Angela Merkel está cada vez mais isolada na sua tentativa de encontrar, junto dos seus parceiros políticos europeus, soluções para a crise dos refugiados. Com os ânimos a aquecer num “situação-polvo” que demonstra ter, a cada dia que passa, cada vez mais tentáculos, multiplicam-se medos, actos xenófobos e medidas avulsas. Sob pena de se desmoronar completamente, a Europa tem de agir concertadamente e não reagir de forma isolada
POR
HELENA OLIVEIRA

“Quando olho para a Europa, sinto orgulho em voltar a Portugal”. A citação é de António Guterres e foi proferida na cerimónia de condecoração com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, na passada terça-feira, dia 2. Enquanto Alto-comissário cessante das Nações Unidas para os Refugiados, o político português que irá agora concorrer ao mais alto cargo da ONU, tem sido uma das vozes mais críticas no que respeita às respostas deficitárias que a União Europeia tem dado à crise dos refugiados. E, tal como ele, são muitos os europeus que, de forma crescente, começam a manifestar uma verdadeira vergonha em pertencer a uma Europa que se fecha na sua própria concha e que vai reagindo – em vez de agir concertadamente – às inúmeras e complexas problemáticas que, a respeito dos refugiados e todos os dias, se vão avolumando, numa mistura de dúvidas, desorientação, medo, ódio, medidas avulso e até violações de convenções internacionais e das próprias leis que orientam a União Europeia.

E se ninguém ousava afirmar que acolher mais de um milhão (em 2015) de refugiados seria fácil, também nunca ninguém poderia imaginar que seria assim tão difícil. Apesar de sermos continuamente informados de estatísticas aterradoras que nos fazem crer que estamos a ser invadidos por “estrangeiros” que não comungam dos nossos costumes, valores, religião e afins, a verdade é que o número de pedidos de asilo nos últimos cinco anos é equivalente a cerca de 0,4% da população europeia.

Ou, como questionava Angela Merkel há poucos dias, numa reunião do seu partido em Neubrandenburg: “é incompreensível para mim que a União Europeia, com 500 milhões de habitantes, não possa acolher um milhão de sírios, comparativamente a um país com cinco milhões de habitantes, como o Líbano, que o está a conseguir fazer”, afirmou, acrescentando ainda, que “falamos sobre valores todos os dias, mas não estamos preparados para fazer a nossa parte””. São afirmações como esta que têm valido a Merkel epítetos pouco educados, traduzidos, por exemplo, numa recente sondagem (29 de Janeiro) encomendada pela revista Focus, na qual 40% dos alemães afirmam que a chanceler se deve demitir caso pretenda prosseguir com o seu discurso e/ política de “portas abertas”, um sentimento que se tem vindo a agudizar, tanto a nível interno, como por parte dos “aliados” europeus, mesmo depois de Merkel já ter feito várias cedências e ter afirmado, um dia depois da sondagem, que “os refugiados sírios e iraquianos terão de voltar para casa, uma vez terminada a guerra nos seus países de origem”.

Na medida em que nem o Inverno trava o fluxo de migrantes – com o mês de Janeiro de 2016 a “registar” a entrada, por mar, na Europa, de mais de 67 mil pessoas -, nem a guerra na Síria dá sinais de abrandamento (já no seu 6º ano de conflito), com quatro milhões de sírios a habitar os países vizinhos e com cada vez menos esperança de retornarem a “casa”, como é que a Europa está a pensar gerir este problema contínuo? E o que fazer em relação a outros países instáveis da região, em particular o Afeganistão e o Iraque, uma outra gigantesca fonte de migrantes ou ainda à crescente população de África que, graças a sistemas políticos disfuncionais e dificuldades económicas persistentes irá contribuir, também, com ondas elevadas de migrantes económicos e refugiados políticos que procurarão uma vida melhor em solo europeu? Mais a mais, se antes não se deu atenção a sinais óbvios para muita gente, continuará o Velho Continente, com cada vez mais dores e sinais de esclerose, a fechar os olhos a uma solução concertada para travar a sua mais difícil batalha desde o final da Segunda Grande Guerra?

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As mil e uma perguntas sem resposta

Valerá a pena recordar que quando o “movimento Europeu”começou a tomar forma em finais dos anos de 1940, encabeçado por Robert Schuman e Jean Monnet, a premissa que o sustentava, e abraçada por vários líderes europeus, era a de optimismo e vontade de se construir algo verdadeiramente comum? Ou será tarde demais para um conjunto de países que parece estar em abrupta desagregação ou, como afirmou Frans Timmermans, primeiro presidente da Comissão Europeia e antigo ministro dos negócios estrangeiros holandês, antes dos ataques terroristas a Paris, que o desafio para o projecto europeu era “existencial”, que a crise dos refugiados apenas o tinha trazido para a ribalta e, mais grave que tudo, que “o que era antes inimaginável, é agora imaginável, nomeadamente a desintegração do projecto europeu”?

