Tecendo duras críticas à crise financeira e social em Angola, a CEAST defendeu recentemente que a solução do problema “não é apenas económica, mas passa pelo resgate da ética e do compromisso com o sentido de Estado e de comunidade, através do diálogo”. Da má gestão do erário público, corrupção generalizada, nepotismo e partidarização crescente dos vários quadrantes da sociedade resulta “um quadro sombrio”, onde a miséria e a violação dos direitos humanos contrastam, cada vez mais, com os poderes abastados que reinam na capital mais cara do mundo
POR GABRIELA COSTA

No actual estado em que se encontra o mundo e a humanidade, “O que Vimos e Ouvimos” merece-nos a todos preocupação e consternação. A uns, mais do que aos outros. Nuns contextos, mais do que noutros.

17032016_AsolucaoEm Angola, a conjuntura de progresso e crescimento económico dos últimos anos que, sem ter sequer aliviado as profundas desigualdades sociais no país – onde a vida luxuosa na ‘capital mais cara do mundo’ coabita com a miséria nos musseques -, o tornou numa ‘terra de oportunidades’ para muitos portugueses desempregados e à procura de uma vida melhor, devido à crise nacional instalada, alterou-se de repente, com o anunciado fim da era do petróleo, expondo as muitas e complexas fragilidades que ali persistem.

No âmbito da sua primeira Assembleia Geral Ordinária de 2016, realizada em N’Dalatando (capital da província do Cuanza Norte), entre 2 e 9 de Março, a Conferência Episcopal de Angola e S. Tomé (CEAST) divulgou uma nota pastoral sobre o momento actual da nação, na qual enuncia e prioriza as difíceis problemáticas que o povo angolano enfrenta, numa primeira parte do documento, para apontar soluções colectivas para as mesmas, na segunda.

Desde logo tida como um acto de coragem, pelas duras críticas que faz à economia e à governação, a posição manifestada pela CEAST defende que a crise económico-financeira “em que o país se encontra mergulhado” não se deve apenas à queda do preço do petróleo, mas “igualmente à falta de ética, à má gestão do erário público, à corrupção generalizada, à mentalidade de compadrio, ao nepotismo, bem como à discriminação derivada da partidarização crescente da função pública, que sacrifica a competência e o mérito”.

Como também sublinhou o porta-voz da CEAST na apresentação do texto, D. Estanislau Marques Chindecasse, o fosso entre os cada vez mais pobres e “os poucos que se apoderam das riquezas nacionais, muitas vezes adquiridas de forma desonesta e fraudulenta” aumenta “assustadoramente”, assistindo-se “à falta de critério” no uso dos fundos públicos e a gastos “exorbitantes” e supérfluos, que “não aproveitam às populações”.

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Miséria e corrupção no país da ‘capital mais cara do mundo’

Para a Igreja católica angolana, ao mesmo tempo que a pobreza se agrava de forma preocupante, a instabilidade económica está a “paralisar paulatinamente” os agentes económicos, impossibilitando-lhes a renovação de mercadorias, por falta de divisas, o que gera atrasos nos salários, tanto no sector público como no privado, e a subida “vertiginosa” dos preços de bens elementares.

[pull_quote_left]A crise económico-financeira em que o país se encontra mergulhado não se deve à queda do preço do petróleo[/pull_quote_left]

Paralelamente à pobreza, o índice de mortalidade de crianças e adultos, vítimas de doenças como o paludismo, a diarreia e a febre amarela aumentou, nos últimos tempos, “de forma dramática”, acusam também os bispos: perante o descuido da saúde pública, a falta de saneamento básico e de higiene pública e privada, a falta de água e a acumulação de lixo, “assistimos a uma insensibilidade quase crónica perante o mal, a doença e a morte”, lamentam. E é neste contexto desumano que “em muitos hospitais”, se desviam medicamentos para farmácias ou unidades de saúde privadas e para o mercado paralelo, “onde são vendidos a preços insuportáveis para a maioria da população”, e faltam não só medicamentos indispensáveis, como até alimentação para os doentes.

De sublinhar que, de acordo com dados recentes, só existem 4 mil médicos para 24 milhões de habitantes em Angola. No que concerne o combate à febre amarela, por exemplo, as autoridades sanitárias enfrentam dificuldades como a falta de vacinas nos hospitais e, desde o início do surto, em Dezembro de 2015, já morreram 138 pessoas, havendo actualmente 813 casos suspeitos e 65 confirmados, segundo o portal de informação Rede Angola. A Organização Mundial de Saúde já disponibilizou cerca de 788 mil dólares em apoios ao governo angolano e prevê a elaboração de um plano de emergência para angariar fundos estimados em 2,3 milhões de dólares para combater a doença.

