Numa tentativa de refrear o debate aceso que divide profundamente os defensores da tecnologia e os que a rejeitam como a principal via para o progresso humano, Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, do MIT, publicaram um livro que visa oferecer uma visão optimista sobre o crescimento acelerado da inteligência artificial e da revolução digital. Todavia, e como em todas as eras da humanidade, o destino dependerá sempre da capacidade de adaptação dos seres humanos
POR HELENA OLIVEIRA

No início da Revolução Industrial, um grupo de trabalhadores têxteis do norte de Inglaterra, na sua maioria tecelões, iniciou uma revolta espontânea, destruindo maquinaria e queimando fábricas. Este movimento, que viria a ser conhecido como os Luddites [o nome provém de um alegado Ned Ludd o qual, julga-se, destruiu completamente dois teares em 1779] advogava que as máquinas modernas da altura estavam a roubar os seus empregos e a baixar os seus salários.

No século XXI, e em particular no último par de anos, têm sido muitos os economistas – e não só – a debater a perspectiva de estagnação do mundo tal como hoje o conhecemos e vivemos. Por causa da demografia, da globalização, dos desequilíbrios globais de longo prazo e, obviamente, da crise económica e financeira que vergastou o mundo nos últimos anos, são muitos os que defendem que as economias avançadas estão presas numa armadilha composta por um crescimento demasiado lento da produtividade, do rendimento e do emprego.

Adicionalmente, os mais pessimistas culpam, seguindo o exemplo dos mencionados Luddites, a tecnologia e a emergência da inteligência artificial pelos elevados números de desempregados em todo o mundo, defendendo que, de uma forma crescente, tal como a Revolução Industrial substituiu as pessoas pelas máquinas, o mesmo estará a acontecer com a Revolução Tecnológica. Não sendo completamente mentira – são muitas as tarefas e postos de trabalho que realmente foram extintos devido aos avanços tecnológicos – existem sempre formas alternativas de olhar para um problema. E foi isso que fizeram Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, ao publicarem agora uma versão mais extensa do e-book “Race Against the Machine” e cuja sequela se intitula “The Second Age Machine: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies”. Os autores, que trabalham ambos no famoso Center for Digital Business do MIT, sendo Brynjolfsson o seu director e McAfee, o cientista investigador principal do mesmo, oferecem um antídoto para o pessimismo reinante entre aqueles que diabolizam os progressos – ou retrocessos, no seu ponto de vista – da tecnologia.

Sem negarem que existem algumas questões preocupantes que acompanham a era dos computadores, tal como o fosso crescente entre os ricos e os pobres, o potencial para uma população largamente ociosa e a tendência da tecnologia para criar mercados onde os “vencedores ganham tudo”, o principal objectivo dos dois cientistas do MIT é exactamente o de fazerem uma ponte entre o optimismo excessivo exibido por muitos defensores acérrimos da tecnologia e o pessimismo de muitos economistas modernos. Brynjolfsson e McAfee admitem a existência de “redundância”num conjunto significativo de tarefas que, de forma crescente, podem ser feitas por máquinas – quanto mais os computadores fizerem, menos os humanos têm de fazer – mas também defendem que existe todo um mundo novo de criação de riqueza se o soubermos aproveitar. Mas para tal, alertam, será urgente uma outra revolução, mas desta feita no que respeita ao capital humano, na medida em que os trabalhadores terão de se adaptar à revolução da inovação em curso.

