Assim proferiu Liu Xiaobo, durante o seu julgamento por “incitamento à subversão do poder do Estado”, em 2009. Para as autoridades da China, o intelectual e fervoroso activista em prol de reformas políticas e culturais no seu país era um criminoso. Para os defensores dos direitos humanos, um símbolo de esperança pacifista para uma mudança democrática. Quiseram silenciá-lo até ao final da sua vida, mas a sua voz ecoará para sempre na história da resistência à opressão e da luta pela liberdade
POR GABRIELA COSTA

“Os heróis do povo são imortais” – inscrição no Monumento das Pessoas Heróis, Praça Tiananmen, Pequim

A morte de Liu Xiaobo, Prémio Nobel da Paz 2010, no passado dia 13 de Julho, reacende o debate internacional sobre a violação dos direitos humanos.

O dissidente chinês faleceu aos 61 anos, vítima de uma falência múltipla dos órgãos, na sequência de um cancro do fígado devido ao qual estava hospitalizado em Shenyang, no Nordeste da China, de acordo com o anúncio feito pelas autoridades locais. Sucede que o também escritor, crítico literário, professor, intelectual e activista pelos direitos humanos e por reformas na República Popular da China se mantinha, desde o final de Junho, em liberdade condicional, depois de ter sido condenado, em 2009, a 11 anos de prisão, por “incitamento à subversão do poder do Estado”.

Liu Xiaobo só foi libertado “para tratamento hospitalar”, depois de lhe ter sido diagnosticada doença hepática em fase terminal, tendo-lhe sido recusada a possibilidade de abandonar o país para receber tratamento médico no estrangeiro, apesar da forte campanha internacional que se organizou para exigir isso mesmo, e da corroboração, por dois médicos estrangeiros, de que o seu estado de saúde exigia tratamento hospitalar fora da China. E a verdade é que, embora tenha sido colocado em liberdade condicional pelas autoridades chinesas por motivos de saúde, na prática foi isolado no hospital e submetido a uma vigilância estrita.

Agora, o desaparecimento daquele que foi o segundo Prémio Nobel a morrer privado de liberdade, depois de Carl von Ossietzky – que morreu em 1938 num hospital, quando estava detido pelos nazis -, e o terceiro a receber o Nobel da Paz durante uma detenção, depois deste pacifista alemão e da birmanesa Aung San Suu Kyi (1991), está a causar a contestação de várias organizações de defesa dos direitos humanos.

Protesto na Praça da Paz Celestial, Pequim, 1989 – © DR

“Devemos acabar com a prática de encarar as palavras como crimes” – Carta 08

Nascido em Changchun (capital de Jilin, uma província da região do Nordeste da China), em 1955, Liu Xiaobo foi um dos maiores pensadores, críticos e políticos chineses da actualidade.

O dissidente do regime de Pequim foi detido a 8 de Dezembro de 2008, em reacção à sua participação na Carta 08, um manifesto que reclamava a reforma política e a democratização da República Popular da China, exigindo ao governo que autorizasse o multipartidarismo, bem como um sistema judicial independente e a liberdade de religião, de associação e de imprensa no país, o qual foi assinado por mais de 300 intelectuais e activistas dos direitos humanos, entre académicos, advogados, jornalistas e artistas e por cerca de dez mil cidadãos. Foi formalmente preso a 23 de Junho de 2009, sob suspeita de “incitar à subversão contra o poder do Estado”, crime de que foi acusado, sendo condenado a 11 anos de prisão a 25 de Dezembro do mesmo ano.

Mas esta foi já a sua terceira detenção por actividades consideradas subversivas, desde a sangrenta repressão do movimento estudantil pró-democracia na Praça Tiananmen (ou Praça da Paz Celestial), em Pequim, em Junho de 1989, de que foi um dos principais mentores. Nessa altura esteve preso durante cerca de um ano e meio, até ao início de 1991. Entre 1996 e 1999, foi de novo detido e internado num “campo de reeducação através do trabalho”. Os Estados Unidos e a União Europeia pediram várias vezes a libertação do activista, mas o Governo chinês rejeitou as críticas ocidentais, considerando-as uma “ingerência grosseira nos assuntos internos da China”.

