É moral ganhar dinheiro com aqueles que fazem parte da base da pirâmide? A questão não é de fácil resposta e em conjunto com o o business case que justifica estas iniciativas em termos puramente económicos e financeiros, existe também um moral case dos negócios inclusivos, o qual se mede em termos de desenvolvimento humano e social. Mas e ao respondermos que sim, importa saber quanto e à custa de quê
POR JOAN FONTRODONA

No âmbito da Conferência Internacional sobre Negócios Inclusivos, organizada pela Fundação Codespa e tendo em conta os vários painéis da mesma, foram discutidas as principais etapas enfrentadas pelas empresas e organizações que embarcam neste tipo de negócios. Por negócios inclusivos entendem-se as actividades económicas que incorporam, na sua cadeia de valor, as pessoas mais pobres – ou aquelas que se englobam no final da “base da pirâmide”- sendo que através destas iniciativas não só se procura reduzir a pobreza, como também gerar um maior acesso a oportunidades de melhoria económica e social nas comunidades onde as mesmas têm lugar.

© AESE – Joan Fontrodona é Professor de Ética nos Negócios no IESE e convidado da AESE Business School

Como identificar as oportunidades de negócio, qual o papel dos distintos actores que participam nos mesmos, quais os incentivos e riscos que se lhes apresentam, como se colocam em marcha estas iniciativas e como perduram no tempo foram, assim, alguns dos temas em debate. E, no meu caso, foi-me pedido para responder a uma pergunta complicada: é ético ganhar dinheiro com os negócios inclusivos?

A pergunta é pertinente, pois há que ter em conta que estamos a falar de negócios e, por consequência, de actividades que têm como objectivo gerar rentabilidade económica. Não estamos a falar de acções filantrópicas, que se limitam a doar dinheiro sem esperar qualquer tipo de retorno económico. Mas existe quem questione, e dada a abordagem em causa, a aceitação moral de se ganhar dinheiro com pessoas que vivem com três euros por dia. A entrada de fundos de investimento em instrumentos financeiros desenhados para apoiar estes negócios (seja por via de créditos ou por via de entrada de capital) reforça ainda mais esta “contradição” entre os objectivos sociais e a rentabilidade económica de este tipo de projectos.

Dar uma resposta de “sim” ou “não” numa questão desta natureza seria muito complicado. Assim, atrevo-me, ao invés, a propor uma lista de princípios que se devem ter em consideração na hora de responder a esta pergunta. E há que considerar pelo menos três coisas:

  1. Existe uma tendência humana para a solidariedade

Enquanto seres humanos estamos “programados” para viver em sociedade e isso contribui para que nos sintamos solidários com as coisas que acontecem aos que nos são próximos. E, no mundo globalizado como o nosso, o “próximo” pode estar em muitos lugares, sendo que a solidariedade nos leva a partilhar as tristezas e as alegrias dos demais. Esta tendência natural corresponde a um princípio ético existente em todas as culturas, o qual é conhecido como a “regra de ouro da ética” e que se pode formular da seguinte maneira: trata os outros como gostarias de ser tratado.

A solidariedade traduz-se, muitas vezes, em acções de caridade ou filantropia face aos demais. Acontece uma catástrofe humana, a qual nos move a dar o nosso tempo ou, pelo menos, o nosso dinheiro. Mas a caridade não é a única forma para se expressar a solidariedade. E os negócios inclusivos podem ser vistos como uma alternativa à filantropia. E pode até ser considerada como uma opção muito mais respeitosa para com essas mesmas pessoas, porque não lhes damos somente dinheiro, mas sim e ao longo do processo, conhecimentos e capacidades que os tornam melhores. Ou, por outras palavras, não só lhes damos o peixe, como os ensinamos a pescar.

  1. As coisas mais importantes da vida não implicam um preço de compra e venda

Quando lhes colocamos um preço, mercantilizamo-las, instrumentalizamo-las e estas deixam de ser valiosas por si mesmas. Contudo, também é certo que, por vezes, somos obrigados a “apreçar” as coisas, mesmo as mais preciosas. A vida não se pode avaliar, mas ao subscrevermos um seguro de vida, a verdade é que acabamos por lhe “colocar um preço”. Ou temos um acidente e cada um de nós tem, também, um valor distinto.

