Ah, não aparece o lobo mau nesta história? Aparece sim, é a nossa inércia e falta de vontade (e ousadia) em ver que podemos e devemos fazer melhor mas hesitamos, perdendo oportunidades de desenvolvimento. Lembre-se do que diz o célebre provérbio africano não-verificado que abunda nas redes sociais, se quer ir rápido vá sozinho, se quer ir longe leve (boa) companhia…
POR NUNO GASPAR DE OLIVEIRA

Deixem-me contar-vos a história de Capuchinho Verde, a menina-prodígio que devorava enciclopédias em criança, tratava por ‘tu’ (era do campesinato, ao fim de contas) a bicharada da floresta e sonhava com o dia em que teria um forno solar para fazer bio-queques para levar para a avozinha.

Esta, apesar da insistência da mãe para que ela se movesse para mais perto deles, por razões logísticas e porque os velhotes são sempre uma ralação e, além do mais, o centro de saúde (e o bingo) eram mesmo ali no bairro ao lado, insistia em viver do outro lado da floresta. Mas quem a podia censurar? Era mais sossegado, tinha um ribeiro a passar pela horta, onde cresciam deliciosos e coloridos vegetais de origem não controlada e cujas sementes eram guardadas pela avozinha bem enroladinhas em meias num gavetão de madeira do antigo guarda-fatos, sabiamente colocado no lado mais seco da casa, que isto de viver no campo tem as suas chatices, peixinhos-de-prata, carunchos, traças e afins fazem parte da fauna caseira, e a avó, que teria sido em tempos também uma Capuchinho Verde, era adversa a naftalinas e outras porcarias sintéticas que, apesar de matarem a bicheza, ‘diz que’ fazem mal à saúde e ao ambiente (nota: o autor gostaria de fazer aqui o elogio da expressão ‘diz que’, das mais úteis e vagas expressões da língua portuguesa, que tudo validam e a todos iliba, é de génio!).

Bem, de volta às questões de geopolítica familiar, a Capuchinho Verde tinha uma espécie de hotline comercial entre ela e a avó, em troca de petiscos gourmet (ela sempre foi uma trend hunter) e muesli caseiro que a avó depois negociava com as vizinhas que não tinham netinhos eco-empreendedores, recebia ervas (vá, então, deixem-se disso, estamos a falar de crianças), frutas e vegetais frescos e, mais preciosos do que tudo isso, ensinamentos sobre uma vida low-carbon, gestão eficiente de água, construção sustentável de casinhas florestais, produção de têxteis e confecção de vestuário inspirado em princípios da biomímica, uso inteligente do solo e dos recursos biológicos e de conservação da biodiversidade funcional, como é o caso dos polinizadores e dos decompositores que ajudavam a avozinha a produzir o melhor composto de toda a floresta oriental.

Assim cresceu a jovem, entre ocasionais conversas com leirões e mochos galegos quando voltava a casa já ao entardecer e a revisão dos seus apontamentos culinários e de ecologia aplicada, até que, chegada a hora de escolher qual iria ser a sua ‘formação superior’ (sim, aprender coisas sérias, com pessoas que tinham muitos canudos e artigos publicados em revistas científicas de blind peer review e essas vidas) escolheu um curso de ciências biológicas, tendo depois seguido para um mestrado em planeamento regional e doutoramento em gestão de recursos naturais. Agora, era a Doutora Capucho Verde, com canudos, artigos e projectos de investigação internacionais que lhe permitiam viajar muito para além da orla da floresta ocidental, onde ainda viviam seus pais. Do lado oriental, já nada sobrava, a avozinha já teria falecido e as hortas e a ribeira eram agora um belo centro comercial com painéis solares, um supermercado com um corredor ‘bio’, sistema de recolha selectiva de resíduos e outras coisas altamente sustentáveis.

Doutora Capucho sonhava muitas vezes com as idas e vindas à casa da avozinha e das longas horas de conversa entre as duas e, acima de tudo, como a vida era simples, prática e fazia todo o sentido. Agora dava muitas vezes por si a pensar que passava infinitamente mais tempo a escrever artigos de alto impact factor e a fazer conferências em sítios exóticos do que a ‘meter a mão na massa’, a ciência fascinava-a e sabia que o seu trabalho inspirava muita gente a agir… mas entre a inspiração e a acção ia muitas vezes léguas de distância, muitas mais do que as que ela percorria no vai-e-vem das visitas à avó. Quando ela falava as pessoas ouviam, frequentemente anuíam convictas e sublinhavam cada expressão mais loquaz da Doutora Capucho. Mas depois, no mundo real (o que quer que isso seja) as coisas eram diferentes.