A verdade é que a Europa demorou tempo demais a dar ouvidos aos denominados profetas da desgraça, que há muito têm vindo a alertar para um possível suicídio europeu. Se os resultados eleitorais de Maio de 2014, na Europa, já demonstravam a queda dos seus partidos tradicionalmente fortes e a ascensão dos de extrema-direita, nomeadamente a força crescente da Frente Nacional de Marie Le Pen e seus congéneres em vários países da União, com Alemanha incluída – e a tragédia dos refugiados em conjunto com a violência terrorista ainda não estava na ordem do dia – como é possível que estes sinais não tenham sido devidamente “reflectidos”?

Ou é assim tão surpreendente – face ao que já se antecipava – que entre 60% a 80% dos cidadãos franceses, espanhóis, britânicos e italianos tenham demonstrado, no último quartel de 2015, e em sondagens várias, que estão descontentes (termo soft) com as políticas de imigração dos seus governos?

Devemos aceitar como “normal” que países (re)conhecidos pela sua tolerância, como a Dinamarca (e não só), um dos primeiros a fazer parte da Convenção relativa aos Estatutos dos Refugiados das Nações Unidas (1951) , tenham instituído, contra a “vontade” da própria UE, o confisco de bens dos refugiados nas fronteiras, o aumento do período para a reunificação das suas famílias e cortes brutais nos subsídios de “integração”, contribuindo para que outros países europeus sejam encorajados a fazer o mesmo? Ou que comece a ser trivial encontrar “grupos de vigilantes” na Suécia, na Finlândia e na Alemanha que fazem justiça pelas próprias mãos, alimentando a “campanha anti-refugiados” que faz subir nas sondagens os partidos extremistas? Ou que se chegue a situações tão ridículas como a de um município dinamarquês que mandou incluir carne de porco nos menus de escolas e restaurantes para relembrar aos refugiados islâmicos que a “sua cultura [ocidental] é que é prevalecente”?

Os episódios são tantos e tão inacreditáveis como são banalizados os alertas dados por organismos e instituições variadas: seja a ACNUR ou a OCDE, que pedem “políticas de integração a favor dos refugiados”, encarando-as como “um imperativo moral e um incentivo económico”; ou os proferidos por organizações de direitos humanos que todos os dias emitem avisos arrepiantes de inimagináveis abusos à dignidade humana numa Europa que se ergueu exactamente sob o signo do humanismo; ou ainda por observadores da esfera política ou académica que não se cansam de criticar a desunião europeia e os passos atrás por ela desencadeados e que fazem temer o regresso a um passado demasiado sombrio que persiste ainda na memória de muitos. Para quê e com que resultados?

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Merkel contra todos ou todos contra Merkel?

No meio de tanta incredulidade, em 28 países que, supostamente, deveriam estar unidos e fazer face a um gigantesco, sem dúvida, problema comum, vemos apenas Angela Merkel – da qual se tinha a imagem de uma mulher fria e calculista tão ao “estilo germânico – a defender sozinha a política de portas abertas, sendo obrigada, devido a fortes pressões internas e, mais radicais ainda por parte da esmagadora maioria dos seus “parceiros” europeus, a ir fechando cada vez mais essas portas, apesar de manter a coragem de dizer o que pensa sobre a atitude vergonhosa de uma Europa preocupada apenas com os seus feudos e indiferente ao escalar da xenofobia e racismo.

Quando, em 2015, a chanceler alemã foi “considerada” como uma das possíveis vencedoras do Nobel da Paz, muitas vozes se ergueram perante tal disparate. Afinal, a Mutti alemã era odiada por quase todos, não fosse o seu papel intransigente ao longo da crise do euro e das dívidas soberanas. E, na altura, o seu papel de líder num aparente novo estilo similar ao “we can do it” de Obama – ou nós conseguiremos fazer face a este enorme desafio europeu – não foi suficiente para convencer os seus congéneres europeus nunca a apoiaram verdadeiramente neste “ataque de boa vontade” face ao fluxo inimaginável de refugiados que haveriam de “invadir” a Europa, em particular desde o Verão passado.

