A Fundação Francisco Manuel dos Santos apresentou os resultados de uma larga investigação que avalia os valores e qualidade das instituições nacionais, a partir da perspectiva de quem dirige e trabalha em seis organizações “emblemáticas” do País sobre factores de desenvolvimento como meritocracia, proactividade e inovação tecnológica, mas também sobre constrangimentos como a existência de corrupção e ‘ilhas de poder’. A gestão em Portugal não pratica a meritocracia, mas pratica jogos de influências, sobre os quais se mantém uma tolerância generalizada
POR GABRIELA COSTA

Quais são os valores que vigoram nas instituições portuguesas? Por que normas se regem e como é que estas influenciam o seu funcionamento? Serão capazes de cumprir com os objectivos para os quais foram criadas? E de fazer contribuições significativas para o desenvolvimento socioeconómico do país?04062015_InstituicoesPortuguesasSemValoresCom o objectivo de avaliar a natureza, a qualidade e os contributos das instituições públicas e privadas para o desenvolvimento nacional, a Fundação Francisco Manuel dos Santos financiou o projecto “Valores, Qualidade Institucional e Desenvolvimento em Portugal”, que integra um vasto trabalho de investigação iniciado em 2011, a cargo da FCSH da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Princeton, e no âmbito do qual foi desenvolvido o estudo “Values, Institutional Quality, and Development”, apresentado a 28 de Maio em Lisboa, numa conferência que reuniu os coordenadores do projecto – Alejandro Portes (Princeton) e Maria Margarida Marques (Universidade Nova) -, os investigadores envolvidos no estudo e vários comentadores do meio académico.

A avaliação do contributo prestado pelas instituições portuguesas para o desenvolvimento do País foi realizada através de um estudo intensivo e comparativo de seis organizações, consideradas “emblemáticas” nas suas áreas de actuação: a EDP e a Bolsa de Lisboa, no sector privado, e a Autoridade de Segurança Alimentar (ASAE), a Autoridade Tributária (AT), o Hospital de Santa Maria (HSM) e os Correios de Portugal, no público. De referir que o levantamento de dados nas seis entidades decorreu entre 2012 e 2013, num período prévio à privatização dos CTT, portanto.

Apoiada em estudos qualitativos às seis instituições, complementados por inquéritos por questionário aos trabalhadores das mesmas (que incluíram uma bateria de perguntas sobre os valores da organização, numa réplica do European Social Survey), a equipa de investigação identificou seis factores que considera ”poderem determinar a qualidade institucional e a contribuição para o desenvolvimento”: meritocracia, imunidade à corrupção, ausência de ‘ilhas de poder’, proactividade em relação ao ambiente institucional, abertura tecnológica e flexibilidade, e existência de aliados externos.

Baseando-se numa análise com uma metodologia semelhante, anteriormente realizada em cinco países latino-americanos, o estudo “Valores, Qualidade Institucional e Desenvolvimento” traça etnografias minuciosas de cada uma das seis instituições estudadas, e compara os resultados das mesmas, não só entre si, como com resultados obtidos em anteriores relatórios, relativos à população portuguesa em geral. O documento integra ainda uma reflexão sobre as implicações dos resultados apurados nos modelos de desenvolvimento social e económico de Portugal, bem como em políticas institucionais futuras.

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Favoritismos em vez de reconhecimento e abertura à inovação

No estudo da FFMS, agora publicado em livro pela Fundação, a avaliação em termos dos determinantes de valores e qualidade institucional atribui às empresas privadas (EDP e Bolsa de Lisboa) a melhor classificação global, particularmente ao grupo do sector da energia. Seguem-se-lhe, respectivamente, e na esfera pública, a Autoridade para a Segurança Alimentar, a Autoridade Tributária, os Correios de Portugal e, na última posição, o Hospital de Santa Maria.

Enquanto a EDP e a Euronext Lisboa atingem nota positiva em todas as dimensões dos determinantes internos (meritocracia; imunidade à corrupção; ausência de ‘ilhas de poder’) e externos (proactividade; abertura tecnológica; aliados externos), a ASAE, os CTT e Santa Maria revelam ausência de valorização pelo mérito, e os CTT chumbam na ausência de ‘ilhas de poder’, tal como o Hospital, que revela ainda não estar imune a actos de corrupção, sendo a única das seis instituições estudadas a merecer este resultado. Por outro lado, a AT é também a única entidade a denotar falta de proactividade, enquanto os CTT, o HSM e a AT não têm aliados externos.

