“Para haver transformação social, precisamos de contrariar um pensamento «monolítico», de não diálogo”. Nas palavras de Ana Dubeux, sem diálogo académicos e comunidades não podem “reconhecer problemas comuns e beneficiar mutuamente”. A partir da sua experiência em investigação participativa nas áreas da economia solidária e da agro-ecologia, a activista e professora na Universidade Federal Rural de Pernambuco defendeu, no Encontro Internacional “Sinergias para a Transformação Social”, que decorreu no Porto no âmbito do projecto Sinergias ED, que a construção de conhecimento “é multidimensional, não apenas racional, mas também emocional, afectiva, espiritual”
POR RITA CAETANO

“Se Einstein vivesse hoje, nunca teria desenvolvido a teoria da relatividade, estaria demasiado preocupado em escrever dez papers por dia.” A caricatura é de Ana Dubeux, professora, investigadora e activista de Pernambuco, Brasil, que num encontro internacional realizado na passada semana no Porto, defendeu a urgência de mudar a academia para a aproximar das comunidades e de um conhecimento que seja significativo.

Ana Dubeux apresenta-se como militante pela mudança das universidades. Professora associada do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco e membro do Núcleo de Agroecologia e Campesinato (NAC), acredita que o conhecimento produzido na academia tem obrigatoriamente de estar ao serviço das comunidades e das suas necessidades. “Para haver transformação social, precisamos de contrariar um pensamento «monolítico», de não diálogo”, defende. Recusando um pensar “monolítico” em que “um investigador se dedica apenas à produção de artigos porque assim é avaliado, sem preocupação de que esses artigos sejam também úteis ou sequer lidos”, alerta que este é um “paradigma dominante” e que deve ser quebrado, já que “precisamos de trazer ao de cima o conhecimento que está fora das universidades”. E a solução que propõe é o diálogo e a colaboração: “o diálogo é a chave. Se não há diálogo como é que académicos e comunidades se podem conhecer, reconhecer problemas comuns e beneficiar mutuamente?”.

A educadora popular, como gosta de se definir, foi uma das participantes do Encontro Internacional “Sinergias para a Transformação Social – colaboração e conhecimento”, realizado a 5 e 6 de Junho, na FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto, numa iniciativa conjunta do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, da Fundação Gonçalo da Silveira e do CIDAC, entidades promotoras do projecto “Sinergias ED”.

Ao evento, que envolveu a participação activa de meia centena de pessoas, trouxe a sua experiência em investigação participativa “sobretudo nas áreas da economia solidária, da agro-ecologia e da extensão rural e universitária” [uma “extensão” do trabalho da Universidade, que implica intervenção com as comunidades envolventes]. Na sua opinião, nem sempre é fácil entender o trabalho de quem se dedica simultaneamente a pesquisar e agir. “Eu trabalho nesta perspectiva: não faço só acção, não faço só investigação, não faço só ensino, faço algo que está articulado”, explica, acrescentando que “é assim que o sentido da investigação académica emerge, na acção prática no terreno, junto de agricultores, das comunidades rurais”.

“O saber está dentro de nós”

A também fundadora da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares apelou mesmo a caminhar numa direcção “contra-hegemónica”, motivo que a levou a trazer ao Porto a proposta metodológica das Instalações Pedagógicas. Afinal, “se queremos construir conhecimento de outra forma, precisamos de repensar conceitos, métodos e práticas. Mesmo que isso não seja fácil”. Cada participante foi desafiado a trazer e partilhar as suas experiências, realidades e aprendizagens para criar instalações artísticas em torno da ideia chave do Encontro: conhecimento e colaboração entre academia e sociedade civil.

Conforme explica Ana Dubeux, “instalações Pedagógicas são instalações artísticas”, construções colectivas importantes para potenciar outras formas de construção de conhecimento “que estimulam a criatividade dos diferentes sujeitos participantes” e permitem o debate e o diálogo de saberes “de forma horizontal, dinâmica e integradora”, esclarece.

