Em entrevista à Renascença, o autor do livro “As 10 Questões do Colapso” fala da polémica da Caixa e argumenta que uma derrocada financeira e um novo resgate podem estar iminentes
POR SANDRA AFONSO / RENASCENÇA

Um perdão da dívida a Portugal “provavelmente é inevitável”, mas “vai doer a todos”, afirma o economista João César Neves, que acaba de lançar o livro “As 10 Questões do Colapso”. Em entrevista à Renascença, o catedrático argumenta que a recuperação económica está a falhar e pode estar iminente uma derrocada financeira. Um segundo resgate será inevitável se nada mudar, avisa.

César das Neves também fala da polémica em torno da Caixa Geral de Depósitos. A nova administração já está fragilizada e todo o processo é uma lamentável “trapalhice”.

Sabemos que a economia é cíclica, às crises sucede-se a recuperação… mas o que nos diz neste livro é que antes da bonança temos que enfrentar a maior tempestade de todas. O colapso é inevitável?

Neste momento não podemos prever o futuro, há muitas coisas imponderáveis. Agora, o que sabemos é que a situação é muito frágil, e por isso não temos capacidade de evitar pelo menos um ajustamento forte. Um colapso poderá eventualmente ser evitável, mas não podemos é evitar as consequências de uma enorme quantidade de desequilíbrios que são latentes na economia portuguesa. Portanto, isto não encaixa bem no fenómeno do ciclo económico, porque é uma doença mais profunda, e essa não está a ser resolvida.

Nós tivemos de facto um ajustamento muito forte mas não resolveu os problemas, e a recuperação actual está a ser muito fraca. E, portanto, isto tudo cria uma situação a que muito dificilmente podemos escapar, embora não seja inevitável. Mas muito dificilmente poderemos escapar de um tropeço muito forte na economia.

Diz que esta derrocada financeira vai acontecer, o mais tardar, em 2017. Porquê? Como é que situa estes acontecimentos?

Eu não posso dizer isso. O que eu posso dizer é que é muito provável acontecer alguma coisa em 2016 ou 2017. Poderá ser em 2018, enfim… As circunstâncias internacionais estão muito voláteis, e ninguém consegue prever nada. Agora, há uma forte probabilidade de ser já nestes próximos meses. E sobretudo depende muito – e é esse o objectivo do livro – da atitude que nós vamos ter nos próximos tempos. Portanto, de alguma maneira este livro pretende não ser verdadeiro, ou seja, pretende que não se cumpra aquilo que prevê.

[quote_center]Muito dificilmente poderemos escapar de um tropeço muito forte na economia[/quote_center]

Se as pessoas tomarem juízo, se as autoridades, os bancos, os consumidores, os trabalhadores tomarem juízo, poderemos evitar ainda, vamos a tempo e é esse o objectivo deste livro. O objectivo não é fazer previsões. É que há muita gente que está convencida que pronto, já está, vamos poder voltar ao normal, e não é verdade. E é perante isso, para evitar essa loucura, que o livro está escrito.

Aponta dois motivos essenciais: a banca e as contas públicas. Pode desenvolver?

Nós temos um problema financeiro muito grave que foi acumulado durante muito tempo. Tivemos, desde 1992, praticamente desde o início da década de 90 (com a entrada no processo para o Euro e depois com a entrada no Euro) uma descida da taxa de juros que levou a um grande endividamento público e privado. O sítio onde estas duas coisas se encaixam é na banca, que é o sítio onde o banco, o Estado e as famílias vão pedir dinheiro. E pronto, o problema transferiu-se para a banca. E é um problema financeiro: nós temos esta dificuldade financeira, temos uma carga e uma dívida muito forte. Temos a 5ª maior dívida do mundo, em termos públicos, e no lado privado somos também dos países mais endividados do planeta, embora aqui as contas sejam mais difíceis de fazer, e isso está a criar um peso sobre a economia portuguesa.

Mas isso não é, de facto, o mais importante. É grave, mas o que está mais a assustar é a falta de crescimento económico, a falta de investimento, a falta de poupança. E sem isso qualquer coisa azeda. Se nós tivéssemos a economia a crescer bem, como por exemplo a da Irlanda (que também tem uma dívida muito forte, mas como a economia está a crescer bem, a dívida desaparece, vai pagando), não havia problema. O que assusta nisto é que estamos todos contentes a partilhar benefícios que não existem (estamos a dar outra vez as pensões, regalias aos funcionários públicos) como se estivesse tudo a correr normalmente. E a economia – o lado produtivo – está a ficar esquecida. Não existem, para aqui, recursos, e sobretudo o investimento está a níveis miseráveis, nunca tivemos nada de parecido com isto.