[pull_quote_left]A “quase ausência de meritocracia” é um dos aspectos mais preocupantes nas instituições portuguesas[/pull_quote_left]

Contas feitas, o Hospital de Santa Maria, que representa o Sistema Nacional de Saúde, é a instituição que inspira maiores preocupações de governação (com presença em apenas duas das seis dimensões analisadas), traduzindo uma tendência do sector, reflectida nos dados agregados deste estudo que visa avaliar o estado-da-arte da governança institucional em Portugal, a partir das perspectivas de quem dirige e trabalha nas organizações.

Ainda assim, todas as instituições avaliadas são classificadas como adequadas a nível institucional, e quase todas (à excepção da AT) são capazes de contribuir para o desenvolvimento do país, conclui o relatório “Values, Institutional Quality, and Development”.

Relativamente aos resultados globais, que colocam as únicas duas privadas no topo da classificação, os investigadores admitem que “o facto de duas organizações privadas estarem melhor classificadas em termos de determinantes de qualidade institucional pode ser usado como argumento pelos defensores de privatizações totais”. Até porque se trata precisamente das duas entidades “mais sujeitas a monitorizações externas e regulação internacional”, no universo das instituições analisadas. Mas, sobre a opção de privatizar, alertam que é preciso “prudência”, sustentando que algumas entidades públicas são mais “privatizáveis” do que outras: “uma coisa é integrar a companhia energética ou a transportadora aérea nacional no mercado privado, outra, bem diferente, é fazer o mesmo ao serviço nacional de saúde ou ao sistema postal”, lê-se no documento.

Os mesmos resultados revelam que a “quase ausência de meritocracia” é um dos aspectos mais preocupantes em relação às instituições portuguesas, com o sector público a demonstrar fraca capacidade para avaliar e recompensar os funcionários com base no mérito e no seu desempenho.

Também pela negativa, os jogos de poder e de influências e o desenvolvimento de interesses na instituição para benefício próprio de alguns são, ainda, uma realidade, a exemplo do que sucede nos países latinos e ao contrário do que se verifica no Norte da Europa e nos EUA, notam os investigadores. Diz o estudo que existe nas instituições portuguesas uma tolerância generalizada no que concerne a falta de bonificações com base no mérito, situação que é “severamente condenada e penalizada noutros países avançados”. Em relação aos quais Portugal deve ser comparado, através de investigações futuras, recomenda o relatório.

Apesar deste contexto de “favoritismos” latentes nas instituições, não foram relatados “casos significativos de corrupção” em nenhuma delas, diz o documento, apesar de o HSM ter registado nesta dimensão do estudo “fortes conflitos de interesses” que apontam para a existência de uma teia de interesses públicos e privados de “grupos poderosos” como “a Maçonaria, a Opus Dei e partidos políticos”, nomeadamente “ na classe médica e na direcção de serviços de apoio”, o que condiciona o normal funcionamento do hospital.

Outro dos aspectos positivos – o mais visível, de resto – é a capacidade de inovação tecnológica, com as seis instituições a revelarem serem muito abertas à tecnologia e à flexibilidade, e “muito empenhadas em adoptar as práticas mais recentes”, com “tudo o que isso traz de positivo” para a sua eficácia e eficiência, como afirmou o director científico da Fundação Francisco Manuel dos Santos, Pedro Magalhães, destacando a Autoridade Tributária como a melhor instituição, a este nível.

A mesma organização é a pior em proactividade, factor que se destaca de forma surpreendente nas instituições nacionais. Apesar das suas lacunas internas, a maioria é fortemente proactiva, incluindo com os seus clientes. Nos organismos estatais, a “rotatividade” e a “preocupação com a qualidade do serviço público e do serviço aos utentes” também são factores que têm vindo a melhorar em Portugal, país onde, afinal, as instituições portuguesas têm “qualidades muito evidentes”, e em regra, “funcionam bem”, projecta a investigação.

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Falta de meritocracia ainda mais austera

Segundo os investigadores “a meritocracia em Portugal é quase inexistente”. A escassez de recursos e os cortes no sector público são em parte responsáveis pela inexistência de novas contratações e promoções internas, e “dificultaram ainda mais” a valorização do mérito no Estado, criando problemas ao desempenho das instituições, como defendeu Pedro Magalhães, a respeito do estudo da FFMS.