17032016_Asolucao3À falta de condições de saúde junta-se ainda, e de forma dramática, a seca e a fome no Sul de Angola, que se alastram no tempo e no número de vítimas, de forma preocupante, sublinham ainda na nota pastoral, na qual dão também conta do crescente clima de insegurança, tanto nas cidades como nos meios rurais: “por tudo e por nada, assassinam-se friamente as pessoas, multiplicam-se as violações sexuais e os roubos e, muitas vezes, os crimes acabam impunes”, afirmam os prelados.

Face a esta realidade, que se traduz, nas palavras dos bispos angolanos, num “quadro sombrio”, muitos cidadãos perderam, naturalmente, a confiança nas instituições públicas e estatais, “encarando o futuro com pessimismo”. Se nos bancos, “quem depositou divisas dificilmente as recebe quando necessita”, nos hospitais e centros de saúde, “com carências humanas e físicas de toda a ordem”, não há respostas nem esperança para a população, que vê também a sua educação “condicionada pela ‘gasosa’”, no sistema escolar público. A superar todas estas dificuldades, mantém-se a flagrante violação dos direitos humanos no país, para a qual não existe a “rapidez” de resposta que “a situação reclama”, admite a Igreja católica angolana.

Neste cenário, é urgente reforçar “o empenho de todos na mobilização de ajudas alimentares” (por exemplo, para combater a seca) e humanitárias, e exigir “a quem de direito, uma definição de políticas concretas, que ponham fim a estes males crónicos”. É necessário recuperar o sentido de fraternidade e de amor à pátria, que devem “marcar a nossa sociedade”, apelam os bispos nesta sua manifestação “de consciência”.

Mas até na ajuda humanitária se verifica “a politização” que parece estar instalada nos vários quadrantes socais e económicos, em Angola, o que preocupa desde logo, porque, para “além de chocar as pessoas, enfraquece-lhes o sentido de solidariedade”. Não menos preocupante “é a partidarização dos meios de comunicação social que, por direito, devem estar ao serviço de todos”, sublinham os prelados, concluindo: “deixa-nos perplexos verificar que análises lúcidas, críticas bem fundadas e construtivas, destinadas à construção do bem comum, sejam, muitas vezes, interpretadas como ataque às instituições de legítima governação e à ordem pública em geral”.

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Reconciliação e diálogo sobre as soluções para a crise

Poucos dias antes da apresentação, a 9 de Março, da nota pastoral sobre o momento de crise financeira que Angola atravessa, e antevendo o conteúdo do documento, o presidente da CEAST defendeu que a solução do problema “não é apenas económica, mas passa também pelo resgate da ética, e do compromisso com o bem comum, com o sentido de estado e comunidade, através do diálogo. De acordo com O Apostolado, “jornal da actualidade da CEAST”, D. Filomeno Vieira Dias concluiu mesmo que “a crise serve para corrigir erros e retomar o caminho do progresso”.

Encorajando a população a não perder a esperança, o arcebispo de Luanda incidiu o seu discurso, na missa pública a que presidiu durante a 1ª sessão plenária desta Conferência Episcopal, nas ideias de reconciliação e diálogo, considerando que o seu reforço “passa pela assunção dos compromissos de diálogo inclusivo com todas as forças vivas”. D. Filomeno Vieira Dias recordou igualmente a “necessidade das pessoas cultivarem a caridade, ajudando o próximo e ao desenvolvimento do país”.

17032016_Asolucao5O apelo alia-se à mensagem transmitida no documento divulgado pela CEAST – que congrega actualmente 20 dioceses, tendo reunido para “traçar as linhas de orientação para o próximo triénio 2017-2019” -, na qual os bispos angolanos propõem encontrar, juntos, “uma porta de saída”, rejeitando a ideia de resignação “ao mal”.

Alertando que ninguém deve pretender “possuir o monopólio da verdade” nem iludir-se “com soluções vindas de fora”, já que se as responsabilidades da crise “não são as mesmas para todos”, certo é que “o problema diz respeito a todos e todos devem ser escutados”, os bispos concluem que a situação “reclama, antes de tudo, a conversão, uma autêntica mudança de mentalidade e de comportamentos”.

Citando a Mensagem para o Dia Mundial da Paz do Papa Francisco, “Vence a indiferença e conquista a Paz”, os prelados reiteram “a exortação a não perder a esperança na capacidade que os angolanos têm” de não se render à resignação mas, pelo contrário, e em consciência, agirem “solidariamente, perante as situações críticas, superando os interesses individualistas, a apatia e a indiferença”, como apela Francisco na sua mensagem para a humanidade.