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A ambiguidade do progresso
“À medida que a inovação tecnológica reformula radicalmente o nosso mundo, precisamos de desenvolver novos modelos de negócio, novas tecnologias e novas políticas que possam ampliar as capacidades humanas, para que cada pessoa se possa manter economicamente viável nesta era de automatização crescente”. A citação é de Reid Hoffman, o fundador do LinkedIn e serve perfeitamente os propósitos enumerados pelos autores, quando afirmam que na “nova era das máquinas” serão necessários trabalhadores com competências inovadoras e que é fácil ser-se pessimista, na actualidade, no que diz respeito a postos de trabalho e salários. “Não só os computadores conseguem transcrever e traduzir a fala humana, como já a conseguem compreender bem o suficiente para levarem a cabo algumas instruções”, escrevem, acrescentando que as máquinas modernas conseguem conferir sentido a quantidades extraordinárias de informações não estruturadas e, em muitos casos, detectar padrões e fazer deduções melhor do que o mais bem treinado dos humanos. Entre variadíssimos progressos, os recentes avanços incluem carros e aeronaves autónomos e robots que trabalham lado a lado com os humanos em fábricas ou  armazéns.

Estas inovações, escrevem os cientistas do MIT, “estão a sair rapidamente dos laboratórios e a entrarem na economia ‘normal’, preenchendo as declarações fiscais ou virando hambúrgueres”. E muitos já concluíram que a era do desemprego tecnológico em alta escala finalmente chegou. “Para muitos observadores”, afirmam Brynjolfsson e McAfee, “as tendências laborais, visíveis em muitos países – o declínio dos salários reais e da mobilidade social, o aumento da desigualdade e da polarização e o desemprego persistentemente elevado – só poderão agravar-se à medida que a tecnologia for progredindo”.

Todavia e para os investigadores do MIT, o mundo não está preparado para abandonar a força laboral humana, pois a humanidade está apenas a entrar na segunda era das máquinas: “a primeira, estimulada pela revolução industrial, foi mecânica; a segunda é digital. E se a primeira ‘aumentou’ os músculos, a segunda ‘aumentou’ as nossas mentes”, escrevem.

Se regressarmos mais uma vez ao passado e à era da revolução industrial, foram vários os economistas que alertaram também para os “senãos” do progresso das máquinas. David Ricardo, um dos mais influentes economistas do século XIX, introduziu, na terceira edição do seu livro Princípios da Economia Política (1817), um capítulo que negava a sua visão inicial dos benefícios da automatização, afirmando que “a substituição dos homens pelas máquinas era, muitas vezes, prejudicial para a classe dos trabalhadores”, e que se, por um lado, esta poderia “aumentar o rendimento líquido de um país”, por outro, poderia “transformar a população numa ‘redundância’”. Mais tarde, seria John Maynard Keynes, e outros seus congéneres, a defender também que a sofisticação da tecnologia e das máquinas viria a substituir cada vez mais o trabalho humano.

Mas para Brynjolfsson e McAfee, ao invés de “roubarem” postos de trabalho, as tecnologias conduzem antes à procura de muitas espécies de trabalhadores diferentes, nomeadamente aqueles que usam a “cabeça” e não as mãos, sendo que as sociedades sabem sempre responder adequadamente a estas vagas de inovação, investindo, por exemplo, na educação.

Para os autores, o facto de os Estados Unidos terem investido fortemente no seu sistema educativo, ao longo do século XX, comprova que não é uma coincidência o facto de se terem posicionado na linha da frente no que respeita à produtividade e à melhoria dos padrões de vida. Ao mesmo tempo, acrescentam, os empreendedores inventaram indústrias completamente novas movidas por esta nova espécie de força de trabalho: a de trabalhadores educados que aprenderam a pedir salários justos (e elevados) de acordo com os seus conhecimentos e competências, os quais gastavam num conjunto alargado de bens e serviços, completando um ciclo virtuoso. Assim, e em vez de um desemprego tecnológico, as décadas que se sucederam ao pós-guerra testemunharam a emergência de uma classe média alargada, estável e próspera. Para os autores, a lição é clara: a revolução industrial deu início a uma corrida entre a tecnologia e a educação e, ao longo do século XX, foram os humanos a ganhar essa prova.