E existe um outro importante princípio de ética que é subjacente a esta ideia. Kant oferecia várias formulações do seu imperativo moral que deveria orientar a acção humana, sendo que um deles era enunciado da seguinte forma: “trata as pessoas sempre como se fossem um fim em si mesmas e nunca como um simples meio”.

É certo que nos usamos uns aos outros como meio para conseguirmos coisas: uso os que trabalham comigo para atingir determinados resultados; uso os clientes para atingir vendas; e eles usam-me a mim e aos produtos que ofereço para satisfazer as suas necessidades. Mas Kant não nos disse que não os usássemos como meios, mas sim, e quando o fizéssemos, os víssemos como seres valiosos em si mesmos, que devem ser respeitados na sua dignidade, e não apenas como meios para atingir os nossos objectivos.

Assim, fazer negócios com aqueles que integram a base da pirâmide não significa instrumentalizar essas pessoas. Podemos incorporá-las na nossa cadeia de valor, mas isso não significa que os consideremos como “meios para”, mas sim que os temos de considerar com a dignidade que merecem. Como foi citado pelo WBCSD (World Business Council for Sustainable Development ) recentemente: “não se trata de tornar maior o nosso bolso através destas pessoas, mas sim tornar o bolso dessas pessoas maior”.

  1. “Pensar mal” é também uma tendência natural do ser humano

Basta que alguém faça algo benéfico para que imediatamente pensemos que deverá existir alguma “intenção oculta” nessa mesma acção. A verdade é que a vida decorre num mix de intenções que sustentam a forma como fazemos as coisas e tal não é errado.

As empresas devem procurar sempre combinar, nas suas acções, dois objectivos: serem economicamente eficientes e socialmente responsáveis. Mas tal não significa que estes dois exercícios sejam disjuntivos – ou faço as coisas bem ou ganho dinheiro –mas antes sinergéticos: doing good and doing well. No entanto, por vezes não se consegue combinar os dois aspectos, sendo necessário optar por um ou por outro, e é nestas ocasiões que se “testa” a convicção das pessoas e das empresas no que respeita à ética. Fazer as coisas bem ou ser socialmente responsável – e conseguir ganhar dinheiro com isso, é algo que ninguém, no seu perfeito juízo, pode recusar enquanto possibilidade.

Mas este não é o verdadeiro problema. O problema, ou a chamada “prova do algodão da ética” é, justamente o caso oposto: quanto estou disposto a deixar de ganhar por fazer as coisas bem. Ou, como referia um participante na conferência, chegará o dia em que a pergunta será “quanto estou disposto a perder por não fazer as coisas bem”. Mas e enquanto não chegar esse dia, terei de me conformar com a formulação mais realista.

Mas que intenções, afinal, movem as empresas e as organizações para entrar nestes negócios inclusivos?

Bem, na verdade, um pouco de tudo. E não é mau que assim seja. O ónus da prova, de qualquer das formas, reside na altura em que é necessário escolher e decidir se a primazia é dada à rentabilidade sacrificando o impacto social ou se, pelo contrário, se opta pelo impacto social em detrimento da rentabilidade. Se existem fundos de investimento que entram nestes negócios e não são capazes de sacrificar os seus objectivos de rentabilidade por outros que sejam sociais, então é de esperar que seja o próprio sistema a expulsá-los.

A partir destas três considerações e que estão relacionadas com o sentido de solidariedade, com a dignidade da pessoa humana – em conjunto com o desenvolvimento pessoal que tal implica – e com a primazia das pessoas sobre a eficiência económica, cada um pode extrair a sua proporia resposta à pergunta “se é ético ganhar dinheiro com aqueles que fazem parte da base da pirâmide”. A minha é “evidentemente que sim”. O que importa é saber quanto e à custa de quê.

Em conjunto com o business case, que justifica estas iniciativas em termos puramente económicos e financeiros, existe também um moral case dos negócios inclusivos, o qual se mede em termos de desenvolvimento humano e social. E mais, atrever-me-ia a dizer ainda que muitas vezes tal não seja mencionado explicitamente – que é esta a razão que está subjacente ao que move as pessoas a trabalharem nestes negócios inclusivos, como ficou também claro em muitas das experiências que nos foram contadas nesta mesma conferência.

Joan Fontrodona é professor e director do Departamento de Ética nos Negócios da IESE Business School