grandes funções do seu secretário-geral, de acordo com a máxima “nós, os povos das Nações Unidas”.

Desde a criação da organização, em 1945, este papel tem vindo a ganhar importância a nível de prevenção de guerras através do diálogo, de promoção de parcerias entre ONG e empresas, e também de incentivo aos Estados em termos de responsabilidades ambientais e de direitos humanos. Até agora, o mecanismo de eleição deste cargo tem sido bastante secreto e fechado: os Estados-membros interessados nomeiam candidatos e apresentam-nos ao Conselho de Segurança da ONU – composto apenas por 15 membros, dos quais cinco (Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido e França) são permanentes; é este órgão que indica um nome à Assembleia Geral, que o aprova.

No entanto, dada a já referida relevância e também a influência que o chefe das Nações Unidas exerce (ou deverá exercer), afinal, sobre a vida de qualquer cidadão residente no nosso planeta, este mecanismo de eleição tem vindo a ser debatido e analisado ao longo dos tempos, dada a falta de transparência ao longo de todo o processo. Segundo escreve o The Guardian, o facto de diversos líderes da ONU terem desempenhado um bom papel tem sido um mero acaso e não uma consequência do processo inadequado da escolha do candidato “menos ameaçador” para os países envolvidos na sua eleição, de que é, de resto, exemplo o seu actual chefe, Ban Ki-moon. Como descreve Brian Urquhart na Foreign Affairs, os critérios habitualmente utilizados para a escolha deste cargo representam um dos motivos pelos quais o mesmo revela ser “pouco credível”, apesar das suas “aparentemente elevadas responsabilidades e expectativas”.

Várias têm sido, aliás, as vozes que se insurgem contra este modelo, e muitos são os Estados que o consideram obsoleto, desajustado e opaco, principalmente porque dá aos membros permanentes do Conselho de Segurança um poder excessivo. Na tentativa de tornar o processo mais aberto, transparente e inclusivo, que envolva todos os Estados-membros, a campanha global 1 For 7 Billion conta com a participação de mais de 750 organizações e cerca de 170 milhões de pessoas de todas as partes do mundo. O objectivo comum é encontrar o melhor secretário-geral da ONU, promovendo um mandato mais forte e dando à própria organização uma maior credibilidade, permitindo também a reafirmação da sua autoridade global e o apoio popular. Incrivelmente (ou sem qualquer surpresa) quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança assumem-se contra a mudança proposta na campanha, como revela o mapa de apoio da mesma.

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Inclusão e transparência são as palavras de ordem

Com o fim do actual mandato agendado para Dezembro do presente ano, a comunidade internacional tem agora a oportunidade histórica de intervir no processo de escolha do próximo líder da ONU. Esta mudança não põe em causa os princípios consagrados na Carta da ONU, mas permite inverter o padrão de informalidade e secretismo que caracteriza todo o processo de escolha do seu líder. Os Estados-membros podem, assim, usufruir de um método de selecção que tem como objectivo a escolha de um líder capaz de representar a maioria dos países, invertendo a tendência de polarização do mundo.

[pull_quote_left]A mudança proposta para a eleição do líder da ONU permite inverter o padrão de secretismo que vem caracterizando o processo[/pull_quote_left]

O foco na escolha do melhor candidato, com critérios formais (baseados no mérito) e em tempo útil são alguns dos princípios defendidos na campanha 1 For 7 Billion. Adicionalmente, a mesma pretende promover a transparência entre a maioria dos Estados-membros e também com a sociedade civil e com os media. Os princípios da diversidade e da igualdade de género e de oportunidades, encorajando candidatos de todas as regiões, são igualmente evidenciados. A este respeito importa salientar que, até ao momento, todos os chefes foram do sexo masculino e que existem expectativas de a próxima liderança ser feminina, como explica o The Guardian, o que revela, só por si, um grande interesse da comunidade internacional em contrariar o que até então se fez e adoptar o direito de igualdade, em geral, e o de igualdade de género, em particular.

