É o mundo virado do avesso: já não se trata de humanizar a globalização, mas de “globalizar a humanidade”. Para trazer à tona os ideais de justiça social há muito consagrados e ultimamente tão esquecidos, a Fundação Gulbenkian associou-se ao Robert F. Kennedy Center for Human Rights numa conferência de alto nível que culminou na assinatura da Declaração de Lisboa sobre Direitos Humanos. Num exercício de reflexão sobre as incertezas do futuro que visou lançar uma política educativa e de debate público, pairou no ar a questão colocada em 1968 pelo então candidato à presidência dos EUA, três meses antes do seu assassinato: “algumas pessoas olham para o mundo como ele é e perguntam: porquê? Eu vejo o modo como ele poderia ser e pergunto: por que não?”
POR GABRIELA COSTA

“Devemos sempre tomar partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o opressor, nunca o oprimidoElie Wiesel, Nobel da Paz em 1986

Reunindo um conjunto de personalidades nacionais e internacionais de relevo num debate aprofundado sobre os crescentes desafios globais que vêm tornando cada vez mais complexa e vulnerável a situação de milhões de pessoas em todo o mundo, a conferência “Os Direitos Humanos e os desafios do século XXI” promoveu em Lisboa, durante dois dias, uma reflexão alargada sobre inúmeras questões relacionadas com os direitos civis, políticos, económicos e sociais, mas também identitários e individuais, que estão na base da construção de uma emergente educação para os direitos humanos, em plena viragem do milénio.

Realizado a 9 e 10 de Maio pela Fundação Calouste Gulbenkian, em parceria com o Robert F. Kennedy Center for Human Rights e as embaixadas da Áustria e dos Estados Unidos da América, o evento comissariado pelo professor catedrático da Universidade de Lisboa, Viriato Soromenho-Marques, culminou com a assinatura da Declaração de Lisboa sobre Direitos Humanos. E arrancou com a intervenção da oradora principal, Kerry Kennedy, escritora e activista dos direitos humanos, presidente do Centro para os Direitos Humanos com o nome do seu pai (o antigo senador e procurador-geral dos EUA assassinado cinco anos depois do presidente, e seu irmão, John F. Kennedy), a quem coube ainda, no segundo dia dos trabalhos, a conferência de encerramento dedicada ao valor da educação para os direitos humanos, proferida a partir do Manual “Speak Truth To Power: A Toolkit For Action To Create Change In The Classroom And Beyond” (de que o VER dá conta nesta newsletter), baseado num livro da sua autoria e que serviu também de inspiração à versão portuguesa da peça de Ariel Dorfman “Diz a Verdade ao Poder: Vozes do Outro Lado da Escuridão”, em estreia absoluta pela companhia de teatro Bonifrates, na iniciativa que teve lugar na Gulbenkian.

Sob o mote “globalizar a humanidade”, a conferência ficou marcada pela reflexão sobre a necessidade urgente de dignificar valores há muito adquiridos (histórica e politicamente), mas em grande medida nunca praticados, reflexão essa atestada por um conjunto de testemunhos por parte de alguns dos maiores defensores dos direitos humanos, a nível mundial, transmitidos ao longo de todo o evento.

Diz a verdade ao poder: a força do exemplo tem um efeito multiplicador

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© Luís Mileu

Assim o fez, na sessão de abertura dos painéis de debate da conferência, Soromenho Marques, para enunciar a essência da paz: “no sentido de ausência de guerra”, esta “tem pouco valor para alguém que está a morrer de fome ou de frio. Não acaba com a dor da tortura infligida a um prisioneiro de consciência. A paz apenas pode ser duradoura quando os direitos humanos são respeitados, quando as pessoas têm alimento e quando os indivíduos e as nações são livres”. Como disse Dalai Lama e consta no manual da iniciativa “Diz a Verdade ao Poder”, que reúne depoimentos de coragem e exemplos de pessoas que, por todo o mundo, “lutam por causas concretas que conferem uma dimensão tangível aos ideais e valores dos direitos humanos e da dignidade humana”.

Já no final do dia, e sublinhando a emoção com que os muitos oradores presentes partilharam, nas suas intervenções, a experiência de alargamento do conhecimento sobre estes mesmos direitos, “num exercício que, com certeza, vamos continuar a fazer no futuro” extravasando as ideias trocadas no evento, o especialista em Filosofia, Ambiente e Relações Internacionais apelou, na cerimónia de assinatura da Declaração de Lisboa, a que esta permita justamente fazer perdurar no tempo uma série de vontades expressas na Gulbenkian.