[quote_center]Há muita gente que está convencida que pronto, já está, vamos poder voltar ao normal, e não é verdade[/quote_center]

É esta combinação de três coisas – por um lado, a situação bancária, por outro lado, a situação das finanças públicas e, em terceiro lugar, o cenário macroeconómico – que pode assustar. Como disse aliás o FMI, já depois de o livro ter sido escrito, se houver algum inconveniente ou percalço em delas, podem entrar num efeito de espiral, a que eu chamei colapso. E é preciso ter muito cuidado e muita atenção, e o que assusta um bocadinho é a displicência com que as autoridades, mas também a população, estão a tratar a situação actual da economia. E por isso é que eu escrevi este livro.

E este Orçamento responde a estes problemas?

O Orçamento procura pelo menos tomar isto em conta. Não é inconsciente, mas continua a não estar virado para o lado essencial. Ou seja, o Orçamento revela a consciência de que é preciso cortar ou reduzir o défice. É um bocadinho melhor que o orçamento anterior, de facto, mas continua a estar muito centrado num conjunto de promessas eleitorais. Este parece ser o único Governo da História de Portugal que quer cumprir as promessas; nunca tivemos nenhum e este está preocupado – evidentemente porque tem contratos parlamentares com forças que o estão a pressionar.

Contudo, o Orçamento esquece o lado produtivo, que é aquilo que poderá salvar até aqueles a quem o mesmo quer ajudar. É evidente que ninguém quer sacrificar os funcionários públicos ou os pensionistas, mas só há dinheiro para essas entidades se a economia produzir. Se nós vamos começar a distribuir e o lado produtivo não cresce, não há dinheiro para ninguém, e é esse o drama.

Qual é a solução? Renegociar/restruturar a dívida?

A renegociação da dívida provavelmente é inevitável. Aliás, a própria extrapolação que vem no Orçamento da dívida futura mostra que aquilo não é sustentável. No Orçamento anterior já se dizia isso. O livro tem as duas extrapolações anteriores – do PEC 2016/2020 e do Orçamento para 2016 – e ambas provavam, pela forma como faziam as contas, que não era sustentável, e o Orçamento para 2017 veio confirmar a mesma coisa. Portanto, a nossa dívida não é sustentável.

[quote_center]É esta combinação de três coisas –a situação bancária, a situação das finanças públicas e o cenário macroeconómico – que pode assustar[/quote_center]

Agora, há várias coisas que não se pode dizer. A primeira é dizer que vamos restruturar, porque o Estado está a pedir todos os dias dinheiro emprestado. Por isso, as autoridades não podem dizer que vão restruturar a dívida. Se têm que restruturar, restruturem de surpresa – é a única forma. Em segundo lugar, a maneira de restruturar, primeiro vai-nos doer a todos, porque todos nós temos dívida pública, quer seja directamente ou através da banca (que tem muita dívida pública). Portanto, restruturar vai ser um tiro no nosso pé, não vão ser os alemães que vão perder dinheiro, porque esses já venderam a nossa dívida pública toda que tinham. Somos nós que vamos perder isso, é o Banco Central Europeu – mas esse não perde porque está protegido por lei. Em terceiro lugar, o que é razoável dizer é que, se a dívida não é sustentável, talvez a melhor maneira de resolver o problema seja através de um programa europeu de restruturação da dívida sem ser uma restruturação.

Há muitas maneiras de aliviar o peso da dívida sem ser uma aberta à restruturação. Porque o problema fundamental de uma restruturação é que depois, durante muito tempo, ninguém nos empresta (ninguém empresta dinheiro a uma pessoa que depois não paga o que deve). E por isso é que os governos sucessivos, incluindo o actual, estão ansiosos para não restruturar, e só querem dizer que não vão restruturar, mesmo que olhem para os números financeiros e percebam que provavelmente não têm alternativa. Mas estão ansiosos por dizer o contrário, precisamente porque os custos da restruturação, que a maior parte das pessoas não nota, são enormes. Muitas das pessoas falam da restruturação como se fosse um “almoço grátis”. E, quer dizer, nós podemos cortar os juros da dívida (deixamos de os pagar) e pronto. Mas não é assim. Nós vamos precisar de ir ao mercado, mais cedo ou mais tarde, e nessa altura ninguém nos empresta nada.

A concretizar-se este colapso, será necessário um novo resgate?

