Tendo em conta que o calor extremo não afecta apenas as populações mais vulneráveis, um grupo de investigadores da Faculdade de Saúde Publica da Universidade de Harvard realizou uma experiência controlada junto de 44 estudantes submetidos a “climas” diferentes. Compreender de que modo as temperaturas elevadas prejudicam as capacidades cognitivas de cidadãos jovens e saudáveis (e, por isso, considerados não vulneráveis) foi o seu principal, mas não único, objectivo. Os resultados desta análise foram publicados recentemente e abrem caminho a um extenso conjunto de novos problemas
POR MÁRIA POMBO

O calor reduz significativamente as capacidades cognitivas dos seres humanos. As alterações climáticas estão a fazer-se sentir, as temperaturas estão a aumentar e são visíveis as consequências do calor extremo para a saúde pública, sendo este o fenómeno meteorológico que causa o maior número de mortes em várias partes do planeta. São diversos os estudos que o confirmam, focando o impacto que as altas temperaturas ao ar livre têm em diversas populações mais vulneráveis (nomeadamente nos bebés e nos idosos, bem como nas populações mais carenciadas ou mais expostas às temperaturas exteriores).

Todavia, estas não são as únicas vítimas. Todas as pessoas em todas as partes do planeta, mesmo aquelas que são saudáveis e têm uma vida confortável, sofrem com o calor extremo, quer seja ao ar livre ou dentro de edifícios sem ar condicionado (AC).

Para o comprovar, um grupo de investigadores da Harvard T.H. Chan School of Public Health fez uma experiência controlada, ao longo de 12 dias consecutivos, no Verão de 2016. Os investigadores reuniram um grupo de 44 estudantes – jovens adultos e saudáveis – que, ao longo deste período, viveram num campus universitário nos Estados Unidos. Os jovens foram divididos em dois grupos, de forma aleatória: 24 participantes passaram o tempo em edifícios construídos no início dos anos 90 e equipados com ar condicionado, e os restantes 20 ficaram alojados em e imóveis construídos entre as décadas de 1930 e 1950 e sem acesso a qualquer tipo de controlador de temperatura.

Esta experiência permitiu compreender a relação entre a exposição à temperatura no interior dos edifícios, a exposição ao calor, o sono e a performance cognitiva. O estudo, denominado “Reduced cognitive function during a heat wave among residents of non-air-conditioned buildings: An observational study of young adults in the summer of 2016”, foi publicado recentemente no jornal digital PLOS Medicine e as conclusões deixam claras as diferenças entre os jovens que usufruíram de AC e aqueles que se sujeitaram às temperaturas elevadas que se faziam sentir na atmosfera, sendo visível a redução das capacidades cognitivas por parte deste segundo grupo.

Ao longo dos 12 dias de observação, o termómetro registou algumas alterações: durante os primeiros cinco dias, as temperaturas foram amenas e adequadas à estação do ano em causa, os cinco dias seguintes foram marcados por uma onda de calor extremo, tendo-se registado um ligeiro arrefecimento nos últimos dois dias.


Temperatura de 22ºC parece propiciar a melhor das performances

Todas as manhãs, os estudantes recebiam nos seus smartphones dois testes cognitivos para resolver ao acordar, antes de saírem dos quartos. O primeiro teste pedia que identificassem as cores de palavras que iam sendo apresentadas, com o intuito de analisar a velocidade cognitiva e a atenção selectiva, ou seja, a capacidade de distinguirem os estímulos relevantes (neste caso a cor) dos irrelevantes (ou seja, as palavras em si). Já o segundo teste consistia em questões aritméticas com o objectivo de apurar a capacidade cognitiva e trabalhar a memória. Parecem dois testes simples mas os resultados são surpreendentes.

Para além dos testes que os jovens eram convidados a resolver, os espaços onde circulavam estavam equipados com mecanismos que mediam a qualidade do sono, os níveis de hidratação (sendo contabilizados, por exemplo, os litros de água que cada um ingeria por dia), a humidade do ar, a concentração de dióxido de carbono e o ruído.

Assim e durante a onda de calor, os estudantes dos edifícios sem ar condicionado tiveram um desempenho pior do que os seus pares que tinham acesso a estes equipamentos. As respostas dadas pelo primeiro grupo (ou seja, por aqueles que não usufruíam de AC) revelam uma diminuição de variadas capacidades cognitivas, incluindo o tempo de reacção e a memória. Este grupo registou um tempo de reacção à cor 13,4% mais longo, bem como uma média de capacidade de soma/subtracção 13,3% mais baixa, quando comparado com o grupo que não sentiu a diferença de temperatura.

Ou seja, os estudantes que permaneceram nos edifícios com AC não só foram mais rápidos a responder, como também deram mais respostas certas do que aqueles que ficaram sujeitos à onda de calor que, na segunda semana de observação, invadiu aquela região. A análise sugere ainda que estas reduções das capacidades cognitivas dos alunos sem acesso ao AC estão ligadas à carga térmica e à influência combinada entre outros factores ambientais (como a ventilação e a acústica) e comportamentais (como a hidratação e o sono), os quais compõem os efeitos da exposição ao calor nas actividades do dia-a-dia de um qualquer indivíduo.

Os autores do documento explicam ainda que, embora seja a primeira experiência controlada realizada junto de jovens saudáveis, este não é o único estudo que alerta para este problema, sendo crescentes as análises que comprovam os efeitos do aumento da exposição ao calor na produtividade, na capacidade de aprendizagem e na mortalidade dos seres humanos – veja-se o exemplo actual do Japão, cujas temperaturas elevadas já retiraram a vida a dezenas de pessoas.