O documento – subscrito na ocasião pela Fundação Calouste Gulbenkian, Robert F. Kennedy Center for Human Rights, Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), Associação Nacional das Freguesias (ANAFRE), Fundação INATEL, Instituto Padre António Vieira (IPAV), Amnistia Internacional Portugal, Oikos – Cooperação e Desenvolvimento, Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável e Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género –, apela aos cidadãos e a organizações públicas e privadas, em particular instituições educativas e outras redes sociais, “para que desenvolvam, junto do público e especialmente das gerações mais novas, uma mais forte e ampla política educativa, no sentido de promover os direitos humanos e a dignidade humana”.

Robert Kennedy cumprimenta um habitante do Soweto, Joanesburgo, África do Sul, 8 de Junho de 1966 - © Robert F. Kennedy Photograph Collection
Robert Kennedy cumprimenta um habitante do Soweto, Joanesburgo, África do Sul, 8 de Junho de 1966 – © Robert F. Kennedy Photograph Collection

Com o objectivo de fazer face às “enormes ameaças” que os desafios globais colocam na actualidade, a Declaração de Lisboa é um texto aberto a novos aderentes, que se espera vir a alcançar um apoio alargado, num “esforço colectivo” para “criar um mundo melhor para as gerações futuras”. Que (diga-se, sem definir um conjunto de compromissos para garantir tal proeza) reconhece a necessidade de fomentar a educação e o debate público nestas áreas.

E, “tendo em conta a complexidade da sociedade”, reconhece também a amplitude da educação para os direitos humanos, onde cabem temas como a liberdade política, a liberdade de expressão e associação, a liberdade religiosa, os direitos laborais, os direitos das mulheres, os direitos das crianças, os direitos LGBTI, os direitos das populações indígenas, os direitos dos migrantes e refugiados, a sustentabilidade ambiental. Todos eles abordados na conferência promovida pela Gulbenkian e pela fundação Kennedy, todos eles constituindo “condições fundamentais para uma verdadeira dignidade humana”. Cuja política educativa, sublinha ainda o documento, depende de uma grande diversidade de actores, “muito para além da sala de aula”. Trata-se de “uma missão que deve ser partilhada com as famílias, as organizações não-governamentais, todos os níveis governativos e empresas privadas – de acordo com um verdadeiro espírito de responsabilidade social”.

Na interpretação que faz do significado da Declaração da Lisboa, Viriato Soromenho Marques conclui que dos três resultados desenvolvidos na iniciativa da Gulbenkian – o lançamento da versão portuguesa da peça de Ariel Dorfman, a edição em Portugal do Manual para os Direitos Humanos “Diz a Verdade ao Poder”, e a proclamação desta Declaração, sob o mote “A Educação para os Direitos Humanos e para a Dignidade nos Desafios do Século XXI”, esta última constitui “o resultado mais incerto”, mas porventura “o mais duradouro” deste debate, na medida em que o mesmo vai ser definido a partir da sua assinatura, “consagrando um esforço educativo futuro” por parte de cada organização que a vier a subscrever.

Compreender a sua importância sumariza-se, mais uma vez, no pensamento de grandes activistas do movimento pelos direitos civis, como Robert F. Kennedy, lembra o professor: “é a partir de inúmeros actos de coragem e crença que se molda a história humana. De cada vez que uma pessoa assume uma posição devido a um ideal, ou age para melhorar a vida dos outros, ou luta contra a injustiça, envia uma pequena onda de esperança; cruzando-se a partir de um milhão de diferentes centros de energia e ousadia, essas ondas juntam-se numa corrente que pode derrubar os mais imponentes muros da opressão e resistência”.

Kailash Satyarthi, defensor da luta contra o trabalho infantil na Índia: “O trabalho forçado é uma forma de escravatura moderna” - © 2000 Eddie Adams
Kailash Satyarthi, defensor da luta contra o trabalho infantil na Índia: “O trabalho forçado é uma forma de escravatura moderna” – © 2000 Eddie Adams

A Declaração de Lisboa “evoca, de forma substancial, justamente este poder do indivíduo, de cada um de nós como seres humanos”, enfatiza Soromenho Marques, apelidando as palavras que cita do popularizado RFK – cuja mensagem contem “vários significados” que o documento “procura traduzir” – de “efeito multiplicador da força do exemplo”.

Do seu conteúdo, o também precursor do movimento cívico ambiental em Portugal e na Europa destaca “algumas leituras”, que reflectem as “tendências contraditórias” da sociedade actual.