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A inteligência artificial e a rede digital comum que liga humanos em todo o planeta
A “segunda era das máquinas”, que combina os poderes exponenciais e digitais, possibilitou a criação de dois dos mais importantes eventos da história da humanidade: a emergência de uma inteligência artificial (IA), real e útil, e a conexão da maioria dos cidadãos do mundo através de uma rede digital comum. Para Brynjolfsson e McAfee, que partilham um excerto do seu livro na revista The Atlantic, cada um destes eventos, em separado, alterariam, fundamentalmente, as nossas perspectivas de crescimento. Mas, combinados, são mais importantes do que qualquer outro acontecimento desde a Revolução industrial, a qual mudou, para sempre, a forma como o trabalho físico era efectuado.

As máquinas digitais escaparam aos limites que as confinavam e começaram a demonstrar capacidades alargadas em termos de reconhecimento de padrões, comunicações complexas e outros domínios os quais eram, até agora, da esfera exclusiva dos humanos. No tom optimista que caracteriza o livro, Brynjolfsson e McAfee asseguram ainda que a inteligência artificial será, de forma crescente, “embutida” no nosso quotidiano, principalmente quando os seus custos descerem. Muito em breve, garantem, a nossa vida irá melhorar graças a inúmeras “peças” de IA, as quais estarão ao nosso serviço, ajudando-nos tanto em áreas triviais da nossa vida, como noutras significativamente substanciais. As utilizações triviais da IA incluem o reconhecimento das caras dos nossos amigos em fotos e a recomendação de produtos. As mais substanciais estendem-se à condução autónoma de viaturas, à orientação de robots em armazéns ou a uma melhor correspondência entre empresas e candidatos a emprego. Mas, mais importante ainda é o facto de as tecnologias digitais estarem já e por exemplo, a restaurar a audição em surdos e, muito em breve, a serem capazes de restituir a visão a cegos. Os benefícios da IA estão já a ser extensíveis aos paraplégicos, na medida em que existem já cadeiras de rodas que são controladas através do pensamento. Considerados de uma forma objectiva, estes e outros avanços similares, podem ser considerados como milagres… e tudo está ainda no início.

Por outro lado e adicionalmente ao poder e utilidade da IA, um outro desenvolvimento recente que promete acelerar ainda mais a segunda era das máquinas é a interconexão digital dos habitantes do planeta. Para os optimistas autores, não existe melhor recurso para melhorar o mundo e o estado da humanidade do que os 7, 1 mil milhões de humanos que dele fazem parte. As nossas boas ideias e inovações irão lidar com os desafios que vão surgindo, melhorar a qualidade das nossas vidas e permitir que tomemos melhor conta uns dos outros. Para Brynjolfsson e McAfee, é um facto notável e indubitável que – com excepção para as alterações climáticas – a esmagadora maioria dos indicadores ambientais, sociais e individuais de saúde tenham vindo a melhorar com o tempo, mesmo com o aumento da população.

E ambos os cientistas do MIT acreditam também que esta realidade não é apenas uma feliz coincidência, mas sim uma relação de causa/efeito. As coisas melhoraram porque existem mais pessoas, as quais, em conjunto, geram mais ideias concebidas para aperfeiçoar a totalidade das nossas vidas. Citando o economista Julian Simon, o primeiro a defender este argumento optimista, escrevem os autores: “é a mente aquilo que interessa economicamente, tanto ou mais do que as mãos ou a boca. A longo prazo, o efeito económico mais importante da dimensão e crescimento da população será o contributo de pessoas adicionais ao stock já existente de conhecimento utilitário”. Todavia, existe um ponto na argumentação de Simon com o qual os autores do livro discordam. “O principal combustível para acelerar o progresso mundial é o armazenamento do nosso conhecimento, sendo que o travão é a ausência de imaginação”, afirma também o economista. E é sobre este travão que os autores discordam, na medida em que, a seu ver, o principal impedimento ao progresso sempre foi, até há muito pouco tempo, o facto de uma porção considerável dos habitantes do mundo não ter uma forma efectiva de aceder a este conhecimento nem de poder contribuir para o mesmo.

