A transição energética não é apenas uma mudança de vector energético. É antes parte de uma ampla transformação social em curso. E pode até ser que esta transformação seja mais lenta do que hoje antecipado. Mas o leitor apostaria na manutenção dos investimentos em combustíveis fósseis? A maioria dos investidores internacionais não o faria
POR PEDRO BARATA

Atingir os objectivos fixados no Acordo de Paris para a descarbonização das nossas sociedades até ao final do século passará necessariamente por uma descarbonização do sector energético. A maioria dos estudos prospectivos que os Estados têm vindo a elaborar (similarmente ao que em Portugal está a ser feito com o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050) segue um guião comum. As estratégias de descarbonização fixam-se num primeiro momento em dois vectores: a electrificação dos consumos energéticos e uma nova configuração do sistema eléctrico com 100% de renováveis.

Se quisermos ter uma ideia do que é um sistema com 100% ou quase de electricidade renovável, podemos olhar para a Costa Rica: dispondo de amplas reservas hídricas, este país não prevê a necessidade de qualquer capacidade de produção de electricidade fóssil, apesar do seu crescimento económico. Pelo contrário, o país vê na electricidade solar foto voltaica e na expansão hídrica a certeza da continuidade de uma matriz eléctrica limpa. Sendo assim, o que impede este país de atingir a neutralidade carbónica? O seu sector de transportes e de resíduos. Nos transportes predomina uma frota automóvel antiquada e altamente poluente, responsável por níveis altíssimos de poluição urbana. Nos resíduos existe uma confrangedora falta de tratamento mais avançado e, num contexto tropical, fortes emissões de metano.

Se dou este exemplo da Costa Rica, é para fazer notar que a simples existência de uma matriz eléctrica limpa não garante a ultrapassagem dos bloqueios técnicos e sociais à neutralidade carbónica.

Imaginemos contudo que teríamos a possibilidade em Portugal de construir a breve trecho uma matriz eléctrica de baixo-carbono, se não mesmo carbono zero (através do fecho das centrais de produção eléctrica a carvão e a sua substituição por gás natural ou, directamente, por capacidade nova em energias renováveis). Ao contrário da Costa Rica, o mercado português de veículos eléctricos é dos mais activos a nível internacional e embora ainda só com níveis na ordem dos 2-3%, as taxas de crescimento da penetração dos veículos eléctricos permitem antever penetrações bastante mais altas muito em breve. Sendo assim, poderíamos pensar que o desafio da neutralidade carbónica está em vias de solução. “Not so fast…”

Qual o paradigma?

O cenário que antevíamos então seria um em que, no essencial, as estruturas sociais e económicas em Portugal não seriam sujeitas a mudanças fundamentais. Nem na mobilidade, nem na manufactura, nem na estrutura urbana ou no modo de vida nas nossas cidades. No essencial, apenas estaríamos a falar numa transição energética baseada apenas na mudança do vector energético. Contudo, é cada vez mais claro que as transformações sociais que estão acontecer e iremos sofrer são muito mais profundas do que isso.

[quote_center]As estratégias de descarbonização fixam-se num primeiro momento em dois vectores: a electrificação dos consumos energéticos e uma nova configuração do sistema eléctrico com 100% de renováveis[/quote_center]

Começando pela transição demográfica, que no caso português será brutal: Portugal tem a 3ª maior taxa de envelhecimento da população a nível mundial. Os cenários centrais demográficos apontam para um declínio populacional em 2050 que poderá atingir os 2 milhões de habitantes. Inverter essa tendência terá que ser uma prioridade; impedir que essa tendência tenha impactos semelhantes na produtividade nacional será ainda mais importante.

Em seguida, as nossas cidades. Com a transição demográfica expectável, o paradigma de crescimento económico baseado na construção e na compra de primeira e segunda habitação, se não estava já condenado pelo aperto financeiro dos últimos anos, irá ficar condenado agora. Sendo assim, o volume de construção será progressivamente mas rapidamente substituído pela recuperação dos centros urbanos e pela demolição de muita periferia urbana sem qualidade e reconstrução.

Em paralelo, nota-se já hoje uma evolução nos padrões de mobilidade. Em Portugal, como em outros países, as próximas gerações já não aspiram necessariamente à propriedade do automóvel, com todos os seus custos inerentes, quando surgem múltiplas oportunidades diferentes de mobilidade. A “mobilidade-como-serviço” seja através da partilha de bicicletas, seja através de serviços como a Uber, Cabify, Lyft, emov, eCooltra irão a prazo mudar substancialmente a paisagem urbana. A menor propriedade implica menor utilização do espaço urbano para estacionamento, libertando faixas consideráveis para outros usos. Todos esses serviços só serão possibilitados, a prazo, pela existência de veículos eléctricos e, a seu tempo, por veículos autónomos.

Esta mudança de paradigma que novas tecnologias vão potencialmente acelerar não pode deixar de ter reflexos no sistema energético. Como?

Produza a sua própria energia

Para termos uma noção do futuro da discussão energética, olhemos para a “Energiewende” (transição energética) em curso na Alemanha. As parangonas são quase sempre sobre o fim do nuclear, ou sobre a dificuldade muito alemã em abandonar o que resta da base industrial ligada ao carvão. Contudo, um dos aspectos mais interessantes da Energiewende prende-se com a aceitação universal da energia renovável e da sua subsidiação como necessária à construção de um novo modelo energético. Essa aceitação universal não é desinteressada: prende-se com o facto de na Alemanha (ao contrário de Portugal), o crescimento da capacidade renovável ter sido feita propositadamente buscando o apoio dos produtores comunitários, de pequena escala, em vez do grande investidor privado. Tal implicou uma transformação do clima político, mas mais importante ainda, uma transformação do sector: as duas maiores “utilities” tiveram que se desfazer dos seus activos ligados à produção fóssil em grande medida dada a competição destes “produtores verdes”.

[quote_center]Em Portugal, como em outros países, as próximas gerações já não aspiram necessariamente à propriedade do automóvel, com todos os seus custos inerentes, quando surgem múltiplas oportunidades diferentes de mobilidade[/quote_center]

Essa transição energética estará ainda dependente em Portugal de disponibilidade tecnológica. A evolução social, contudo, parece-me estar mais à frente do que as estruturas económicas vigentes. O risco neste momento em Portugal é de novo o surgimento de novas “rendas” no sector energético associadas ao pagamento a actores com base na argumentação dos investimentos feitos e da imprevisibilidade da transição energética. Essa argumentação, com alguma propriedade, pode ser utilizada actualmente pelos operadores de centrais eléctricas a gás natural, que podem vir a ter as suas expectativas goradas pelo continuado funcionamento das centrais a carvão e pelo “boom” renovável. A prazo, tal argumento será utilizado pelos operadores das centrais a carvão que poderão ver as suas centrais em perigo. Ainda mais será utilizado pelos donos de refinarias que, num ambiente em que por via da mudança do paradigma energético e social, a sua produção será inviabilizada.

Com tudo isto, a transição energética não é apenas uma mudança de vector energético. É antes parte de uma ampla transformação social em curso. Pode até ser que esta transformação seja mais lenta do que hoje antecipado. Mas o leitor apostaria na manutenção dos investimentos em combustíveis fósseis? A maioria dos investidores internacionais não o faria.

Pedro Martins Barata, membro do Expert Adisory Group SBTi Net Zero Standard, co-presidente do Painel de Peritos da Task Force para o Mercado Voluntário de Carbono e Partner da Get2c