Crescendo no seio de uma família de intelectuais, Liu Xiaobo estudou direito e  doutorou-se em Literatura Chinesa. Mas antes, apenas com 14 anos, e na sequência da  Revolução Cultural de  Mao Tse-Tung  (1966-1976), foi uma das muitas vítimas da Campanha de Envio ao Campo, uma política radical instituída como resultado do pensamento anti-burguesia predominante, que exilou milhões de jovens urbanos privilegiados nas zonas montanhosas e aldeias agrícolas da República Popular da China, formando uma ‘geração perdida’ impedida de estudar. Como proferiu mais tarde, apesar de não ter podido receber uma educação formal durante os quatro anos em que viveu isolado no campo, leu vorazmente tudo o que podia, o que o ensinou “a pensar por si próprio”.

Com 19 anos começou a trabalhar, mas assim que as universidades foram reabertas, em 1977, retomou os estudos, findos os quais leccionou na Universidade Normal de Pequim. Mas foi banido do ensino oficial pelo seu envolvimento nos protestos estudantis de 1989, considerados pelo Governo como “uma rebelião contra-revolucionária”. Exerceu então a docência em várias universidades fora da China, como a Universidade de Oslo, a Universidade do Havai e a Universidade de Colúmbia, onde se encontrava quando rebentou o Massacre da Praça Tiananmen.

Liu Xiaobo regressou de imediato ao seu país, para se juntar a este movimento, a que aderiram outros intelectuais e muitos trabalhadores chineses, organizando uma greve de fome em solidariedade com os estudantes (caso de O Rebelde Desconhecido, ou O Homem dos Tanques, fotografado pela Associated Press, pela Magnum Photos, pela Reuters e pela Newsweek durante estes protestos em Pequim, a 5 de Junho de 1989, numa imagem que correu mundo, simbolizando uma figura heróica do exemplo da não-violência, e que, em 1998, foi incluída na lista das 100 pessoas mais influentes do século da revista Time); e negociando um acordo com os militares, quando a lei marcial foi proclamada, para que os jovens que se negaram a abandonar a praça pudessem sair ilesos. A eles (e aos milhares executados e feridos pelo Exército de Libertação Popular enviado pelo Partido Comunista da China) dedicou o Nobel da Paz que lhe seria atribuído dois anos depois da sua terceira detenção, por ter sido um dos principais redactores da Carta 08.

O Rebelde Desconhecido, fotografado na Praça da Paz Celestial, em 5 de Junho de 1989, numa imagem que fez as capas da imprensa internacional – © DR

A cadeira vazia da esperança pela liberdade

Para além de Ossietzky, o escritor de inúmeras obras de referência – entre as quais “Não Tenho Inimigos, Não Conheço o Ódio” (publicado em Portugal pela Casa das Letras), no qual apresenta um conjunto de ensaios desconhecidos sobre as características políticas e culturais da China, o seu papel emergente no contexto internacional e um retrato poético do passado, presente e futuro da cultura milenar do seu país – foi o único Nobel a quem foi negado o direito de um representante receber o prémio em seu nome. A sua mulher, a poetisa Liu Xiu, que está também em prisão domiciliária há já sete anos, sem ter sido acusada de nenhum crime, não pôde sequer conceder entrevistas a respeito da distinção atribuída pela Academia do Nobel a qual, de resto, e juntamente com as autoridades norueguesas, foi alvo de ameaças de represálias por parte das autoridades chinesas. O resultado foi o corte de relações diplomáticas entre os dois países, restabelecidas apenas no ano passado.

Sem ceder, o Comité composto por cinco personalidades escolhidas pelo Parlamento norueguês deu uma lição ao mundo, justificando a escolha de Liu Xiaobo “pela sua luta longa e não violenta pelos direitos fundamentais da China”. E, apesar de todos os esforços de Pequim para silenciar esta atribuição, accionando um conjunto perturbador de meios técnicos e humanos – da inexistência de informação a respeito do anúncio nas televisões, rádios, jornais e páginas Web do país, à censura explícita do Departamento de Propaganda chinês à produção de notícias sobre Liu Xiaobo, passando pelo bloqueio dos sites nacionais que se atreveram a publicar alguns conteúdos a este respeito (mas também dos internacionais e das televisões satélite), até ao afastamento forçado dos correspondentes estrangeiros da porta da casa do intelectual, em Pequim, e ao blackout do envio de SMS contendo as palavras Liu Xiaobo – para evitar que os chineses tivessem acesso ao reconhecimento ocidental deste crítico e pensador de reconhecido mérito moral em todo o mundo, a cadeira do Nobel da Paz 2010, que permanecerá para sempre vazia, nunca deixará de simbolizar o valor da esperança na luta pacífica pelos direitos humanos.