[pull_quote_left]A situação em Angola reclama uma autêntica mudança de mentalidade e de comportamentos[/pull_quote_left]

Em concreto, aos governantes e ao Estado, a Igreja católica angolana pede uma gestão da ‘coisa’ pública com competência, sentido de justiça, transparência, honestidade, sentido de missão e compromisso com a nação. Em especial na área da saúde, onde se exige “maior colaboração a nível das instituições públicas e privadas, particularmente com as forças de Defesa e Segurança”, com vista a acelerar o combate eficaz das endemias que ameaçam as populações, e se requer o “serviço voluntário” de médicos, enfermeiros e agentes de saúde.

Por sua vez, aos empresários, os prelados exortam “a que invistam na sua terra, a fim de ajudarem a desenvolver o país e a combater, eficazmente, o desemprego galopante, que tão cruelmente atinge os jovens”, sem “caírem na hipoteca das suas liberdades e dos valores que identificam o povo angolano” junto dos financiadores externos. E lembram que “um salário justo educa para a responsabilidade e estimula o amor ao trabalho”.

Abertura do regime e diversificação da economia na nova governação?

17032016_Asolucao6A nota emitida pela CEAST, que traça uma radiografia de Angola, denunciando que a origem da crise económica e financeira no país não se deve apenas à queda no preço do petróleo, como tem dito o Governo (ou, segundo vários analistas, ao fim da era do petróleo), mas à falta de valores e ética, à corrupção generalizada e à má gestão das contas públicas, quebrou, com alguma surpresa, o silêncio discreto que caracterizava a Igreja católica angolana em relação ao regime. E deverá reforçar o já fundamental papel que a Igreja católica ocupa na sociedade, nomeadamente na influência na gestão do Executivo, segundo várias reacções de especialistas já tornadas públicas.

Acresce que a divulgação do documento coincidiu com o anúncio do afastamento “da política activa”, em 2018, de José Eduardo dos Santos. Há 36 anos no poder, o presidente angolano terá apanhado de surpresa os membros do Comité Central do MPLA, na abertura da sua 11.ª reunião ordinária, e os observadores internacionais, que traçam agora os possíveis caminhos para a governação futura em Angola.

A primeira questão a considerar é que ao anunciar 2018 como o ano da sua retirada, José Eduardo dos Santos nada referiu sobre 2017, ano em que se realizarão eleições no país. Neste contexto, ou o actual presidente já não concorre a estas eleições, ou deverá fazê-lo na condição de número um nas listas do MPLA, reocupando assim um lugar que não chegou a deixar. Para os especialistas em assuntos internacionais, esta segunda hipótese, para além de ser a mais provável, indicia que o seu sucessor deverá ser o número dois da lista do MPLA. Ou seja, alguém escolhido pelo próprio.

Para vários analistas que têm alimentado o debate sobre o afastamento do actual presidente, essa será a estratégia a seguir, dando-se a hipótese de o mesmo estar a abrir caminho à sucessão do seu filho, colocando-o em segundo lugar – ou seja, como vice-presidente – na lista para as eleições do próximo ano. Para outros analistas, a opção será “a solução chinesa”, isto é, manter o MPLA no poder através de cedências económicas em matérias sensíveis como a do sector energético. Há que somar ainda a corrida da UNITA ao cargo presidencial.

Seja qual for o cenário a confirmar, a oposição angolana é unânime em afirmar que não é a primeira vez que o Chefe de Estado anuncia o seu abandono da vida política activa. E, de facto, já manifestara essa intenção em 2011. Certo é que dois dias depois de afirmar o seu afastamento, o Comité Central do MPLA aprovou a sua candidatura à liderança do partido, para ser eleito no VII congresso, que se realiza em Agosto deste ano.

No imediato, o anúncio da sua retirada da vida política parece ter como principal objectivo acalmar a instabilidade interna que o país vive, que tem agravado a contestação social devido à crise, e as crescentes críticas internacionais ao regime angolano, centradas na perpetuação no poder de José Eduardo dos Santos.

No futuro, concluem todos os especialistas em assuntos internacionais, os desafios são enormes: a abertura do regime e a diversificação da economia estão no centro da mudança em prol do desenvolvimento do país, a qual depende, antes de mais, e como veio afirmar a Conferência Episcopal de Angola, de uma governação transparente e de uma gestão criteriosa do erário público.