Ainda não recuperado dos monstruosos ataques que colocaram Paris no centro do mundo, o Velho Continente terá de dar uso a toda a sua sabedoria para assegurar que a tríade de valores que sustenta a democracia permaneça intacta. Todavia, quando se misturam fundamentalismos, islamofobias e políticas de imigração, garantir a liberdade e a igualdade e não esquecer a fraternidade poderá ser a mais forte ameaça a enfrentar no período “pós-Charlie”
POR
HELENA OLIVEIRA

Um dia depois dos terríveis ataques terroristas que colocaram Paris no centro do mundo, a mais conhecida organização sem fins lucrativos germânica, a Bertelsmann Stiftung, publicou um estudo aprofundado sobre a comunidade muçulmana residente na Alemanha. Se a data de publicação estava já anteriormente designada não se sabe, mas a verdade é que alguns dos dados divulgados dão que pensar, especialmente agora em que o mundo entra em fase de rescaldo face aos acontecimentos, (quase) unanimemente repudiados e condenados, que vitimaram 20 pessoas (três delas, os próprios terroristas) na passada semana.

Num breve resumo do estudo em causa, conclui-se que as atitudes e os estilos de vida dos muçulmanos que vivem na Alemanha (cuja comunidade é, a seguir à França, a segunda maior da Europa) reflectem, significativamente, os valores sociais prevalecentes na terra liderada por Merkel, um facto, no entanto, muito pouco reconhecido pela população em geral. O estudo demonstra, assim, que a maioria dos alemães está, de forma crescente, a desenvolver um sentimento de aversão no que respeita ao Islão, o que resulta em maior exclusão e num clima de adversidade para os muçulmanos que ali construíram as suas vidas.

Ainda de acordo com o mesmo estudo, a maioria dos quatro milhões de muçulmanos que vive na Alemanha “faz parte do tecido social do país”, sendo que as suas atitudes reflectem os valores essenciais da República Federal, tais como a crença na democracia e na diversidade. A título de exemplo, 90% dos respondentes muçulmanos – que afirmaram ser extremamente religiosos -, apoiam a democracia como forma de governo; nove em cada 10 têm contacto com não-muçulmanos no seu tempo livre e um em cada dois refere ter o mesmo contacto tanto com não-muçulmanos como com muçulmanos.

Todavia, o facto de estes entrevistados terem demonstrado uma forte ligação ao país que os acolhe e aos seus valores, em nada ajuda a ultrapassar as atitudes negativas que os alemães “nativos” demonstram face a esta comunidade, antes pelo contrário. Numa sondagem de opinião recente realizada também para este mesmo estudo, 57% dos alemães (não-muçulmanos) encaram o Islão como uma ameaça, contra 53% dos entrevistados em 2012, e 61% não acreditam que o Islão seja compatível com a vida no Ocidente, face a 52% em 2012. Como afirma Yasemin El-Menouar, especialista em temáticas do Islão na própria Bertelsmann, “se por um lado, os muçulmanos consideram a Alemanha como a sua casa, por outro, confrontam-se a si mesmos com uma imagem negativa que prevalece devido a uma minoria de radicais islâmicos”.

Uma semana passada sobre o mais vil ataque a um dos pilares por excelência da democracia – a liberdade de expressão – o qual transformou este acto de terrorismo bárbaro em algo completamente diferente dos demais que até agora afectaram o Ocidente – muita tinta já correu (livremente) sobre as causas e as consequências deste radicalismo crescente e sem quaisquer limites que grupos islâmicos extremistas perpetram de forma cada vez mais sanguinária. Todavia, e se lições existem que se possam retirar do mediatismo e das ondas de choque que os ataques “Charlie Hebdo” provocaram, uma delas aponta para o cuidado extremo que a Europa, e os seus líderes, terão de ter para separar e isolar a minoria islâmica extremista da maioria muçulmana moderada.

15012015_EuropaSentadaNumBarrilDePolvoraUma forma para tal acontecer, como defende a revista The Atlantic, é assegurar que os muçulmanos percebam que o Ocidente não está à procura de uma luta com toda a comunidade islâmica. “A Europa tem de viver de acordo com os ideais representados pelos seus parlamentos supranacionais ao defender os seus cidadãos, e os seus princípios, do terror islâmico, com toda a força, sempre que necessário, mas terá também de proteger os muçulmanos comuns de formas de vingança, as quais representariam, elas mesmas, uma ameaça aos mesmos ideais europeus”. Ou, por outras palavras, a Europa terá de conviver com a noção clara de que dois sentimentos aparentemente contraditórios podem viver lado a lado: a convicção que os muçulmanos podem ser membros “integrais” das democracias europeias em conjunto com a determinação inabalável de defender essas democracias contra o fundamentalismo islâmico.