Quase sete anos depois, o Comité Nobel norueguês arrisca-se a novo desentendimento com as autoridades chinesas ao, perante o anúncio da morte de Liu Xiaobo, acusar o Governo chinês de ter “uma pesada responsabilidade na morte prematura” do dissidente chinês, ao privá-lo de “tratamento médico adequado”.

Liu Xiaobo fotografado por Liu Xia, com uma boneca que simboliza a luta pela paz e a democracia – © DR

Mas ainda antes de falecer, os últimos dias do dissidente chinês fizeram aumentar a polémica internacional com o autoritário país. Uma das vozes mais activas foi a de Angela Merkel. Tanto quanto pôde, desde a transferência de Liu Xiaobo da prisão para o hospital, três semanas antes da sua morte, a chanceler insistiu na gravidade de seu estado e pediu a não ingerência estrangeira, implorando por “um gesto de humanidade” para deixá-lo sair da China. O apelo chegou à Embaixada alemã em Pequim, que denunciou a destruição propositada dos vídeos da consulta com os dois médicos das universidades do Texas e de Helderberg que defenderam que o Nobel da Paz deveria ser autorizado a deixar o país para receber cuidados paliativos, pedido que as autoridades chinesas ripostaram afirmando que uma viagem poderia contribuir para o agravamento do estado de saúde de Xiaobo.

Muitas foram também as organizações de direitos humanos que se multiplicaram em campanhas para tentar, ao menos, garantir a sua morte com dignidade, mas em vão. As mesmas que ainda não se calaram, contestando a cada dia que passa, e até ao dia de fecho desta edição, a atitude da China.

A organização Human Rights Watch (HRW) considera que a morte do dissidente chinês “mostra a crueldade do governo da China em relação aos defensores pacíficos dos direitos humanos e da democracia”. Para Sophie Richardon, directora para a China da HRW, “a arrogância, crueldade e insensibilidade do governo chinês são chocantes, mas a luta de Liu por uma China respeitadora dos direitos humanos e democrática continuará”.

Já os Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que em 2004 atribuíram ao pacifista o Prémio Liberdade de Imprensa RSF, responsabilizam as autoridades do país comunista pela sua morte, devido à demora em transferi-lo da prisão para um hospital, e exigem o fim imediato da prisão domiciliária da sua esposa, que “não é mais do que uma detenção forçada”. Nas palavras do secretário geral dos RSF, Christophe Deloire, “é desconcertante que as autoridades chinesas tenham esperado que o seu cancro fosse terminal para tratá-lo num hospital”. Pelo que as mesmas “e os seus cúmplices são responsáveis tanto pela sua detenção arbitrária, como pela sua morte, por falta de cuidados”.

Vários grupos de activistas têm organizado protestos diariamente em memória de Liu Xiaobo, que querem ver preservada. Mas a China insiste no controlo antidemocrático, procurando impedir todo o tipo de iniciativas em honra do dissidente. Já o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos referiu-se a Xiaobo como um modelo inspirador na luta a favor dos Direitos Humanos e da liberdade de expressão.

A exemplo de inúmeros líderes políticos, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres lamentou a morte do activista chinês, manifestando-se “profundamente triste” com a morte de Liu Xiaobo e apresentando as suas condolências à família e amigos. Mas, e ao contrário de outros dirigentes, evitou fazer apelos ao governo chinês sobre a situação da sua viúva.

Por sua vez, os presidentes do Conselho Europeu, Donald Tusk, e da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, pediram à China que libertasse os “presos de consciência”. Bruxelas pediu também a Pequim que ponha fim a todas as restrições “à liberdade de movimento e de comunicação da família do dissidente” e que autorize Liu Xia a deixar a China, se assim o desejar. Apelos que se traduzem, como sempre, numa diplomacia oca de resultados concretos.

Eternizado já como uma inspiração para todos os defensores dos Direitos Humanos, Liu Xiaobo deixa o mundo mais pobre, mas não sem fazer ecoar, contra todas as tentativas de silenciamento por parte do país que o viu nascer, que o “ódio pode corroer a inteligência e a consciência de uma pessoa” pois, como escreveu, no discurso lido pela actriz, directora de cinema e escritora noruegesa, Liv Ulman, na atribuição do Prémio Nobel da Paz 2010, “a mentalidade do inimigo envenenará o espírito de uma nação e incitará conflitos mortais, destruirá a tolerância e a humanidade de uma sociedade e impedirá o progresso de uma nação rumo à liberdade e à democracia”. No reverso da medalha estará, para sempre, a convicção de Liu Xiaobo de que “nenhuma força é capaz de bloquear a humana busca pela liberdade”.