[quote_center]O sentido da investigação académica emerge na acção prática no terreno[/quote_center]

Nesta dinâmica, parte-se do pressuposto de que cada pessoa encerra em si conhecimentos que são significativos para o colectivo. “Muitas vezes apercebo-me que as pessoas nem têm consciência de que são detentoras de conhecimento. Um agricultor que descobriu como ultrapassar um problema que tinha com a sua produção, muitas vezes não se apercebe do quão valioso é esse conhecimento para outros”¸ exemplifica. É como se existisse uma espécie de hierarquia de conhecimento, liderada pela academia. “Os conhecimentos oriundos da comunidade são normalmente menos valorizados. Mas quem decide as regras de produção de conhecimento? Quem decide quanto vale o conhecimento de cada um?”. Questionamentos que a investigadora acompanha com uma certeza: “a valorização de saberes comunitários, de quem lida com problemas práticos, é essencial para a construção de um outro saber, de um novo saber.”


Fazer “emergir” o conhecimento de cada um

Tornar cada pessoa consciente do seu saber e fazê-lo emergir foi o foco da sessão que se estendeu ao longo da primeira manhã de encontro. O desafio foi proposto aos participantes e dinamizado em dois grupos, ambos bastante heterogéneos nas geografias e experiências dos seus elementos. Livros, objectos, memórias, imagens, foram trazidos à sessão para ajudar a ilustrar ideias ou experiências de lugares e de tempos diferentes e serviram de base à construção colectiva de duas Instalações Pedagógicas feitas “de trajectórias e de cenários carregados de sentido”. Foi a partir daí “que se geraram questões a serem problematizadas”, refere Ana Dubeux.

A dinâmica artística, informal e experimental, foi motor para reflexões “profundas” sobre o que é conhecimento, onde se encontra e como se valoriza o conhecimento que está nas «fronteiras» da sociedade; e também sobre o “confronto” entre as expectativas e perspectivas pessoais e a criação de um sentido colectivo. Este processo, conforme realça a investigadora, “é ele mesmo educativo”, ajudando a perceber que a construção de conhecimento “é multidimensional, não apenas racional mas também emocional, afectiva, espiritual. Também se constrói conhecimento a partir das emoções”, sublinha.

No final, as reflexões materializaram-se numa representação visual, a instalação pedagógica propriamente dita, “repleta de manifestações simbólicas com diferentes interpretações” ou, por outras palavras, uma criação artística capaz de ser ‘lida’ de muitas formas. “Isto implica um desapego, das minhas ideias e das minhas certezas, estou a disponibilizá-las para serem questionadas, lidas de outras formas, isto é aprendizagem colectiva”, conclui.

Sistematização e conhecimento significativo

“Qual o sumo a retirar desta quantidade enorme de laranjas?”. A pergunta da investigadora, em jeito de metáfora, ajuda a ilustrar a importância da sistematização de experiências e de conhecimentos. Se aprender é por si só um processo transformador, é a sistematização de saberes que permite dar consciência a cada pessoa de que ela é produtora de conhecimento. A juntar, facilita o “conflito cognitivo”, isto é, o momento em que o velho dá lugar ao novo e em que se produz um conhecimento que é realmente significativo.

[quote_center]É essencial a criação de espaços públicos de debate, que ajudem a provocar o mainstream[/quote_center]

Conforme propõe Marco Domingues, professor na Escola Superior de Educação de Castelo Branco, presidente da Direcção da Animar e membro de outras associações de cariz local, “a dimensão de utilidade do conhecimento materializa-se quando esse conhecimento conduz ao desenvolvimento de competências que permitam a cada pessoa ou comunidade melhorar a sua qualidade de vida” o que, na perspectiva deste convidado do Encontro, é essencial “para se gerar transformação social”.

Ana Dubeux vai mais longe: “mais do que conhecimento útil, interessa conhecimento significativo, que é aquele que transforma as comunidades mas que também nos transforma a nós, investigadores, ao desempenhar o nosso trabalho. Precisamos de nos transformar primeiro, e só depois podemos ambicionar transformar as comunidades, as instituições”, conclui.