Felizmente, temos essa alternativa. É importante dizer que um colapso, como por exemplo aconteceu na Argentina, sem amigos é horrível. Um colapso com “amigos” – o tal do resgate – é muito melhor. E, mais uma vez, habituámo-nos a zangar-nos com a Troika e a chamar-lhes nomes e a criticar o que eles nos emprestaram, mas, se não nos tivessem emprestado, nós tínhamos tido um sarilho horrível.

[quote_center]O problema fundamental de uma restruturação é que depois, durante muito tempo, ninguém nos empresta[/quote_center]

E, mais uma vez, um desajustamento cognitivo é o que o livro pretende corrigir. Claro que se os nossos parceiros europeus estiverem disponíveis para nos ajudar, isso será precioso, porque nos alivia as nossas exigências, já que vamos ter alguém que nos empresta, não de borla mas a preços bastante mais razoáveis que o mercado, e que nos permite aliviar as contas. E embora tenhamos todos sofrido muito por causa do ajustamento dramático a que a Troika nos obrigou, ninguém conseguiu comparar isso com o que teria sido se esta não nos tivesse ajudado. E portanto eu espero que haja um resgate, porque senão os problemas serão muito maiores.

No seu livro, escreve que a banca e o Estado são duas faces do mesmo problema. Essa é uma das razões por que a economia não cresce?

Também é. Não é fundamentalmente, mas também é. De facto, nós temos um problema de grande cumplicidade entre as autoridades, em termos latos, e foi isso que nos trouxe a este sarilho. E portanto, o Estado, os políticos, os banqueiros e os grandes empresários estão muito próximos. Como aliás cito no livro, o responsável pelo FMI disse que em Portugal não conta tanto a qualidade económica dos projectos, mas as relações.

É este “favor de amigos” que nos traz a esta situação, a qual estamos a tentar equilibrar desde 2011. E são duas faces do mesmo problema, de facto, porque a dívida pública também está na banca e porque os bancos também têm no Estado uma entidade que, de alguma maneira, os forçou a emprestar a amigos, digamos assim, e a criar o sarilho em que estamos agora.

Agora estamos perante outro sarilho que se vive na Caixa Geral de Depósitos (CGD) e com a nova administração. Acha que o Governo agiu bem em todo este processo?

É uma coisa muito lamentável. Porque a CGD é muito importante, porque tem um problema financeiro sério e porque ninguém está a tratar dela e desse seu problema. Portanto, está tudo a tratar de um problema lateral, que é saber se entrega uma declaração ou se não entrega, se o salário é alto ou baixo… E eu percebo o problema. O problema tem a ver com o facto de que para ter bons profissionais é preciso pagar-lhes o preço de mercado e este é superior ao dos gestores públicos, e essa é a origem. E por isso há uma quantidade enorme de exigências sobre os gestores públicos que não existem nas outras empresas privadas, e depois o problema é que, para irem para esses lugares, as pessoas precisam de ter condições semelhantes às dos outros concorrentes.

[quote_center]Um colapso com “amigos” – o tal do resgate – é muito melhor[/quote_center]

Penso que houve aqui uma enorme quantidade de mal-entendidos, de trapalhices, de coisas desnecessárias, porque, evidentemente, o que quer que aconteça neste momento, esta administração tem um problema horrível pela frente, já que a Caixa Geral de Depósitos é uma entidade enorme, que tem uma quantidade enorme de alçapões e de paralisias, e etc., e ainda não se sabe muito bem qual é a dimensão do problema.

Eu espero que o dinheiro que ainda não foi injectado, mas que foi prometido, chegue. E esta administração já está enfraquecida. É uma administração que, quando começar a enfrentar as lutas terríveis que vai ter de enfrentar, dentro da instituição e fora dela, para fazer restruturações que não vão ser agradáveis, e já está enfraquecida. É muito lamentável isto tudo.

As declarações de rendimentos devem ser do conhecimento público ou basta que sejam do conhecimento de determinadas autoridades?

Sinceramente, eu acho que os protestos dos administradores da CGD têm alguma razão de ser. Porquê? Porque, neste momento, o que se tem mostrado é que as pessoas publicamente não têm responsabilidade. Ou seja, nenhum de nós quer ser tratado da maneira como trata as figuras públicas. Nós achamos que, neste momento, as figuras públicas são carne para canhão, que podemos tratá-las de qualquer maneira, e na realidade é assim que fazemos… Desrespeitamos políticos, presidentes, primeiros-ministros e toda a gente, com a maior das facilidades. E para andar ali ansiosamente a espiolhar as contas das pessoas é preciso ter algum controlo.