Desde logo, a Declaração “descreve a paisagem onde nos encontramos” hoje: “no início do século XXI, verifica-se uma combinação de tendências opostas no que concerne aos direitos humanos, num contexto social mundial alargado, vibrante e mutável, repleto de promessas mas também de perigosas ameaças”.

Depois, coloca “uma tónica dominante na vulnerabilidade dos direitos humanos, que a violência, como fenómeno disruptivo”, continua a alimentar: “observamos diariamente o crescimento de forças intolerantes, de sectarismo religioso ou cultural, de violência e actos de guerra. Enormes vagas de refugiados procuram escapar das ruínas de Estados falhados, devastados por conflitos tribais ou regimes autoritários. O crescimento da desigualdade está a causar fortes disputas sociais, tanto nos países desenvolvidos como em desenvolvimento, levando assim ao surgimento de populações migrantes que procuram melhores oportunidades”.

Outra perspectiva que o documento contempla “é a nossa morada planetária e a dimensão ambiental como uma condição de possibilidade”, atendendo à “vulnerabilidade deste ecossistema riquíssimo que é a única casa que temos para viver”. Diz a Declaração: “as alterações climáticas lançam uma sombra ameaçadora sobre o futuro de toda a humanidade. Apesar da retórica assertiva de alguns líderes políticos e económicos, e ainda de esforços multilaterais como o Acordo de Paris, é necessário um compromisso de longo prazo no apoio e protecção do ambiente. Não existirá um futuro para os direitos humanos se o risco de um colapso ambiental destruir os alicerces que suportam a civilização”.

Finalmente, o documento “tenta fazer uma sinopse do essencial da Carta para os Direitos Humanos, consagrando um esforço educativo futuro”, no qual cada entidade que o subscreve “se compromete a realizar um conjunto de acções” – em articulação com realizações já iniciadas ou lançando novas frentes de trabalho – que possam “concretizar os valores e as esperanças” que a Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas consagra, no seu artigo 26º: “A educação deve visar a plena expansão da personalidade humana e o reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz”.

A conferência “Os Direitos Humanos e os Desafios do Século XXI” é apenas um pequeno passo “para [voltar a] dar sentido a este artigo”. Quase 68 anos depois da sua adopção, é necessário reeducar a humanidade para o conceito essencial de que, nela, “cada um de nós é um processo em construção”.

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© Associated Press

“Este é o momento para encontrar fronteiras abertas e acolhimento”

Na abertura do segundo dia da conferência, o ex-primeiro ministro e Alto Comissário das Nações Unidas para os refugiados entre 2005 e 2015, António Guterres, defendeu, numa mensagem transmitida em vídeo, que sendo “hoje voz comum” que não há paz sem desenvolvimento nem desenvolvimento sem paz, “é menos reconhecido que não haverá nem paz, nem segurança, nem desenvolvimento se os direitos humanos não forem respeitados e valorizados”.

Quer se tratem de direitos civis e políticos, económicos, sociais ou culturais, todos “devem ser entendidos e promovidos como um valor universal, de uma forma credível e objectiva”. Ou seja, “sem dois pesos e duas medidas”, de modo a que sejam efectivamente aceites “na generalidade das sociedades do nosso mundo”, acredita o actual candidato a secretário-geral das Nações Unidas.

No que concerne as violações do direito internacional humanitário e dos direitos dos refugiados, a sua experiência de uma década à frente da agência da ONU para os refugiados (UNHCR) traz-lhe, necessariamente, uma preocupação acrescida com a realidade a que se assiste nos actuais conflitos, onde ao “tremendo sofrimento de milhões de pessoas” e às “dificuldades crescentes que os refugiados têm para encontrar protecção além-fronteiras”, se soma “a tendência recente de negar o acesso aos refugiados”, acusa: trata-se de “uma epidemia que começou nos países desenvolvidos e que tende a espalhar-se de Norte para Sul, de forma particularmente gravosa para aqueles que já sofreram tanto com os conflitos e com as perseguições de que foram alvo”.

Neste dramático contexto, “este é o momento em que importa congregar esforços para defender os direitos humanos, sobretudo os daqueles que são mais vulneráveis, e para fazer compreender ao mundo que os que foram vítimas de guerra e de perseguição têm que encontrar fronteiras abertas e acolhimento”, conclui António Guterres.

