A organização Human Rights Watch publicou o seu relatório anual sobre os direitos humanos no qual, como já é habitual, constam os suspeitos do costume. Todavia e pela primeira vez, a Europa merece uma chamada de atenção especial por parte destes observadores, na medida em que é acusada de estar a contribuir para a erosão dos direitos humanos no interior das suas fronteiras. Uma crise que, aliada à outra que já pesa sobre o Velho Continente, pode ter consequências incalculáveis
POR HELENA OLIVEIRA

.
.
© DR
.

A União Europeia e os seus estados-membros provaram estar pouco dispostos a lidar com abusos nos direitos humanos dentro das suas próprias fronteiras ao longo do ano de 2011, mesmo depois de terem proclamado a sua extrema importância como a grande inspiração para a Primavera Árabe. Esta é uma das conclusões do relatório anual, publicado Human Rights Watch, e que chama a atenção para uma erosão preocupante dos direitos humanos no interior das fronteiras europeias.

A organização alerta para novas e preocupantes tendências relativamente aos direitos humanos na região da União Europeia, destacando acontecimentos em nove dos 27 estados-membros, para além de eleger as áreas da migração e asilo, discriminação e intolerância, par de políticas antiterrorismo, como as que merecem cuidados redobrados.

O relatório, que contém 676 páginas, cobre, como é habitual, algumas das maiores histórias em matéria de direitos humanos, incluindo a já estafada questão da China e dos seus dissidentes, os ataques contínuos a civis na República Democrática do Congo, a par da resposta ambivalente por parte da comunidade internacional no que respeita à Primavera Árabe.

Todavia, não é prática comum a União Europeia ter um capítulo exclusivo dedicado à sua “performance” nos direitos humanos. Este ensaio conclui que o respeito pelos direitos humanos está em declínio, que a aplicação das leis está enfraquecida quando existem violações dos mesmos, a par de uma influência crescente dos partidos extremistas e um recuo na ideia de que os direitos se aplicam de igual forma a toda a gente numa altura em que a crise que assola a Europa exige uma acção urgente.

“A julgar pela retórica crescente relativamente à Primavera Árabe em 2011, os direitos humanos deveriam constar como preocupação central da UE”, afirma Benjamin Ward, um dos directores da Human Rights Watch para a Europa. “Mas a verdade lamentável é que os governos da União Europeia têm-se colocado à margem destes direitos no interior das suas próprias fronteiras quando estes lhes são inconvenientes, especialmente aqueles ligados às minorias mais vulneráveis e aos migrantes”, acrescenta.

Como se pode ler no relatório, a ideia de que existe uma crise de direitos humanos na Europa pode parecer rebuscada. “Mas se escavarmos para além da superfície, as tendências são realmente preocupantes, particularmente em quatro questões fundamentais: o recuo das liberdades civis nas respostas por parte dos Estados no que respeita aos ataques terroristas; o debate sobre o posicionamento das minorias e dos migrantes na Europa, que está cada vez mais perto da xenofobia; a ascensão dos partidos políticos extremistas e da sua influência nefasta nas políticas públicas e, por último, a diminuição da eficácia das instituições e ferramentas tradicionais de protecção aos direitos humanos”. Para os autores do relatório, a não ser que os governos europeus acordem para a escala desta ameaça, a próxima geração de europeus poderá ter de considerar os direitos humanos como um extra, em substituição de um valor central pelo qual a Europa sempre lutou.

Contraterrorismo e as novas regras do jogo

A violência terrorista na Europa não é nada de novo. Nem o abuso dos direitos humanos como parte do esforço para a combater. Mas a verdade é que os ataques do 11 de Setembro, seguidos pelos que atingiram Madrid e Londres, obrigaram a respostas políticas na Europa que causaram perturbações duradouras na defesa dos direitos humanos.

Na última década, os governos europeus demonstraram, por demasiadas vezes, uma vontade de relegar para segundo plano a proibição global e absoluta de actos de tortura, expondo os suspeitos de terrorismo a violentos abusos e a detenções ilegais, utilizando os frutos dessa tortura no interior das suas fronteiras e negando-lhes quaisquer tipos de direitos.

Muitos governos europeus tentaram construir um novo paradigma no qual os direitos humanos, nestes casos, teriam de passar para plano secundário. Basta recordar as palavras do então primeiro-ministro britânico Tony Blair que, em 2005, e depois dos ataques suicidas em Londres, afirmou que “as regras do jogo estavam a mudar”. E, apesar das preocupações públicas sobre o terrorismo terem sido suplantadas por outras mais actuais como o desemprego e os apoios sociais, a verdade é que estas ideias envenenadas enraizaram-se.

O relatório da Human Rights Watch acusa os políticos europeus de terem montado um ataque em três frentes no contexto do combate ao terrorismo. A primeira foi terem “decretado” que os suspeitos de terrorismo merecem ter menos direitos do que os demais; a segunda é a de que a Europa pode ter segurança ou direitos humanos, e não ambas as coisas; e, por último, o facto de os direitos humanos serem encarados como uma soma igual a zero, na medida em que os direitos da maioria apenas podem ser garantidos caso se sacrifiquem os direitos das minorias suspeitas de terrorismo.

Movidos pelo medo, são muitos os europeus que aceitam estes argumentos. E, oferecida que lhes foi uma hipótese de transaccionar esses direitos para aplacar esse medo, as pessoas aceitaram-na, especialmente quando os direitos que ficaram em risco não são, ou pelo menos não parecem, ser os seus.