Com a sua jogada de “nós podemos fazê-lo, mas vocês deverão fazer a vossa quota-parte”, Merkel perderia a sua primeira grande batalha. O sistema de quotas que deveria dividir “o mal pelas aldeias” não deu certo. Primeiro por parte dos países do leste – não é possível esquecer o arame farpado tão prontamente “edificado” pela Hungria – e a sua pronta vontade do restabelecimento de controlo das fronteiras, seguindo-se, mais tarde, os “ataques” ao espaço Schengen e a recusa terminante de muitos países em sacrificar os seus orçamentos, em conjunto com o já precário estado social em muitos deles, em prol de “estrangeiros”.

Cada vez mais isolada, Angela Merkel, que seria considerada como a “Pessoa do Ano” pela revista Time, foi “obrigada” a mudar de discurso, para acomodar interesses variados e, em muitos casos, contraditórios, mas mantendo, como já anteriormente referido, uma espécie de rebeldia de “bater o pé” e continuar a apelar para que o “fardo” que representa a imparável massa humana de refugiados seja dividido pelos vários países que compõem a União Europeia. Uma outra jogada foi protagonizada pelo acordo estabelecido com o governo de Ancara, em cujo território se encontram cerca de dois milhões de refugiados sírios. Prometendo apoiar a integração rápida Turquia e porque é menos dispendioso apoiar os refugiados ali colocados, Merkel negociou ainda um acordo na ordem dos 3 mil milhões de dólares, a serem “pagos” pela UE para ajudar a Turquia a controlar melhor as suas fronteiras e lutar contra o tráfico de pessoas. Todavia, os governos europeus não estão com vontade alguma de financiar esse acordo – acusando a Turquia de esta não estar a cumprir a sua parte – e as atenções estão agora concentradas na Grécia, acusada de não conseguir controlar o permanente fluxo de entrada de refugiadas e ameaçada de ser expulsa dos acordos de Schengen.

A falta de “aliados” nesta luta que parece travar sozinha é uma das questões que mais se coloca, tendo em conta o peso de Merkel numa Europa que parece já pertencer ao passado. Como afirmou, em entrevista, ao Deutsche Welle, Judy Dempsey, associada sénior da Carnegie Europe, editora-chefe da Strategic Europe e autora do livro O Fenómeno Merkel, quando questionada sobre “onde foram parar os aliados [de Merkel]”, a resposta é esclarecedora: “ao contrário do que aconteceu com a crise do euro, a chegada de todos estes refugiados é algo tangível para muitas pessoas (…). Assim, e na cabeça dos seus governantes que apenas se preocupam com o seu eleitorado, ao recusar esta responsabilidade estão apenas a agir em nome do interesse nacional”, afirma. “Para além de que são muitos os que culpam verdadeiramente Merkel – no seguimento da sua política de portas abertas – por tudo o que está a acontecer”. E, acrescenta “apesar de o euro ter estado em vias de colapsar sem a sua intervenção e a de Schäuble [o ministro das finanças alemão], o mesmo acontecendo com o acordo estabelecido com a Ucrânia, estes chefes de Estado estão, na verdade, a virar as costas a quem conseguiu manter a estabilidade na Europa”.

Cada vez mais encurralada, Merkel tem sido forçada, nas últimas semanas, a tomar novas medidas. Mais exactamente há uma semana, 30 de Janeiro, a chanceler anunciou uma proposta de lei que visa apertar as regras para os que procuram asilo na Alemanha, conhecido como “Pacote de Asilo II”. De um modo geral, a nova proposta pretende “acelerar os procedimentos de asilo, aumentar os níveis de regulamentação, agilizar as deportações e designar alguns partidos do norte de África – como Marrocos, Tunísia e Algéria – como “seguros”, o que significa que os cidadãos deles originários deixarão de ser aceites como refugiados.

Mas, como escreve ainda Judy Dempsey, num artigo de opinião e a propósito de um white paper divulgado esta semana pelo Fórum Económico Mundial sobre o que espera a Europa em 2016 e 2017, com excepção de Merkel e de Schäuble, “que percebem realmente o que está a acontecer na Europa, os [demais] líderes europeus estão a agir como se não tivessem qualquer obrigação para defender os valores da Europa e os seus princípios de liberdade e de abertura”.

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Ataques em Colónia foram gota de água para xenofobia em crescendo

Se a desconfiança face aos refugiados já existia, os incidentes em Colónia, na passagem deste ano foram, indubitavelmente, a gota de água, e muito bem aproveitada pelos extremistas da direita. Apesar de a história ter começado pela notícia de que cerca de mil homens de ascendência “norte-africana” tinham atacado sexual e verbalmente um conjunto enorme de mulheres, a verdade é que quatro semanas mais tarde, só 32 é que foram acusados e, destes, “apenas” 22 eram requerentes de asilo.