E está será, porventura, a maior dificuldade que o Velho Continente enfrentará no período “pós-Charlie”.

Fundamentalismo, islamofobia e políticas de imigração

Não só em França, mas num conjunto crescente de países europeus, o sentimento de medo e de aversão face às comunidades muçulmanas e a outras minorias tem estado no centro do debate, em especial ao longo do último ano, tal como demonstraram os resultados eleitorais da Europa a 25 de Maio de 2014. A queda dos partidos tradicionalmente fortes na Europa – também denominados como mainstream – gerou consternação, principalmente em países como a França, considerada como um dos motores principais, em conjunto com a Alemanha, do chamado projecto europeu, o qual parece ter ficado seriamente ameaçado depois da vitória de Marine Le Pen e da sua Frente Nacional, em conjunto com os bons resultados obtidos por partidos “congéneres” um pouco por toda a União. Aliás, a líder da Frente Nacional, o partido de extrema-direita, anti-imigração no geral e anti-Islão no particular, não perdeu tempo para usar a tragédia em seu proveito e para tentar dividir os franceses, apelando ao regresso da pena de morte (abolida em 1981 em França) e pedindo a suspensão do Espaço Schengen para que os franceses “recuperem o controlo das suas fronteiras”.

Este massacre está a gerar – e continuará a fazê-lo – inúmeros debates, seja no que respeita à liberdade de imprensa, à crescente revolta contra os muçulmanos residentes na Europa, ao fundamentalismo e terrorismo islâmico. E se os sentimentos anti-imigração situavam-se já, antes do massacre, em níveis de alta perigosidade – os líderes do Ocidente terão de sublinhar que este tipo de extremismo não é inerente à fé islâmica no seu todo e de assegurar que partidos como a Frente Nacional ou o movimento alemão PEGIDA (cuja sigla significa, em tradução livre, Europeus Patriotas Contra a islamização do Ocidente) se sirvam do exemplo Charlie Hebdo para ganhar adeptos contra os imigrantes residentes na Europa.

Na passada segunda-feira, 12, perto de 40 mil simpatizantes do PEGIDA manifestaram-se em Dresden, na Alemanha, munidos de cartazes anti-imigração, exigindo a retirada dos “imigrantes que não se integram” e gritando que o “multiculturalismo” não funciona.

Por outro lado, muitos têm sido os alertas para que não se caia na tentação de culpar estes ataques com base apenas na sua componente ideológica, esquecendo os necessários contextos sociais e políticos. E os alertas servem para ambos os lados da barricada. O que realmente parece estimular os movimentos como o PEGIDA ou a Frente Nacional não é a defesa dos valores universais da liberdade, igualdade e fraternidade, mas sim uma “concepção monocultural e monoétnica do que significa ser um verdadeiro alemão ou francês”, como escreveu Yasha Mounk, o autor de Stranger in My Own Country: A Jewish Family in Modern Germany, na revista Slate. Por seu turno, para os que têm demonstrado também algumas reservas face “à ofensa” das caricaturas – e questionam se deve haver “limites” ou “bom senso” em termos de liberdade de imprensa, a resposta só pode ser um enfático “não”. Não pactuar com estes radicalismos é imperioso, tal como foi amplamente demonstrado nas manifestações que tiveram lugar em França, no passado Domingo, e que trouxeram às ruas cerca de 3,7 milhões de franceses, de vários credos, unidos contra o inimigo comum do terrorismo.

Mas, e à medida que o tempo passa, cada vez são mais os analistas, de vários quadrantes da sociedade, que afirmam que os ataques à revista satírica francesa não tiveram como principal detonador a religião (ou a “blasfémia”) – na medida em que nenhum outra religião ficou “a salvo” da tinta dos cartoonistas -, mas sim a destabilização dos valores ocidentais, por parte de fanáticos “pseudo-religiosos”, nomeadamente nascidos em França. Algo que traz para o debate uma outra variável: o que faz com que imigrantes de segunda geração se sintam atraídos por organizações terroristas como a Al-Qaeda ou a mais recente autoproclamada Entidade Islâmica (EI)?