O lugar dos migrantes e das minorias “problemáticas”
A intolerância relativa aos migrantes e às minorias na Europa está disseminada. Dados resultantes de várias pesquisas realizadas em 2010 demonstram que a maioria dos inquiridos em oito países da EU partilha da visão de que existem demasiados migrantes, sendo que metade destes sentem o mesmo particularmente em relação aos muçulmanos. Os medos relativos à perda de cultura, terrorismo, crime e a competição pelos recursos económicos constituem as principais causas que explicam a intolerância crescente na Europa. E, como seria de esperar, a actual crise económica e financeira, cuja grande consequência é a austeridade irá, muito provavelmente, exacerbar esta intolerância.

Os muçulmanos residentes na Europa e a hostilidade persistente relativamente às pessoas de etnia cigana constituem dois dos principais problemas. Os migrantes, sem documentos, vindos de África, enfrentam grandes doses de discriminação e violência. E enquanto os ataques individuais na região são já comuns, em alguns casos transformaram-se em ondas de violência, como na Itália (contra os africanos e os de etnia cigana), na Grécia (contra os migrantes em geral) e na Europa de Leste (também contra as pessoas de etnia cigana).

A resposta dos governos europeus foi, de acordo com os responsáveis do relatório, extremamente corrosiva no que respeita aos direitos universais. Em vez de se enfatizar a história da Europa, que sempre foi moldada pelas correntes migratórias, os governos acabaram por tirar proveito destes medos.
A resposta incluiu a culpa apontada a comunidades marginalizadas por causa da conduta de um pequeno conjunto de pessoas (como aconteceu em Itália com a comunidade cigana); a tentativa de fechar as fronteiras da UE; procedimentos restritivos e abusivos em termos de asilo e condições de detenção igualmente abusivas (particularmente na Grécia), com muitas crianças migrantes a ficarem sem acompanhamento e numa situação de risco preocupante; e, sob o nome da integração, o discurso feito a migrantes (em muitos casos de segunda ou terceira geração) de que estes devem abraçar a cultura dominante e que, caso não o façam, terão de enfrentar sanções e até a ameaça de deportação (na Alemanha, na Holanda, Dinamarca e em outros países).

O impacto dos direitos humanos na Europa é real. A um nível prático, a integração forçada e o conceito de integração que não exige qualquer tipo de acomodação por parte da sociedade alargada está votado ao insucesso. Quando os decisores políticos concordam com os temores públicos sobre a perda de cultura e perseguem políticas que aumentam, em vez de diminuírem, a xenofobia, o que está a ser reforçado é a ideia de que as minorias devem ser forçadas a aceitar a cultura predominante e, caso recusem fazê-lo, os seus direitos devem ser colocados de lado em nome de um bem maior.

A ascensão do extremismo partidário
O fracasso da liderança e a retórica negativa por parte dos governos europeus estão igualmente relacionados com uma outra tendência preocupante: a ascensão dos partidos extremistas.
O ataque terrorista perpetrado em Julho de 2011 por Anders Breivik e que resultou na morte de 77 noruegueses, constituiu um forte alerta para o facto de o extremismo e da violência política não estarem confinados aos que agem em nome do Islão. Apesar de este ter sido um acto isolado, a verdade é que o manifesto citado por Breivik conta com a aprovação de vários partidos extremistas na Europa.

O sucesso crescente destes partidos nas urnas de voto espalhadas pelo Velho Continente está a ter um impacto profundo na política “normal”. Independentemente do facto de estes partidos extremistas poderem fazer parte de coligações (como na Itália e na Suíça) ou surgirem sob a forma de governos minoritários com apoio formal (como na Holanda), a verdade é que o seu impacto na política é imediatamente evidente. De uma forma geral, os partidos comuns têm vindo a responder a esta quota crescente eleitoral dos partidos extremistas mediante formas que se afastam das políticas que respeitam os direitos humanos.

Na Europa Ocidental, os partidos extremistas têm na sua mira os muçulmanos e a sua alegada ameaça à cultura europeia. Outros, de que é exemplo o partido de extrema-direita da Liga do Norte, na Itália, concentram as suas energias contra as comunidades migrantes no geral.

O enfoque nos muçulmanos e o medo de ataques terroristas permite a estes partidos resistirem mais facilmente a acusações de racismo e xenofobia (alguns chegam até a distinguir as “boas” minorias das comunidades muçulmanas). E, numa altura em que, face às medidas de austeridade, aumenta o descontentamento popular e o desemprego massificado, estas mensagens arriscam-se a ganhar um apoio considerável e perigoso.

O crescimento dos partidos extremistas constitui um verdadeiro desafio aos direitos humanos na Europa. Dão azo a políticas divisórias, reforçam a ideia de que os direitos humanos das maiorias apenas podem prevalecer e serem respeitados se os das minorias forem colocados de lado, o que acaba por legitimar políticas abusivas em terrenos democráticos.

O declínio dos direitos humanos na Europa é uma questão que deve constar da lista de preocupações prioritárias dos governantes europeus. Se estas ideias perigosas – de que alguns merecem menos direitos que os outros e que a vontade democrática da maioria pode relegar o posicionamento dos direitos das minorias para um lugar secundário – não forem rapidamente contrariadas, as perdas serão incalculáveis.

 

Editora Executiva