Todavia, sendo indiscutível a gravidade destes actos e sem se colocar em causa que existe necessidade de se “reeducar” muitos refugiados islâmicos no que respeita ao valores ocidentais – e antecipar uma outra realidade que começa agora a ser falada e que está relacionada com o número desproporcionado de homens que entram para a Europa (de acordo com um artigo publicado no Politico, 66,26% dos migrantes adultos registados através da Itália e da Grécia são do sexo masculino, o mesmo acontecendo com a gigantesca percentagem de menores de 18 anos, na sua maioria, desacompanhados, que ascende aos 90%), este incidente em particular veio dar gás às campanhas de xenofobia e anti-refugiados que já estavam em curso.

Apesar de serem inúmeros os exemplos, e em vários países da UE, basta que atentemos ao que tem acontecido em solo alemão: desde o Pegida, o grupo de extrema-direita e anti-Islão alemão, que tem conseguido juntar milhares de pessoas em manifestações nas cidades de Colónia e Estugarda ou à fúria registada em Leipzig que destruiu inúmeras lojas de kebabs e tudo o que encontrasse à frente associado com a cultura árabe, como alerta um interessante artigo publicado na australiana RedFlag, “a extrema-direita na Alemanha não pode ser subestimada”, como testemunha uma sondagem recente que confere ao partido Alternativa para a Alemanha 10% do eleitorado, um aumento de 5% face a Setembro de 2015.

Mas o que parece gerar unanimidade em muitos observadores desta realidade é o facto de serem os próprios governos da União Europeia a emitirem sinais de “quase aprovação” da humilhação de refugiados. No Reino Unido, já David Cameron tinha declarado que os migrantes em solo britânico há pelo menos cinco anos que não ganhem cerca de 42 mil euros por ano devem ser deportados, ao mesmo tempo que as suas mulheres deverão passar um teste de inglês, como forma de assegurar a sua “integração”. Como já citado, a Dinamarca, mas também a zona da germânica Baviera, aprovaram legislação que confere às suas forças policiais o poder de revistar e confiscar bens trazidos pelos refugiados. Por seu turno, a Suécia anunciou, a 28 de Janeiro último, que iria deportar 80 mil pessoas cujos pedidos de asilo tenham sido rejeitados, posição “justificada”, é certo, por vários crimes de assalto, violação e, a 26 de Janeiro último, pelo assassínio de Alexandra Mehzer, de 22 anos, esfaqueada até à morte por um refugiado menor não acompanhado, de 15 anos, no centro de acolhimento a refugiados onde trabalhava (em termos proporcionais, a Suécia é recordista no acolhimento de refugiados: só em 2015, acolheu 163 mil imigrantes, sendo a sua população de apenas 10 milhões). Em Calais, centenas de refugiados tiveram de resistir a confrontos com a polícia que pretendia destruir o seu campo improvisado nesta região do norte de França.

Tendo sempre como ponto de partida os incidentes de Colónia, Merkel foi obrigada a apaziguar os ânimos exaltados dos partidos de direita, comprometendo-se a deportar qualquer refugiado que seja condenado por ofensas criminais. Ainda de acordo com a RedFlag, as deportações têm registado aumentos significativos – de 40 por dia para 100. No seu discurso, a chanceler alemã confessou a “vulnerabilidade” e a “falta de ordem e controlo que desejaríamos ter”, com o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, a deitar mais lenha para a fogueira afirmando que a Europa corre o sério risco de ser “esmagada” por estes homens árabes que não apreciam os “valores ocidentais”, especialmente no que diz respeito às mulheres.

Sem ser possível discordar com a narrativa de que é absolutamente necessário que os valores ocidentais sejam respeitados, a verdade é que a mesma narrativa pode ter ecos e interpretações exageradas e/ou injustas que sirvam para que a escalada de violência racista e xenófoba atinja níveis demasiado elevados para ser travada.

Na entrevista que concedeu ao Deutsche Welle, e reafirmando o isolamento cada vez maior que Merkel está a verificar, no interior e exterior das suas esferas de influência, Dempsey refere ainda questões “paralelas” que poderão advir desta fragmentação de posições e falta de união patente nos chefes de Estado europeus: nomeadamente a recuperação da “velha ideia” da Europa a duas velocidades e um risco acrescido que poderá colocar em causa o euro, o mercado único e, por consequência, a própria União Europeia.

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