[quote_center]Nem sequer os ministros sonham com o que é a dificuldade de gerir a Caixa Geral de Depósitos[/quote_center]

E se isso é verdade nos políticos, que estão debaixo do escrutínio da população, até porque vão ser eleitos, os administradores da banca não têm esse tipo de apreciação. Eu percebo o argumento que eles utilizam, que não se importam de declarar contas às autoridades mas não querem que as suas contas sejam comentadas pelos vizinhos. E portanto, enquanto não houver uma responsabilidade nestas coisas, não se pode tratar isto desta maneira. O segredo bancário ou o segredo judicial também são violados todos os dias, como toda a gente sabe, com a maior das calmas e não acontece nada às pessoas que os violam. E portanto não há uma atitude responsável e eu compreendo o ponto de vista. Para isso o melhor se calhar era não terem ido para a CGD.

Mas o Governo deveria ter feito a promessa de que essas declarações não seriam tornadas públicas?

O Governo devia ter prometido se podia prometer, e não devia ter prometido se não podia prometer. Prometer e depois não poder cumprir é que não faz sentido. Portanto, se prometeu, tinha que ter condições para prometer. Mas também devo dizer que se era assim e se depois se enganou… Também acontece, as pessoas enganam-se. Mas tinha que ter acabado logo com o assunto. Agora, esta morte lenta de desautorizar pessoas que têm decisões horríveis pela frente… Nenhum de nós, nem sequer os ministros, sonham com o que é a dificuldade de gerir a Caixa Geral de Depósitos. E estarmos aqui, em fogo lento, não fica nem sai, é que acho inacreditável. Não me parece que seja bom para ninguém e sobretudo não o é para as contas públicas, para a CGD nem para os cidadãos em geral.

Regressando ao livro, diz que o mundo vive uma mudança de época e só os que vivem mal agasalhados ficam com febre. A vitória de Trump, nos Estados Unidos, é uma nova ameaça? E nós estamos agasalhados?

Eu penso que a vitória de Trump nos Estados Unidos é uma ameaça, de facto. É um acontecimento inesperado e é um acontecimento muito mau, não apenas em si próprio mas sobretudo pelo sinal que dá. A enorme quantidade de Trumps que apareceram, de extremistas que apareceram em todo o lado, de um lado e de outro… Porque os inimigos de Trump querem ter um alvo que lhes dá a justificação para fazerem as maiores barbaridades, e os partidários de Trump ficaram felizes por causa da vitória. Quem perdeu foi a sensatez, foi o meio. Os dois lados extremos ganharam imenso com esta vitória, mesmo que ele não faça mais nada. E se amanhã morrer com um ataque de coração, este estrago está lá.

[quote_center]Portugal está numa situação muito frágil, e qualquer ventania é a nós que nos afecta mais[/quote_center]

Agora vamos ver o que é que vai acontecer, que obviamente não vai ser bom para os Estados Unidos, nem para o Trump nem para ninguém. Pelo contrário, vai ser muito mau. Vamos ter uma enorme contestação nas ruas, vamos ter uma enorme quantidade de disparates mesmo que ele não cumpra as coisas que prometeu que ia fazer, e muitas das que prometeu são disparates horrorosos que terá dificuldade em evitar.

E, portanto, vai ser muito mau, e evidentemente Portugal está na brecha. Portugal está numa situação muito frágil, e qualquer ventania é a nós que nos afecta mais. Eu já escrevi que nós somos as principais vítimas do Brexit. A votação do mesmo calibre, ou talvez ainda pior, que aconteceu na Inglaterra, em Junho, e que determinou a sua saída da União Europeia, vai aumentar a pressão sobre Portugal, e Portugal não pode aguentar pressão. Nós estamos no limite da nossa fragilidade interna, e com situações internacionais não vai correr bem.

[quote_center]Só nós podemos evitar um colapso, e uma das condições decisivas é ter muita sorte[/quote_center]

Uma das coisas que eu digo é que só nós podemos evitar um colapso, e uma das condições decisivas é ter muita sorte, porque não nos pode acontecer nada de mal nos próximos tempos… Qualquer coisinha e nós vamos imediatamente para as urgências, e esta é uma delas. É uma coisa completamente imponderável, completamente inimaginável, e que agora vai ser nova. Vamos ver o que é que Trump vai fazer, ninguém sabe, nem o próprio provavelmente sabe o que vai acontecer. E de facto é muito mau.

Renascença, 15 de novembro de 2016. Republicado com permissão