Minorias ficarão mais receptivas à sedução do extremismo

15012015_EuropaSentadaNumBarrilDePolvora2Num interessante artigo escrito por Robert S. Leiken, Director do Programa de Imigração e Segurança Nacional do Nixon Center e autor do livro Bearers of Jihad? Immigration and National Security After 9/11, pode ler-se que o movimento de jihadistas europeu não é composto, na sua maioria, por imigrantes, mas sim pelos filhos destes, comummente apelidados de imigrantes de segunda geração, contrastando com os perpetradores dos ataques do 11 de Setembro, do ataque bombista ao World Trade Center em 1993, ou dos que vitimaram Madrid em 2004 ou Londres em 2005 (entre vários outros).

O especialista em questões islâmicas afirma que estes “guerreiros” são, tipicamente, nascidos, criados e socializados na Europa, tal como os irmãos Cherif e Said Kouachi, que mataram 12 pessoas no atentado contra a revista satírica Charlie Hebdo, e Amedy Coulibaly, que assassinou uma mulher polícia no sul de Paris e quatro reféns na mercearia judaica. Leiken defende também que, à medida que a EI se profissionaliza e a Al-Qaeda se regionaliza, o perigo não pára de crescer (dentro e fora das fronteiras europeias)

Todavia, a sua tese centra-se no facto de este “convite para o jihadismo no exterior” estar a seduzir muitos jovens na Europa, no geral, e em França, Inglaterra e Alemanha, no particular, os quais cresceram, nos países que em primeira instância acolheram os seus pais, em condições de extrema vulnerabilidade, enfrentando discriminação social e económica, ao contrário dos filhos dos muçulmanos que nasceram nos Estados Unidos. Estes últimos, na generalidade, conseguiram encontrar a sua identidade e prosperar, o que não acontece com os filhos dos imigrantes europeus, mais facilmente seduzidos pelos recrutadores jihadistas. E se uma resposta para esta diferença poderá residir no factor de proximidade (não é difícil chegar à Síria ou ao Iraque, onde se concentram os “campos de treino” dos jihadistas radicais), para Leiken essa facilidade não explica a “história” toda.

De acordo com o autor, os imigrantes muçulmanos de segunda geração residentes nos Estados Unidos são filhos de profissionais ou de estudantes que começaram a chegar à América quando as leis de imigração foram suavizadas em 1965 e que conseguiram estudar em universidades americanas, criar as suas famílias de forma confortável e auferir rendimentos “suficientes”. Pelo contrário, os muçulmanos começaram a chegar à Europa, em massa, a partir dos anos 50, quando o norte do Velho Continente tinha “esgotado” a sua mão-de-obra proveniente da sua parte sul, o que chamou pessoas da Argélia, Paquistão, Turquia, Marrocos e do Médio Oriente. Assim, e se os filhos dos imigrantes que rumaram para os Estados Unidos pertencem, de forma significativa, à classe média ou até superior, os filhos dos muçulmanos europeus pertencem à classe mais baixa.

Todavia, a pobreza não é a única “razão” para este fascínio pelo extremismo e fanatismo de grupos como a Al-Qaeda ou a EI. Leiken aponta também o facto de esta segunda geração de imigrantes enfrentar um “desconcertante choque de civilizações”: criados no seio de valores e expectativas próprios da religião muçulmana, a vida que encontram “lá fora” é completamente inversa – e adversa – às suas crenças. “Se os seus pais insistem que não podem desobedecer à obrigação de casarem com uma prima ‘rústica’, se a sua irmã tem de cobrir a face e o cabelo”, a integração na sociedade que os acolhe torna-se extremamente complexa, marginalizando-os e tornando-os “presas fáceis” para os fundamentalistas recrutadores.

Voltando às consequências que a Europa terá, inevitavelmente, de lidar, o “caldeirão” parece estar repleto de todos os ingredientes necessários para grandes “congestões”: o perigo real dos sentimentos anti-Islão latentes no continente, combinado com as vozes que se erguem contra os imigrantes no geral, condimentado com a ainda patente recessão económica e culminando com os esforços dos jihadistas para aproveitar o turbilhão de acontecimentos que poderão servir para reforçar a sua posição. Qualquer acto de revolta contra as minorias muçulmanas espalhadas por toda a Europa poderá resultar numa maior vulnerabilidade aos métodos de persuasão destes extremistas.

A Europa deverá continuar a lutar com todas as suas forças para manter intactos os seus ideais de liberdade e igualdade, mas tentar, em simultâneo e por muito difícil que seja, não esquecer o terceiro vértice deste triângulo valorativo: a fraternidade.

Editora Executiva