Gerar valor partilhado e crescimento sustentável harmonioso com o meio envolvente era importante, sim senhora, mas a partilha que realmente importava às empresas era a partilha de lucros com os accionistas, que “obviamente” tem todo o direito de operar num mercado livre em que podem e devem maximizar as suas perspectivas de lucro, podendo para isso mover os seus capitais com a máxima ligeireza e a menor intervenção do Estado possível, de forma a garantir o perpetuum mobile que garante a matriz do sistema financeiro. A Doutora Capucho não era (assim tão) ingénua e sabia que a natureza da organização empresarial deverá ser a geração de riqueza, mas que riqueza era essa?

Ok, o milagre da multiplicação das notas era interessante e muitos dos seus fundos de investigação vinham de impostos e capitais público-privados, mas, sendo ela uma profunda conhecedora da íntima ligação que nós temos com o planeta, até que ponto é que seria lógico, i.e., puramente racional, continuar a gerir empresas que realizam parte fundamental dos seus lucros através da apropriação privada de bens e serviços ambientais públicos, sem haver uma contrapartida devidamente equitativa e que não apresentavam os esperados resultados de geração de riqueza partilhada, postos de trabalho, impostos em ordem de escala semelhantes aos que ela e os demais cidadãos teriam que pagar e que, mais estranhamente que tudo isto, nem para elas próprias eram boas?

A loucura do princípio da empresa existir para gerar lucro accionista estava a causar a ruina de muitas organizações, pois não investiam em I&D porque isso reduzia as perspectivas trimestrais dos accionistas que, como adolescentes aborrecidas à porta de uma loja de roupas démodé, fugiam rapidamente para onde a coisa estivesse a ‘bombar’. Não investiam nos seus colaboradores porque é mais barato contratar (ahahah, ‘contratar’…) recém-licenciados/mestres/doutores de um qualquer lado do mundo onde ganhar mil euritos é uma maravilha do que apostar na retenção de talento e formação contínua dos seus trabalhadores (pois os accionistas achavam que estes pensavam da mesma forma que eles, que se moveriam para o próximo que pagasse mais, independentemente dos inúmeros estudos que mostram que as pessoas tendem a ligar-se mais a organizações que lhes tragam maiores índices de felicidade e reconhecimento, não havendo grandes disparidades de vencimento).

O mais estranho era a quase-ausência do papel do Estado, o qual, no meio de tudo isto, demitia-se simplesmente de ter um papel activo na economia, limitando-se frequentemente a taxar brutalmente as pessoas de um lado e a liberar recursos naturais e almofadar os investimentos das empresas que, muitas vezes prisioneiras do paradigma da geração do lucro accionista, nem sequer geravam a prometida riqueza partilhada e geração de empregos e de bem-estar.

Um dia, a meio de uma fornada de eco-tartes, Capuchinho lembrou-se que se calhar a culpa (também) era dela! Pois se ela sabia que poderia ajudar as pessoas e organizações a gerar e gerir negócios de forma mais equilibrada, que respeitassem o princípio essencial do retorno dos seus investidores (e pensou que tanto é investidor aquele que lá põe um euro como aquele que dedica parte considerável da sua vida a fazer aquela organização crescer) e que fosse inteligente, prática e funcional, como lhe ensinara a avozinha, que usasse sabiamente os seus recursos, fosse eficiente e, acima de tudo, criasse bem-estar não só para todos os que usufruíssem dos seus produtos e serviços, mas também para aqueles que seriam afectados pela sua performance, quer pelos impactes ambientais e sociais que a mesma evitasse ou mitigasse, como pelo efeito contagiante que pudesse ter num ecossistema de empresas e organizações em que a geração de riqueza seria escalável pelo efeito de estímulo e reforço cruzado que haveria entre os vários elementos do ecossistema, desde a espécie dominante até todas as mais pequenas mas que garantiam a funcionalidade equilibrada.

Muito bem, se esta era a sua missão, iria ela própria dispor-se a passar pelos mesmos processos que as empresas passam, para que pudesse melhor ajudar a mudar o status quo. Lembrava-se de um ensinamento que a avó lhe transmitira em tempos: “se sabes algo que pode ser importante, passas a ser responsável por transmitir aos outros esse conhecimento e lembrar-lhes porque é de facto importante!”.

Nascia Capuchinho Verde, consultora e conselheira de empresas e de organizações públicas e não-lucrativas, que trilhava agora os caminhos entre o conhecimento e as boas práticas, que ajudava os outros a projectar um futuro melhor e a pensar em rede. Pois, se calhar isto não é bem um emprego a sério, mas é sem dúvida um compromisso seríssimo!

Ah, não apareceu o lobo mau nesta história, diz você? Apareceu sim, é a nossa inércia e falta de vontade (e ousadia) em ver que podemos e devemos fazer melhor mas hesitamos, perdendo oportunidades de desenvolvimento. Lembre-se do que diz o célebre provérbio africano não-verificado que abunda nas redes sociais, se quer ir rápido vá sozinho, se quer ir longe leve (boa) companhia…

Nuno Gaspar de Oliveira
Consultor imaginário na Green Riding Hood, Sustainable Solutions SA

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence