A análise do impacte dos 1,5ºC é uma resposta a um imperativo ético internacional: um cenário de 2ºC de aumento da temperatura média global do sistema implica aceitar a quase certeza do desaparecimento de comunidades inteiras nas ilhas do Pacífico. Mas evitar, de modo permanente, o limiar dos 1,5ºC implica uma transformação radical do sistema energético nas próximas duas décadas, com vista a reduzir as emissões globais de gases com efeito de estufa em 45% até 2030 (ou seja, em apenas 12 anos) e chegar à neutralidade carbónica
POR PEDRO MARTINS BARATA

A história da ciência das alterações climáticas evoluiu em torno do conceito de um nível de alteração climática considerado como um risco aceitável para as sociedades humanas e para os ecossistemas que as suportam. Desde 1992 que o objectivo enunciado da Convenção-Quadro para as Alterações Climáticas é evitar a “interferência antropogénica perigosa com o sistema climático”. Tal noção implica, contudo, perceber o que se entende por “perigoso”. Quais são os limiares aceitáveis de risco, sabendo à partida que, por força da inércia do próprio sistema climático, alguma interferência antropogénica já está a impactar no sistema?

Em Paris em 2015, os países quantificaram esse objectivo e concretizaram-no: a meta de evitar a subida da temperatura média global a mais de 2ºC acima da temperatura da época pré-industrial, e fazer esforços para evitar mesmo uma subida acima dos 1,5ºC foi estabelecida. Por sua vez, esse objectivo climático só pode ser atingido com razoável probabilidade (>50%) se as emissões globais líquidas chegarem a zero até ao final do presente século – surge por isso o conceito da neutralidade carbónica, que não é mais do que o corolário coerente do compromisso tido pelas nações já em anteriores cimeiras do clima.

Mas se o desafio já é tão difícil para limitar o crescimento da temperatura a 2ºC, porquê pôr em cima da mesa uma meta ainda mais ambiciosa de 1,5ºC? A razão releva da dimensão ética e civilizacional do problema das alterações climáticas: as alterações climáticas não irão ter um impacte uniforme nas diferentes comunidades e ecossistemas do planeta. A vulnerabilidade de cada comunidade dependerá essencialmente do impacte físico no ecossistema e da capacidade de resposta adaptativa que a comunidade possa ter. Posto em termos simples: uma subida do nível do mar de 30cm pode não ter expressão em muitos países que não tenham linhas costeiras baixas; em termos médios, tal subida é perfeitamente acomodável numa sociedade rica, com capacidade de planeamento e capacidades de engenharia hidráulica, como a Holanda. A mesma subida tem um efeito completamente diferente num país igualmente plano e sujeito a cheias como o Bangladesh, dadas as fragilidades na capacidade de resposta. É por essa conjugação de factores que há países que têm efectivamente uma maior vulnerabilidade global – tipicamente os países menos desenvolvidos, com menos recursos e competências para fazer face à evolução climática e sobretudo aos fenómenos climáticos extremos.

A análise do impacte dos 1,5ºC é por isso uma resposta a um imperativo ético internacional: um cenário de 2ºC de aumento da temperatura média global do sistema implica aceitar a quase certeza do desaparecimento de comunidades inteiras nas ilhas do Pacífico. Tal cenário (que, recorde-se, ainda é aquele com que a União Europeia e os principais blocos estão comprometidos) justifica, por isso mesmo, a criação a nível internacional do estatuto de “refugiado climático” e a negociação entre os pequenos Estados-ilha e países-refúgio, como a Austrália. O relatório que os cientistas do Painel Intergovernamental publicaram responde por isso à questão: o que acontece no cenário em que tudo fazemos para que estes pequenos países, assim como as comunidades ribeirinhas de países como o Bangladesh, possam sobreviver? Quanto tempo nos resta?

[quote_center]As trajectórias de emissões compatíveis com um cenário de 1,5ºC requerem transições rápidas nos sistemas energéticos e industriais, na infra-estrutura de transportes e urbana[/quote_center]

E a resposta, algo brutal, é esta: permitir um cenário que evite ultrapassar, de modo permanente, o limiar dos 1,5ºC, implicaria uma transformação radical do sistema energético nas próximas duas décadas, com vista a reduzir as emissões globais de gases com efeito de estufa em 45% até 2030 (ou seja, em apenas 12 anos) e chegar à neutralidade carbónica.

As trajectórias de emissões compatíveis com um cenário de 1,5ºC requerem transições rápidas nos sistemas energéticos e industriais, na infra-estrutura de transportes e urbana. Como o relatório menciona, estas transições “são sem precedente em termos de escala, mas não necessariamente em termos de velocidade”. As reduções de emissões serão profundas em todos os sectores, com uma diversidade grande de opções de mitigação e uma necessidade rápida de reorientação do investimento público e privado para essas opções.

Mais desafiante ainda, a manutenção desses cenários irá requerer o desenvolvimento de tecnologias de remoção directa do dióxido de carbono na atmosfera e a sua utilização em massa. Tal é necessário porque o potencial de remoção biofísica (plantação de florestas e outro sequestro biofísico) não chega para inflectir o valor acumulado de gases de efeito de estufa na atmosfera. Tais tecnologias existem, mas são ainda incipientes e totalmente experimentais.

Quer isto, portanto, dizer que este exercício é demasiado exigente, ou tecnologicamente incomportável, apesar de eticamente necessário? Não exactamente. O relatório evidencia que esta transformação radical tem benefícios que ultrapassam apenas as questões da ética internacional. Esta transformação radical contribui decididamente para múltiplas dimensões do desenvolvimento sustentável, incluindo a segurança energética e o acesso à energia, a segurança alimentar, a qualidade do ar e a melhoria do ambiente urbano. Todas estas dimensões permitem justificar plenamente que o mundo, e em particular as economias desenvolvidas, ponham claramente a tónica do seu desenvolvimento na neutralidade carbónica e na transição energética de curto prazo. É nesse sentido que vão também os trabalhos que o Governo português em boa hora encetou para um Roteiro para a Neutralidade Carbónica, assente no compromisso de Portugal em atingir a sua neutralidade carbónica em 2050.

Pedro Martins Barata, membro do Expert Adisory Group SBTi Net Zero Standard, co-presidente do Painel de Peritos da Task Force para o Mercado Voluntário de Carbono e Partner da Get2c