E, independentemente de os Estados terem “o direito de definir as suas próprias políticas migratórias e o direito e o dever de gerir as suas fronteiras de forma responsável, devem fazê-lo com sensibilidade às necessidades de protecção internacional”, e garantindo que todos aqueles que têm nela “a sua única defesa, não vêem frustrados os seus direitos”, apela o candidato a sucessor de Ban Ki-moon, para quem é urgente “encontrar um novo espaço para que os direitos humanos possam ser, efectivamente, exercidos.

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O direito à “educação superior nas emergências”

Também num discurso proferido pela sua consultora diplomática, Helena Barroco (na impossibilidade de comparecer, por motivos de saúde), Jorge Sampaio apelou à criação de um espaço de acolhimento, mas especificamente para os estudantes sírios já integrados em Portugal, no âmbito de um programa de bolsas de estudo de emergência para o ensino superior. O objectivo da Plataforma Global para os Estudantes Sírios, a que preside, é que estes jovens se possam diplomar durante “a interminável guerra que grassa no seu país”, há já seis anos.

Defendendo que são eles o rosto mais visível dos direitos humanos, o ex-presidente da república, e Alto-Representante das Nações Unidas para a Aliança para as Civilizações durante seis anos, lamentou que o direito ao ensino superior nas situações de emergência esteja “longe de estar garantido”, recordando que a duração média de uma guerra civil é de 8 a 10 anos e que o de permanência num campo de refugiados estende-se a 17 ou 18 anos. Ou seja, “não fazer nada durante todo este tempo, impedindo que as crianças e os jovens nestas situações tenham acesso à educação, é verdadeiramente criar várias gerações perdidas de analfabetos, de ignorantes ou de impreparados”.

Neste contexto, mesmo em tempo de crise e de guerra, o direito à educação não pode ser negado, tem é de ser assegurado e protegido. Este é, de resto, “o sentido primeiro do direito humanitário”: nas situações de emergência criadas pelos conflitos armados ou por desastres naturais, “a educação não é um luxo, nem deve ser vista como uma questão opcional. Ela é um direito e uma obrigação, tanto mais que estas situações correspondem quase sempre a períodos longos, que afectam profundamente a vida das pessoas”, insiste. E, dita a experiência, “quando se interrogam os pais e as famílias refugiadas, à cabeça das suas preocupações aparece quase sempre a garantia da educação dos seus filhos”.

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© DR

Desmistificando o “conjunto de mitos e preconceitos que é necessário desmontar” relativamente à negligência do ensino superior no contexto humanitário, Jorge Sampaio defendeu que existe “a falsa ideia de que o chamado ‘nível de educação terciário’ pertence ao âmbito das acções para o desenvolvimento, e não à agenda humanitária. A que acresce a “concepção errónea de que a acção humanitária deve apenas focar-se em responder às necessidades primárias ou vitais” (dar um tecto, de comer e de beber, prestar cuidados básicos de saúde). E ainda, “o preconceito de que o ensino superior não tem sentido nem cabimento nas situações de guerra ou conflito”.

Na sua perspectiva, “nada disto faz sentido, atenta a duração destas situações, atenta a faixa etária de que estamos a falar – o grupo crítico dos jovens 18-25 -, atenta a necessidade de preparar o futuro e de formar uma nova geração de líderes a quem caberá a reconstrução dos países destruídos por guerras demolidoras”.

Para contrariar a actual tendência e encontrar respostas “inovadoras e realizáveis”, de forma “célere e com escala” para esta necessidade, “é preciso pensar ‘fora da caixa’ e mudar os paradigmas”, conclui.

Na sua opinião, cabe em primeira instância à comunidade académica global organizar-se e dar resposta à necessidade de um “mecanismo de resposta rápida para o ensino superior nas emergências”. Há que dotar essa capacitação de uma plataforma de coordenação (especialmente com os actores clássicos da área de intervenção humanitária, com “o ACNUR à cabeça”) e de fundos disponíveis para mobilizar respostas eficazes em tempo útil.

Porque, mesmo não sendo fácil “encontrar financiamentos em tempos de crise”, é possível garantir o acesso à educação a todos os jovens refugiados, acredita: “se se fizesse um apelo à comunidade académica global no sentido de, numa base voluntária, cada estudante ao fazer a sua inscrição anual, doar um euro, um dólar ou uma libra para um fundo académico de solidariedade, teríamos um montante anual de cerca de 230 milhões para cobrir bolsas de estudo para refugiados e outras populações necessitadas”. O mesmo número de estudantes que existem actualmente no ensino terciário.

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