Em linha com as próprias preocupações do projecto Sinergias ED, procurou-se ao longo de todo o Encontro facilitar a sistematização de saberes e de experiências, dando espaço e tempo à reflexão e ao debate. “Procurámos fugir a modelos convencionais para dar voz aos participantes”, explica Jorge Cardoso, da equipa organizadora. Para além das instalações pedagógicas, “onde os participantes são protagonistas, incluímos no programa oficinas de trabalho e um momento de teatro-fórum. Talvez fruto desta opção, mesmo os momentos mais ‘tradicionais’, em plenário, acabaram por ser igualmente muito participados entre convidados e plateia”. Aspecto que se revelou importante para “gerar questionamentos e trazer a debate as reflexões e experiências de cada participante”, acrescenta.

A apresentação, partilha e discussão das experiências proporcionadas pelo projecto e respectivos resultados foi também um dos objectivos deste evento que contou com uma “grande maioria de participantes já de algum modo envolvido nas actividades do Sinergias ED, ao longo dos dois anos desta segunda edição de projecto”.


Uma proposta de Educação Transformadora

Segundo Ana Dubeux, é essencial “a criação de espaços públicos de debate, que ajudem a provocar o mainstream”. Um papel que o projecto Sinergias ED, a terminar a sua segunda edição, tem vindo a reclamar ao potenciar a reflexão sobre Educação para o Desenvolvimento enquanto proposta de educação transformadora.

O projecto tem-se reconstruído a partir das reflexões e acções de cada pessoa e entidade “que lhe dá corpo”, explica Jorge Cardoso, e cujo envolvimento nos encontros e actividades propostas tem sido “crucial” para que o Sinergias ED tenha adquirido “o âmbito nacional que tem hoje. Já deixou de ser pertença apenas das organizações promotoras”, conclui.

[quote_center]O projecto Sinergias ED tem já uma terceira edição garantida[/quote_center]

Questionar as ‘hierarquias do conhecimento’ e construir novos saberes de modo colectivo “já é, em si mesmo, Educação para o Desenvolvimento”, uma forma de estar que “valoriza mais o processo do que o resultado” e que tem como propósito tornar as pessoas conscientes do seu papel e poder para transformar as suas realidades, a sociedade. “Trata-se de valorizar a diversidade de conhecimentos, por oposição a verdades absolutas”, frisa o membro da equipa da FGS.

“Um projecto fertilizador”

Num tempo marcado pela aceleração, em que impera o fugaz e “a falta de tempo”, encontrar metodologias para parar, pensar e participar criticamente tornou-se inovador. Partindo da sua própria realidade, a investigadora Ana Dubeux acredita, no entanto, que estamos a viver um tempo muito particular “em que as formas hegemónicas de construção de conhecimento começam a ser postas em causa”, uma evidência que descreve como mais forte no Brasil onde, inspirados pelos pensamentos de Paulo Freire e de tantos outros que têm reinterpretado as suas ideias, “se estão a aplicar as metodologias da educação popular” – da qual as Instalações Pedagógicas são exemplo.

Em Portugal, o projecto Sinergias ED – que tem já uma terceira edição garantida – parece afirmar-se enquanto semente fértil e inspiradora. “Tem sido um projecto fertilizador, assim mesmo, em jeito de agricultura biológica”, descreve José João Rodrigues, responsável pelo projecto Casa do Sal, na Figueira da Foz, justificando: “tem fertilizado não só as pessoas e as instituições que nele participam, mas também toda a envolvente”.

Nestes tempos complexos, e a bem de um futuro que nos permita olhar para além da produtividade, Ana Dubeux reafirma a necessidade urgente de mudar métodos, na academia e fora dela: “que se experiencie, partilhe, reflicta e colabore”. Se ambicionamos concretizar processos de transformação social, o que precisamos é de construir vínculos sociais, uns com os outros. “Temos de nos envolver, e não (des)envolver”, conclui.

Nota final:
Em breve serão disponibilizados na página de evento alguns materiais resultantes deste Encontro, incluindo um conjunto de vídeos das intervenções dos convidados.

Comunicação e Relações Institucionais da Fundação Gonçalo da Silveira