Recordando que no ocidente industrializado há muito que nos habituámos a ter bibliotecas, telefones e computadores ao nosso dispor e que estes bens eram luxos inimagináveis para as pessoas do mundo em desenvolvimento, os autores celebram a profunda alteração que tem vindo a ter lugar nos últimos anos no que a este acesso e partilha de conhecimento diz respeito: se em 2000, existiam aproximadamente 700 milhões de subscrições de telemóveis no mundo – menos de 30% destas no mundo em desenvolvimento – em 2012, o número disparou para seis mil milhões, sendo que mais de 75% das mesmas foram feitas nos países em desenvolvimento. Dados do Banco Mundial apontam para que cerca de três quartos da população mundial tenha agora acesso a telefones móveis e que, em vários países, estes estão mais disseminados do que a electricidade ou a água potável.

Os primeiros telemóveis, dizem, vendidos e comprados no mundo em desenvolvimento, pouco mais faziam do que enviar e receber mensagens escritas, mas e apesar da simplicidade, fizeram uma diferença significativa. Para o futuro próximo, a firma de análise de TI, a IDC, estima que os smartphones irão ser um sucesso de vendas ainda maior do que os “velhinhos” telemóveis.

Para os autores, esta mudança que se deverá, em simultâneo, à melhoria de performance e à queda dos custos tanto em termos de dispositivos móveis como das redes, terá mais uma consequência por demais importante: incluir milhares de milhões de pessoas na comunidade de potenciais criadores de conhecimento e de inovadores.

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Acreditar que a democratização do conhecimento pode mudar o mundo
Na medida em que até há bem pouco tempo a comunicação célere, a aquisição de informação e a partilha de conhecimento, especialmente de longa distância, estavam essencialmente limitadas às elites, a boa notícia é que a sua democratização e igualitarismo estão em franco crescimento.

E é devido a este desenvolvimento que Brynjolfsson e McAfee afirmam acreditar que o progresso humano está à beira de uma “explosão” promissora. A segunda era das máquinas será caracterizada, afirmam, por inúmeros exemplos de inteligência artificial e de milhares de milhões de cérebros ligados entre si, trabalhando em conjunto para melhor compreender e melhorar o mundo.

Quanto ao tema inaugural deste artigo – a substituição dos homens pelas máquinas – não será, de acordo com o olhar optimista dos autores, nenhuma ficção tornada realizada. Os computadores podem ganhar concursos televisivos [a propósito do muito falado super-computador Watson, da IBM, que “respondeu” correctamente ao questionário e venceu dois jogadores humanos no concurso televisivo norte-americano Jeopardy], mas não têm capacidade para serem verdadeiramente criativos ou para desenvolver um “espírito” empreendedor ou inovador. Nem sequer existe conhecimento de que alguma “peça digital” se tenha unido em prol de uma causa comum, ou que tenha confortado uma criança doente com mimos e sorrisos.

As pessoas continuarão a ter papéis de importância extrema na segunda era das máquinas, garantem os autores, alertando porém e mais uma vez, para o facto de as empresas terem de saber procurar os trabalhadores de que precisam e de os decisores políticos reformarem, a sério, os sistemas educativos vigentes.

E, em vez de nos resignarmos perante uma era de desemprego massificado, há que assegurar que as pessoas têm acesso às competências de que precisam para trabalharem em conjunto com as surpreendentes tecnologias que estão a ser desenvolvidas. Em vez de assumirmos a marginalização dos trabalhadores humanos, ou que a tecnologia nunca terá capacidade para destruir postos de trabalho, a ideia é trabalharmos no sentido de dar aos humanos as ferramentas e o ambiente propícios ao seu desenvolvimento.

Editora Executiva

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