Os investigadores revelam ainda que a performance dos alunos que tinham ar condicionado era melhor quando a temperatura rondava os 22ºC, sugerindo assim que esta é a que permite uma melhor produtividade nos escritórios e outros espaços de estudo e trabalho.

Complementarmente, conclui-se que, apesar de os jovens sem acesso a AC demonstrarem algum nível de adaptação à temperatura, nos últimos dias da experiência o seu desempenho foi diminuindo à medida que estavam mais expostos ao calor. As suas funções cognitivas que eram elevadas nos primeiros dias foram diminuindo com o passar do tempo, revelando uma diminuição progressiva da capacidade de concentração, da capacidade de reacção e da memória.

Uma conclusão interessante – e relevante – aponta para o facto de as diferenças entre os grupos continuarem a verificar-se mesmo após as horas de maior calor (mais propriamente, durante a noite), ou na altura em que a temperatura já tinha diminuído na rua, mas permanecia elevada dentro dos edifícios sem ar condicionado. A este respeito, Joseph Allen, docente na Harvard T.H. Chan School e especialista em ambiente e alterações climáticas, explica que “dentro dos edifícios, as temperaturas continuam a subir mesmo quando, no exterior, se verifica um arrefecimento do ar, dando a falsa impressão de que o perigo já passou, quando na realidade a ‘onda de calor interna’ ainda persiste”. O também co-director do Centro para o Clima, Saúde e Ambiente Global sublinha que “esta situação existe especialmente nas regiões mais frias, cujos edifícios foram desenhados para reter o calor” e que, por esse motivo, “demoram mais tempo a arrefecer”.


Ar condicionado ajuda mas está longe de ser a solução

Mas as diferenças entre os grupos com e sem acesso a ar condicionado não se verificam apenas ao nível da temperatura. Uma conclusão interessante é que outros factores – como o ruído, por exemplo, provocado pela necessidade que os jovens sem AC sentiam de abrir janelas e utilizar ventiladores – têm um papel determinante na inibição da interferência de estímulos como o calor, ajudando os alunos a obter resultados melhores do que se estes estivessem num ambiente de puro silêncio.

Adicionalmente, as baixas taxas de ventilação e as elevadas taxas de concentração de CO2 – verificadas nos edifícios que possuem ar condicionado – estão associadas a tempos de reacção mais longos, tendo por esse motivo prejudicado (ainda que ligeiramente) o grupo “privilegiado” desta análise, concluindo-se que, mesmo em escritórios com AC, é importante que exista uma boa ventilação e circulação de ar.

Embora reconhecendo as suas limitações e imprecisões, os autores da análise mediram o nível de hidratação através do número de copos de água ingeridos pelos participantes, tendo concluído que uma ingestão de água abaixo da média desejada (que são seis copos por dia) está associada a déficesde capacidade cognitiva em todas as métricas analisadas (memória, cálculo, tempo de reacção, atenção selectiva e concentração). Recorrendo a alguns marcadores mais precisos de desidratação, os autores do documento explicam que o enfraquecimento da função cognitiva está associado à hipovolemia (que é a diminuição do volume sanguíneo), a qual pode ser provocada pela ingestão de poucos líquidos e é agravada pelo stress térmico, prejudicando a performance dos alunos essencialmente nas horas após o despertar.

Esta foi uma análise pequena e controlada mas permitiu retirar algumas conclusões importantes e sobre as quais não é habitual falar. Em primeiro lugar, os resultados da análise permitem concluir que a exposição a temperaturas elevadas tem efeitos em qualquer ser humano, e não apenas nas populações mais vulneráveis. Porém, se um grupo de jovens saudáveis sofre as suas consequências, é fácil imaginar as dificuldades por que passam aqueles que, não só são menos saudáveis, como têm menos acesso a diversos cuidados de saúde e higiene. Complementarmente, os autores do documento explicam que as consequências da exposição ao calor podem ser observadas ao nível das funções cognitivas, mas também da produtividade e até da segurança no local de trabalho.

Uma outra ideia a reter é que é possível compreender que a exposição ao calor, dentro de edifícios que estão preparados para o frio, têm consequências dramáticas na saúde e na performance cognitiva das populações, principalmente nas horas em que a temperatura exterior começa a diminuir mas se mantém elevada dentro dos edifícios. Os resultados apresentados assumem-se, por fim, como uma forma de evidenciar a necessidade de se mitigar a exposição ao calor, tanto junto da população vulnerável como daquela que é considerada resiliente, especialmente em ambientes nos quais os processos cognitivos são fundamentais para garantir a aquisição de conhecimentos, a segurança ou a produtividade.

Todavia, esta mudança – e este foco na necessidade de utilizar sistemas de refrigeração de ar – envolve alguns desafios. Em primeiro lugar, utilizar mais equipamentos de AC implica gastar mais energia, aumentar a emissão de gases com efeito de estufa e a aumentar o investimento em muitos edifícios. Em segundo lugar, é importante que esta operação seja bem executada, para que não se corra o risco de as populações passarem a viver em ambientes pouco ventilados e com uma grande concentração de CO2 que, como foi explicado acima, também prejudica as funções cognitivas. Por fim, viver em ambientes constantemente controlados em termos térmicos diminui a capacidade de adaptação ao clima, aumentando o stress térmico nos momentos de exposição ao calor.

Os autores do documento sugerem ainda que novos materiais de construção podem representar soluções alternativas para uma melhor gestão da temperatura, tendo em conta que as alterações climáticas não irão dar tréguas, exigindo mecanismos inteligentes que permitam lidar com regimes térmicos cada vez mais extremos – tendo em conta que o foco do estudo é o calor – mas ter em mente que estas soluções devem existir também para o frio e até para outros eventos extremos (como inundações, furacões, tremores de terra e etc.).

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