Conclui a investigação que “a austeridade no Estado, que levou ao congelamento dos recrutamentos, à suspensão dos concursos públicos e à lentidão das promoções” afectou de forma negativa a meritocracia. Mas este não é o único factor para a já habitual falta de reconhecimento por desempenho ou mérito, por parte das organizações.

O relatório que avalia os valores e qualidades das instituições nacionais conclui também que “preferências e conexões pessoais têm um papel fundamental em várias situações”, que se traduzem, segundo o director científico da FFMS, num “retrato negativo, pela ausência de mecanismos assentes na meritocracia”.

Nas instituições avaliadas, EDP, Bolsa de Valores e AT distinguiram-se pela positiva a nível de recrutamento e promoção meritocráticos.

A EDP, em destaque no ranking das seis grandes instituições avaliadas, revelou ter “uma grande capacidade de influência política e económica junto do Governo nacional e de outras instituições”, graças ao seu “potencial económico e industrial, mas também aos conhecimentos pessoais e profissionais dos elementos da administração e de outros órgãos, como o Conselho Geral e de Supervisão, junto do poder político”. O facto de vários ex-governantes terem sido nomeados administradores e gestores da EDP e vice-versa, constitui para a investigação “um tema sensível do ponto de vista concorrencial”, mas também “uma importante e decisiva mais-valia para capacitar a empresa para atingir os objectivos propostos aos seus accionistas”, a nível institucional.

E é assim que, mesmo exercendo fortes influências e mantendo um monopólio que representa “uma falha de mercado com custos para os clientes”, a EDP contribui com “um impacto manifestamente positivo para o desenvolvimento económico-social do país”, incluindo através de práticas de meritocracia.

Já os CTT (em pré-privatização na altura em que foram realizados os inquéritos deste estudo) foram, a este nível, afectados “pelo congelamento de novas contratações e das promoções internas”, pela “cor do governo”, e por “pequenos favores”, “relações pessoais e políticas” e “simpatia pessoal”.

Na Autoridade da Segurança Alimentar (ASAE), a meritocracia foi também “enfraquecida” pela suspensão das contratações e o congelamento das promoções por mérito, e a equipa de investigadores responsável conclui que cerca de um terço dos funcionários são “pára-quedistas”, que não chegaram à organização vindos das agências que deram origem à ASAE ou através de concurso.

Mantendo a sua posição de instituição problemática, no HSM a meritocracia está “comprometida pela coexistência de lugares de carreira, com contratos temporários e a tempo parcial”, presença de “directores influentes e praticamente inamovíveis” e “permeabilidade” a partidos políticos, lojas maçónicas e organizações católicas, como a imprensa amplamente divulgou.

Os resultados do inquérito respondido por 1346 funcionários das seis entidades estudadas no estudo “Values, Institutional Quality, and Development” evidenciam a falta de importância que a competência e o mérito merecem, no nosso país: somente 16% dos respondentes acredita que “se seguirem as regras e fizerem o seu trabalho de modo competente, as pessoas são promovidas”. Os gestores e colaboradores da EDP e da Bolsa de Valores de Lisboa fazem subir esta percentagem, em relação à sua organização, mas os dos CTT diminuem-na e, no Hospital de Santa Maria, não se regista uma única resposta positiva a esta questão.

Para os autores do estudo, o descrédito a que o reconhecimento do desempenho e do mérito está votado pelas empresas e organismos públicos nacionais “não se pode arrastar, sob pena de Portugal regredir para condições próprias dos países menos desenvolvidos”.

Uma recomendação que se enquadra nos objectivos da FFMS, ao conduzir uma análise sociológica com a envergadura da que foi realizada nos últimos anos, no âmbito do projecto Valores, Qualidade das instituições e Desenvolvimento” (trata-se do mais completo estudo sobre a matéria alguma vez realizado sobre Portugal): lançar a debate as questões e problemas que afectam o desempenho das instituições, em particular as públicas, com vista a traçar um retrato da realidade actual sobre os modelos de governance em Portugal e sobre os meios para os aperfeiçoar, a partir da perspectiva de quem dirige e trabalha nas organizações.

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