A escolha do candidato ou candidata deve, assim, ter em conta o seu conhecimento e compreensão dos princípios consagrados na Carta (nos quais se incluem a paz, a segurança, os direitos humanos e o desenvolvimento), assim como o forte compromisso com os mesmos. A integridade, a coragem, a independência e a autoridade moral, bem como a capacidade de liderança internacional, são igualmente qualidades que o sucessor de Ban Ki-moon deverá possuir. Adicionalmente, as capacidades de mediação e resolução de conflitos, a aptidão para falar com a comunicação social e a sensibilidade para tratar questões respeitantes à igualdade, diversidade e multiculturalidade serão também consideradas na eleição do novo líder. Todos estes critérios são fundamentais para a escolha do cidadão mais idóneo que ocupará um lugar que, espera-se, seja mais que uma mera figura de estilo.

No entanto, nenhum destes critérios terá utilidade se não existir uma verdadeira reforma no processo de selecção – onde reside a principal mudança que se pretende já para o próximo mandato – o qual passará a ser pautado pela inclusão e transparência, de acordo com os desejos dos mais dos 170 milhões de cidadãos que já aderiram a esta campanha. Primeiramente, a ONU terá de publicar uma lista com os critérios acima referidos, bem como um calendário onde constem, inequivocamente, as datas das diversas etapas do processo; complementarmente, os candidatos ao cargo deverão apresentar de forma clara os seus objectivos, prioridades, posição e visão, e os currículos de cada um terão de ser públicos.

Uma vez anunciados os candidatos, terão de ser organizados debates públicos através dos quais os Estados-membros e o público em geral os poderão conhecer mais aprofundadamente. Tratando-se de uma organização intergovernamental, os promotores desta campanha reforçam que os candidatos não devem fazer promessas aos membros permanentes do Conselho de Segurança, em troca de apoio, sob pena de estas porem em risco o seu mérito para ocupar o cargo.

Finalmente, o Conselho de Segurança deverá apresentar à Assembleia Geral dois ou mais “aspirantes” ao cargo, e não apenas um, como tem acontecido. Esta mudança aparentemente simples visa tirar algum poder ao Conselho de Segurança e aos seus membros permanentes, dando à Assembleia Geral a responsabilidade última de eleger o melhor representante das Nações Unidas. Segundo os promotores da campanha, o período de cada mandato deverá ser limitado a sete anos, sem renovação.

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Quando uma nova era se avista

Mais que uma simples tentativa de mudança sem efeito, esta campanha está a percorrer o mundo e a angariar apoiantes de todas as partes, sendo já visíveis alguns resultados. Em Dezembro último, e representando um momento de viragem nas Nações Unidas, os presidentes da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança endereçaram uma carta aos promotores da campanha, num gesto sem precedentes que marca o início oficial de um processo há muito ambicionado.

[pull_quote_left]Os princípios da diversidade e da igualdade, encorajando candidatos de todas as regiões, são evidenciados na campanha 1 For 7 Billion[/pull_quote_left]

O dinamarquês Mogens Lykketoft, da Assembleia Geral, e a americana Samantha Power, em representação do Conselho de Segurança em Dezembro último, encorajam todos os que se queiram candidatar ao cargo de chefe da ONU, salientando que o processo de selecção será mesmo pautado pelos princípios da transparência e da inclusão. Para além de aceitarem os demais critérios propostos na campanha, os signatários da carta incentivam a apresentação de candidaturas por parte de mulheres, comprometem-se a promover a circulação do nome dos candidatos numa base regular e contínua, e revelam também interesse em fomentar diálogos e encontros entre os diversos candidatos. No mesmo documento é ainda referido que o processo de selecção do próximo chefe da ONU terá início em Julho de 2016.

Apesar de os Estados Unidos (ou a parte privilegiada que integra os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança) revelarem a sua posição contra esta mudança, é de realçar que a sua representante Samantha Power, que encabeçou este órgão em Dezembro último, defende precisamente o oposto: a transparência, o fim do secretismo e a igualdade de oportunidades por via do mérito.

O ano de 2015 ficou marcado pelo final dos oito Objectivos do Desenvolvimento do Milénio e pelo início dos (novos) 17 Objectivos do Desenvolvimento Sustentável. Nesse mesmo ano, a ONU assinalou o seu 70º aniversário e, nesse âmbito, fez uma análise dos progressos alcançados em termos de paz, direitos humanos e desenvolvimento. No entanto, e tendo em conta os resultados que se esperam deste movimento sem precedentes, poderá ser 2016 o “ano histórico”, não apenas para as Nações Unidas como também, e principalmente, para a humanidade.

Jornalista